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1.2. Justificação e pertinência do objeto de estudo

1.2.4. Interpelação axiológica: Responsabilidade-Solidariedade-Respeito

Com base na atual conjuntura educativa no seio das escolas básicas oficiais e à luz da noção compreensiva de carácter e na senda da argumentação de Lickona, reconhecemos que a Responsabilidade, a Solidariedade e o Respeito, poderiam constituir o foco da nossa investigação24, como pilares estruturantes do carácter moral, nomeadamente do agente moral respeitador, solidário e responsável.

A contemporaneidade interpela a Educação, para que esta contribua decisivamente, no restabelecimento do equilíbrio entre direitos e deveres na formação das gerações mais novas. Também é reconhecido, que os demais valores emanam ou constituem-se como facilitadores dos dois valores basilares que assenta a moralidade individual e pública (Responsabilidade e Respeito). Ao reconhecer esta plataforma moral de combate à iliteracia ética, a Escola está a cimentar o primeiro passo determinante no desenvolvimento de um programa de educação dos valores. O Respeito, como um constituinte do âmago da moralidade, cuja dimensão basilar permite o florescimento das demais virtudes éticas, adquire relevância relativamente à missão moral da Escola.

Esse esforço, leva em linha de consideração o papel cada vez mais proeminente da Escola como agente socializador e cuidador, perante uma família contemporânea mais limitada e menos preparada para assumir as suas funções ancestrais de “concha de afetos”, uma sociedade

24 Vai no sentido da perspetiva de Lickona (1991). Tal proposta encontra-se empiricamente fundamentada nos resultados de uma

investigação realizada no final da década de noventa a 120 administradores escolares, onde os valores morais considerados mais prementes num programa de formação do carácter nas suas escolas foram inequivocamente a responsabilidade e o respeito (99% das respostas consideraram muito e extremamente importantes) (Wood & Roach, 1999). Na mesma linha, de acordo com a experiência com alunos entre os 6 e os 17 anos, os desafios emergem de questões básicas, que envolvem obediência à legítima autoridade, responsabilidade, amizade, controlo próprio e cortesia (Ryan & Wynne, 1997; Ryan 1997a). A assunção da centralidade e primazia do respeito levou uma professora do primeiro ciclo a conceber um currículo, designado RESPECT (acrónimo de um conjunto de valores: Responsabilidade, Esforço, resolução de problemas (em inglês, solving problems), Perseverança, Empatia, Confiança e Trabalho de equipa) (Linden, 1997), e uma escola básica a enfatizar, com base no mesmo acrónimo, a necessidade de Respect Every Single Person Especially Classemates & Teachers (Wheeler, 1997). No nosso contexto, Estrela (1995) empreendeu uma investigação relativa às representações de 175 professores de quatro escolas (sendo duas secundárias), envolvendo as principais regras de conduta na sala de aula que o professor se dava a si próprio, que regras orientavam os comportamentos dos alunos e quais os valores que os docentes procuravam que os seus alunos adquirissem através da prática pedagógica quotidiana. As regras e valores considerados muito importantes por mais de 50% dos respondentes foram: regras dos alunos (respeitar o professor (77%), não perturbar a aula (75,4%), respeitar os colegas (67,4%), estar atento (61,1%)); valores (responsabilidade (78,3%), verdade (70,9%), respeito pelos outros (70,3%)).

em geral cada vez mais individualista e insensível às necessidades e limitações dos seus membros, e uma Escola cada vez mais massificada e multicultural. A existência de tais qualidades humanas nos seus membros em contexto escolar (professores, alunos e pessoal) afigura-se como vital para que o bem-estar individual e a harmonia coletiva sejam alcançados. No plano da axiologia, mais concretamente, são três virtudes instrumentais da Justiça, virtude cardinal ancestral enfatizada na história da cultura ocidental, que tem uma preocupação em proporcionar o maior bem para o maior número de pessoas, abrangendo assim as obrigações e responsabilidades pessoais, profissionais e legais em relação a outros, fundada na igualdade e universalidade dos direitos humanos, onde o ser humano emerge como um fim em si mesmo e não como um meio. Se no plano axiológico, as três qualidades humanas encontram um legítimo enquadramento e justificação, no plano da política educativa no domínio da FPS, o texto fundador de 1986 outorga a Escola com o mandato de incentivar a formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários (art.º 2º, n.º 4), emergindo explicitamente a responsabilidade e a solidariedade como preocupações educativas. Aliás, no Despacho n.º 19308/2008 (ponto 10), a educação para a solidariedade surge como novo domínio consagrado, que ao longo do ensino básico, a área de projeto e a formação cívica deveriam contemplar no sentido de desenvolver competências. Foi, aliás, a própria Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, a incluir nas suas pistas e recomendações dirigidas à UNESCO: “Devemos cultivar, como utopia orientadora, o propósito de encaminhar o mundo para uma maior compreensão mútua, mais sentido de responsabilidade e mais solidariedade, na aceitação das nossas diferenças espirituais e culturais” (1996, p. 44).

