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4.1. A Nova Educação do Carácter e a problemática do doutrinamento

4.1.4. A Nova Educação do Carácter é doutrinadora?

4.1.4.1. Compreendendo tentativamente o Conceito

No sentido de respondermos a tão importante questão, se a Nova Educação do Carácter contemporânea é realmente doutrinadora, precisamos de esclarecer, o mais possível, o conceito de doutrinação. Vamos começar com um primeiro aportamento geral. O doutrinamento114, segundo Snook (1972) compreende três elementos essenciais: (1) a intenção de uma escola ou

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Também Orlando Lourenço, no início da década de 90 do século passado, dando as boas vindas ao Desenvolvimento Pessoal e Social (DPS), chamou a atenção de que, como acontece em todas as mudanças de paradigma, o paradigma antigo (orientado em termos de um particularismo religioso, interessado em conteúdos e no poço de virtudes, entendido em termos de doutrinação, ênfase nos deveres), tentará continuar, ainda que vestido de outras roupagens. Ele refere que “não seria bom augúrio que a institucionalização do DPS viesse a ser fundamentalmente implementada pelas mentalidades sempre ligadas à religião e à Moral, de novo, a ‘santidade’ com a capa da justiça” (Lourenço, 1992, p. 134; ver também Campos, 1997; Valente, 1998, pp. 147-148). Tal situação é também ainda conjeturada no contexto norte-americano, dado o facto de quase todos os principais proponentes da NEC serem católicos devotos, segundo Kohn (1997). De facto, durante os anos oitenta do século XX, Lickona trabalhou conjuntamente com um grupo de filósofos, psicólogos e educadores na Catholic University of America (Lickona, 2012, Março). Esses factos são agravados pela anuência e incentivo público do ex-Presidente Bush, o qual é considerado por muitos, um fundamentalista religioso.

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Veja-se as reações que algumas medidas do ministro da Educação Nuno Crato têm suscitado. O Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista (PCP) veem no novo Estatuto do Aluno e Ética Escolar o regresso a uma visão salazarista do ensino. A deputada Ana Drago do Bloco de Esquerda criticou: “Querem ordem nas escolas, mas numa perspetiva de escola barata, uma escola salazarenta. É essa a vossa agenda conservadora” (Lobo, 2012, 11 de Junho). No plano da revisão curricular, a FENPROF tem acusado igualmente a tutela, de existirem claras motivações ideológicas, estando a retornar-se ao tempo do “ler-escrever-contar”. Essa acusação é lapidarmente condensada na forma como o ministro é percecionado pelo líder da Federação Nacional de Professores: “Nuno Crato é mais conservador e retrógrado do que os ministros da educação do tempo do fascismo” (citado em http://www.profblog.org/2012/06/disparates-do-nogueira.html#more, consultado em 28 de Junho de 2012). Ainda queremos aduzir que sempre que frequentámos, nos últimos 8 anos, no contexto português, algum seminário, congresso, conferência, subordinado à temática dos valores e da cidadania em contexto escolar, a referência explícita ao sucedido no período Estado Novo foi patente em todos os eventos.

114 É interessante mencionar que numa fase inicial, o termo doutrinamento não possuía qualquer peso pejorativo. Posteriormente

começou a ser associado aos regimes totalitários e coercivos (ver Gatchel, 1972). A primeira pessoa a utilizar o termo doutrinação de forma pejorativa foi William Kilpatrick em 1919. Até essa altura, educação e doutrinação seriam sinónimos (Merry, 2005; Puolimatka, 1996). Os dois termos assumiram a sua identidade particular aquando da distinção realizada por Dewey no início do século XX entre educação autoritária e democrática. Foi o seu discípulo, William Heard Kilpatrick, que introduziu o termo tornando-o um conceito determinante no debate educacional empreendido pelo movimento progressista (Garrison, 1986, p. 265).