Finalmente, como já notámos anteriormente, este enfoque deriva igualmente da nossa experiência no terreno em escolas públicas do ensino básico, na medida que são traços de carácter na vida das comunidades educativas com implicações nefastas para a atmosfera escolar e para as qualidades de aprendizagem. Portanto, o que está em causa é a própria formação integral das gerações mais novas que o sistema educativo promove, pondo em causa a construção de uma comunidade ética aprendente. Assim sendo, a nossa proposta em termos de

prioridades para o estudo que nos propomos fazer passa pelo trinómio Solidariedade-Respeito-Responsabilidade.

O Respeito significa consideração pelo valor intrínseco de alguém, refletindo desse modo uma virtude restritiva, na medida que não desvalorizamos, depreciamos, danificamos ou destruímos aquilo que é merecedor de honra e valorização. Envolve respeito por si próprio requerendo que se trate da própria vida e pessoa como tendo valor, e respeito pelos outros, que possuem dignidade e direitos idênticos, quer pelo valor inerente à sua condição humana, quer pela função ou posição que ocupam. No âmago da dinâmica relativa a esta qualidade

eminentemente relacional está a ideia: “eu trato as outras pessoas da mesma forma como desejo ser tratado”. Afonso (1999) defende a importância do respeito na vida em sociedade, onde cada pessoa, livre e igual na correspondente medida que o é o seu semelhante, encara o outro como “outro como eu”. A interação entre as pessoas é assim caracterizada com civilidade, cortesia e dignidade. Na dinâmica interpessoal, não existe espaço para a ridicularização, embaraço e mágoa intencional. As diferenças pessoais, dentro de certos limites, são aceites e compreendidas. Aquando da existência de conflitos, são dirimidos e tratados sem recurso a qualquer tipo de violência. Essa virtude envolve o respeito pelo complexo universo das outras formas de vida e do ambiente associado, requerendo que não se cometam crueldades com os animais, e haja cuidado com o ecossistema no qual toda a forma de vida subsiste e depende. Neste trabalho, focaremos o respeito pelo próximo. Como Xavier Jares afirma:

Não existe possibilidade de convivência sem diálogo. E não existe diálogo autêntico sem respeito, sem reciprocidade no trato e sem reconhecimento de cada pessoa. O respeito é uma qualidade básica e imprescindível que fundamenta a convivência democrática num plano da igualdade e tendo implícita a ideia de dignidade humana (citado em Baptista, 2011, p. 50).

Ainda na consideração do respeito pelo próximo como valor essencial, Estrela e Silva (2010) argumenta:

O respeito é assim um valor essencial, compreende-se, porque é o respeito que, no interior das instituições, leva a que cada um de e todos sejam merecedores de igual estima e consideração. Mas o respeito também surgirá aqui, quem sabe, porque se sente como algo que falta, algo que, muitas vezes, não estará presente nas relações de uns com os outros e que, por causa disso mesmo, tais relações (igualmente no interior da escola) são eticamente diminuídas e a estima em consideração desiguais. O respeito é então uma condição de justiça: se para mim o outro é igualmente livre e radicalmente igual, tanto ele como eu temos direito ao mesmo, devemos receber por igual o que haja a receber, e dar em igual medida o que houver que ser dado (pp. 50-51).