de um professor é fazer com que os alunos acreditem em alguma coisa sem levar em consideração a evidência; (2) os métodos de ensino são coercivos ou claramente inapropriados; (3) o resultado de tal educação resulta numa mente intolerante e fechada. Tal conceção encontra-se sintonizada com a proposta de Reboul (1977, citado em Moreira, 1999), de Veiga (1998, p. 95) e de Pedro (2002), quando mencionam que, quando se envereda por práticas doutrinadoras, os alunos são tratados como meios infantilizados para um propósito específico, utilizando-se para isso uma repressão deliberada do pensamento, que impede a todo o custo a problematização e a eventual recusa das ideias veiculadas. Em suma, não há qualquer preocupação em prol do pensamento autónomo, em criar condições que permitam a avaliação da “caminhada racional” do proponente (Veiga, 1988, p. 90).

Tendo feito uma análise mais geral, e estando cientes da complexidade conceptual, vamos tentar aprofundar a nossa compreensão, de modo a reconhecermos melhor as particularidades e as variáveis, que se tornam decisivas na avaliação adequada da problemática do doutrinamento em contexto escolar. Presentemente, na discussão filosófica, ainda não se atingiu um consenso pleno em relação a uma definição precisa de doutrinação (Puolimatka, 1996), e “quais são os seus limites” (Cunha, 1996, p. 42). Os critérios normalmente invocados para analisar e aferir se existe doutrinação são: método, conteúdo, consequências e intenção. Contudo, não se prefiguram, isoladamente, como condições suficientes para que determinada situação pedagógica incorra nesse “vil termo educacional”. Assim, antes de analisarmos em que medida a NEC enferma de tais facetas educacionais, pensamos ser importante expor com mais detalhe os contornos e limitações dos critérios referidos.

Critério-Conteúdo. O conteúdo do ensino determina se uma qualquer situação de ensino configura doutrinação. Assim, quando estamos perante “doutrinas não científicas” o doutrinamento ocorre, independentemente do método de ensino (Huttunen, 2003; ver Thiessen, 2001). Segundo Stencel (2009), a presença de doutrinação no processo educacional é mais provável que ocorra dentro da área do domínio afetivo, como a moral, religião e política, pois são componentes que suscitam efetivamente o diálogo e a discussão em torno de doutrinas. Todavia, um dos problemas que este critério tem, lida com a conceptualização contemporânea em relação ao termo doutrina. Qual a diferença entre uma doutrina e o conhecimento científico, a quasi-ciência e a verdadeira ciência? Os filósofos da ciência ainda não chegaram a um consenso sobre essa indagação. A ciência como um sistema de crenças verdadeiras ou justificadas, já não se perfila em termos de veracidade da mesma forma, após, por exemplo, a geometria não-euclidiana, a física não-newtoniana e a lógica indutiva (Huttunen, 2003). Ainda temos a advertência relacionada com o facto de que todo o conhecimento humano implica “metaphysical commitments” e assim, decorrentemente, o conhecimento científico não é neutro

nesse domínio, pois a investigação científica funciona dentro de um paradigma que envolve pressupostos metafísicos. Assim considerado, à luz do critério do conteúdo, todo o ensino seria doutrinador, e seria então simplista associar ao ensino de determinados valores e crenças substantivas, a crítica do doutrinamento (Puolimatka, 1996). Apesar do conhecimento reputado como verdadeiro ser contingente, ou poder ser contraditado na mesma medida que é suportado, não consideramos necessariamente que tenha havido doutrinamento (Merry, 2005).

Critério-Método. Neste critério volvemo-nos para as dimensões metodológicas do processo ensino-aprendizagem, as quais estão frequentemente associadas com o critério- conteúdo (Thiessen, 2001). O doutrinamento é assim considerado uma “pedagogia identificada não pelo conteúdo que é ensinado, mas pela forma como é ensinado” (Green, citado em McDonough, 2011). Com efeito, expressões como ensino autoritário, inculcação, propaganda, censura, controle da mente e lavagem cerebral, esta última considerada a forma mais severa de doutrinação, encontram-se associadas à temática (Stencel, 2009). Esses métodos ilegítimos têm 3 componentes que abarcam áreas vinculadas ao autoritarismo exercido na dinâmica pedagógica (Huttunen, 2003): a) o ensino é autoritário; b) o conteúdo do ensino “é perfurado” na mente dos estudantes; c) existem elementos perfuradores no ensino e a discussão livre não é permitida115. Conforme Merry (2005) sustenta a esse respeito, a razão é sub-repticiamente ultrapassada, uma pressão psicológica é exercida, gerando uma situação de coerção, cuja eficácia é fortalecida pela assunção de autoridade intelectual envolvida.

Contudo, presentemente existem versões refinadas de doutrinamento que usam os melhores métodos que não permitem a visibilidade das verdadeiras intenções (Puolimatka, 1996). Huttunen (2003) chama a atenção de que, se o método for legítimo, ainda assim o perigo de doutrinação pode manter-se. O uso do mesmo método de ensino (círculo de perguntas e respostas) pode ser usado quer para propósitos doutrinadores, quer para legítimos propósitos educativos. Assim, o critério do método, entendido em termos da especificidade do método concreto utilizado, não é em si mesmo uma condição suficiente nem necessária para configurar uma situação de doutrinamento. Não obstante, o critério do método entendido como abordagem geral, ao invés da consideração de estratégias concretas, pode ser melhorado com as respetivas caracterizações complementares que configuram uma abordagem doutrinante: a) as crenças são influenciadas de tal forma que a pessoa não pode usar adequadamente a sua “rational discretion”, é frustrado o desenvolvimento da sua racionalidade, e a sua autenticidade é violada; b) as crenças da pessoa são influenciadas através de meios não democráticos, o que implica um uso inadequado da autoridade do educador (Puolimatka, 1996).

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Na medida em que as declarações são veiculadas, sem qualquer indicação para haver uma consideração justa de outras leituras alternativas, ou criticamente as examinar, podemos desse modo falar de doutrinamento (Merry, 2005, p. 404).

Dada a centralidade deste critério, pensamos que é ainda útil trazer as considerações práticas de Hocutt (2005) sobre a expressão da metodologia configuradora de uma situação de doutrinamento:

You were indoctrinated if you were told only one side of the story, or told that believing another side would not be an error but an evil. You were indoctrinated if no evidence was cited, or if the evidence was tendentiously selected while contrary evidence was ignored, suppressed, or distorted by misleading or charged terminology. You were indoctrinated if you were made to feel not that the proposition at issue merited belief on its own account but that doubting it would expose you to the disfavor of your fellows, the government, or the deity. In short, you were indoctrinated if the appeal was emotional rather than rational, or if your agreement was secured by threat of force or by fraud rather than by citation of fact (p. 35).

Antes de considerarmos outro critério, pensamos que ainda merecerá a pena referir que, na década de 70 do século XX, no contexto americano da filosofia da educação, o conceito de doutrinamento estava apenas vinculado à questaõ metodológica. Isso acontecia, quer pela influência do pensamento de Dewey, quer pelo debate em torno da necessidade em como instilar a democracia, particularmente no contexto do pós segunda grande Guerra, onde a perspetiva liberal condenou a filosofia e prática política autoritária da Alemanha Nazi, legitimando-se desse modo o doutrinamento em relação à democracia, dada a sua centralidade e urgência (Moore, 1972). Acompanhamos a discordância de Kilpatrick (1972), pois haveria desse modo “dogmáticos cegos” a favor da democracia, comprometendo em última análise o perfil necessário para algo tão importante, o qual deve ser compreendido e apropriado inteligivelmente. Além disso, diríamos nós ainda, a cegueira dogmática é o pano de fundo ideal para o aparecimento e fortalecimento dos regimes totalitários e coercivos, antíteses claras do espírito democrático.