No que concerne à Responsabilidade, extensão do Respeito e representando a faceta ativa da nossa moralidade (literalmente significa habilidade em responder), entramos no âmbito das obrigações positivas. A responsabilidade está claramente na zona de interseção entre o carácter moral e performativo pois motiva a pessoa a efetuar o que é correto, estando assim no cerne da coragem moral. De acordo com Lickona e Davidson (2005), “it lead is to fulfill our commitments and to intervene when necessary to stand up for what is right and correct what is wrong” (p. 148). Este domínio abrange tratar da sua própria pessoa e possessões, realizar adequadamente o trabalho que é necessário fazer, honrar os compromissos, prestar contas pelas ações tidas não apresentando desculpas ou acusando terceiros, cumprir as obrigações morais, usar de bom julgamento, ter noção das consequência dos atos e exercer controlo-próprio. Hans Jonas, filósofo do século XX, concedeu à responsabilidade uma centralidade notória no campo da ética. Ele preocupa-se com o futuro da humanidade, com aquilo que no tempo vindouro

ocorre face às decisões tomadas, enfatizando desse modo as questões vinculadas à política pública num quadro de responsabilização sistémica e prospetiva. As suas palavras de exortação a esse respeito são elucidativas:

Age de maneira tal que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de autêntica vida humana sobre a terra (...) que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra (...) não ponhas em perigo as condições da continuidade indefinida da humanidade na terra (...) inclui na tua opção presente, como objeto também de teu querer, a futura integridade do homem (Jonas, citado em Kuiava, 2006, p. 58).

A outra qualidade, com clara interseção com a Responsabilidade é a Solidariedade. Em certo sentido, poderia ser considerada uma extensão da Responsabilidade, pois a responsabilidade não se confina às áreas somente orientadas para o próprio, mas tem igualmente um foco para terceiros, tais como ter oportunidade de tratar e zelar de outras pessoas e fazer uma contribuição tangível para o bem-estar de outros seres humanos (responsabilidade social). A Solidariedade requer que a pessoa possa contemplar empaticamente o outro na sua condição humana, ao ponto de poder doar-se altruística e desinteressadamente.

O pensador contemporâneo Emmanuel Lévinas tomou como base da sua ética, a ideia da responsabilidade pessoal pelo outro. A responsabilidade tem uma centralidade tão expressiva no campo da ética levinasiana, que rompeu com o ponto de vista filosófico tradicional. Para ele, a responsabilidade já não decorre da liberdade, assumindo-se ao invés, como o fundamento primeiro e essencial da estrutura ética, sendo como uma vocação que satisfaz um chamado (Afonso, 2007a; Kuiava, 2006). Estabelece uma lei do rosto, uma injunção moral, um imperativo categórico de tipo kantiano, na continuidade do princípio ético em que assentou o cristianismo (ama o próximo como a ti mesmo), que se manifesta no afetivo encontro extraordinário rosto a rosto. O outro detém uma singularidade própria, é outro mundo interior, que desafia radicalmente a consciência humana a ser convocada à equidade e à justiça (Baptista, 2011, p. 26). O eu perante o outro é infinitamente responsável, dimensão exclusiva e que não se pode delegar. Ao olhar para o outro, face a face, a evidência que se nos impõe é a do imperativo da solidariedade com aquele que conta connosco (CRSE, 1988; Kuiava, 2006).

A tónica recai assim nos relacionamentos humanos, onde a preocupação com o bem- estar do outro, a sensibilidade, a generosidade, a bondade, a empatia, o cuidado, o altruísmo, sejam realidades tangíveis nas interações entre as pessoas. Sinteticamente, lida com o diligente interesse e desvelo carinhoso pela vida de terceiros. De alguma forma, a Solidariedade reveste o Respeito e a Responsabilidade com um sentido profundo de humanidade, de uma filantropia portadora do mais genuíno reconhecimento da dignidade e valor da pessoa humana, refletindo uma triangulação ponderada em matérias suscetíveis de ênfases exacerbadas. Assim, o eventual reconhecimento e tratamento de situações e circunstâncias que requeiram atitudes frontais e

firmes, têm subjacente este critério de empatia e generosidade, cuja alavanca não se baseia em qualquer intuito repressivo, mas, ao invés, no esforço abnegado e persistente da Escola em prol da melhoria e da reabilitação humana e social.