Critério-Intenção. Quando o termo doutrinação foi utilizado pela primeira vez por William Kilpatrick no início do século XX, a ênfase recaiu na intenção do professor como sendo o principal critério para a existência de doutrinamento (Huttunen, 2003). Basicamente, o critério-intenção afirma o seguinte: fazer com que se acredite em algo independentemente da evidência. O educador pretende conscientemente enclausurar a mente, de tal fora que seja impossível o questionamento e consequente validação do ensino transmitido (Puolimatka, 1996). Nesse âmbito, o doutrinamento visa principalmente gerar uma lealdade ao grupo e fomentar a divulgação de uma determinada ideologia (normalmente reputada por falsa), ao invés de ser útil para o indivíduo em si, dimensão conseguida através da educação (Hocutt, 2005, p. 37). A esse respeito Puolimatka (1996) enfatiza, como se outro critério se tratasse, o respeito moral em relação à dignidade humana da pessoa, para se chegar a um veredicto mais correto. Em termos kantianos, o doutrinador considera o aluno como um meio e não um fim em si mesmo, enquanto aquele que não incorre em doutrinamento, tem um respeito pela dignidade do

aluno, promovendo o seu bem, através da promoção de valores positivos que possam enriquecer a sua vida.

No entanto, na opinião de Huttunen (2003), quando os professores verdadeiramente apreendem os códigos deontológicos do magistério, não têm a intenção de doutrinar os seus estudantes. No seu entendimento, secundado por Puolimatka (1996), numa época marcada pelo pós-modernismo, a maior parte das situações de doutrinamento acontece de forma não intencional, ao nível do currículo oculto, devido a causas estruturais (sociais e institucionais). Se o critério da intenção fosse condição suficiente116, os professores adequadamente doutrinados, não estariam na sua ação pedagógica a doutrinar, pois firmemente acreditariam nas doutrinas veiculadas pelo seu ensino, sem qualquer intenção premeditada. Essa possibilidade coloca desafios acrescidos à Educação, pois o doutrinador assim procedendo, fá-lo com a convicção plena de que, aquilo que ensina é verdadeiro e faz justiça a toda a evidência conhecida117. Também pensamos que assim procedendo, é transmitido aos alunos um ensino que é percecionado e interiorizado como não passível de reflexão crítica e de contraditório.

Critério-Consequência. Neste critério, estamos a considerar os resultados do ensino ministrado aos alunos. Assim, segundo tal critério, a educação é doutrinante na medida que a consequência é uma pessoa doutrinada, isto é, que não muda o seu pensamento, independentemente de evidência contrária. A sua mente permanece fechada (“a closed mind”) perante uma argumentação racional, pelo menos na área do pensamento humano que foi doutrinada (Puolimatka, 1996; Thiessen, 2001). Tal pessoa é como um zombie que vive em autoengano (Huttunen, 2003), presumivelmente “por um período de tempo indefinido” (Merry, 2005, p. 408).

Tal como os demais critérios, existem limitações associadas. Por um lado, será que uma pessoa não doutrinada muda sempre de opinião, quando tal evidência contrária é apresentada? Era Einstein uma pessoa doutrinada quando não aceitou a física quântica apesar das evidências apresentadas? (Huttunen, 2003). Portanto, deve ser levada em consideração a liberdade normativa das pessoas. Por outro lado, sustentar que o ensino não doutrinador, necessariamente produz estudantes com uma mente aberta, é igualmente problemático. A mente de alguém pode tornar-se fechada sem qualquer ato doutrinador na sua vida (mas devido, por exemplo, a um trauma emocional). Ademais, é possível intentar doutrinar uma pessoa mas sem sucesso. Inclusive, Puolimatka (1996), argumenta que algumas pessoas que estiveram sujeitas a

116 Segundo Merry (2005, p. 408), assumir que o critério da intenção seria por si só suficiente, seria assumir que invariavelmente

ele estaria votado ao sucesso, tornando a questão dos resultados relevante, na medida que não deverão ser confundidos os dois critérios em consideração.

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Puolimatka (1996, p. 119) afirma: “Insofar as the indoctrinator has himself been successfully indoctrinated, he perpetrates the distortions he has internalized without been aware if the untruth involved”. A esse respeito, Cooper (citado em Merry, 2005) sentiu a necessidade de designar ao doutrinamento os qualificativos de sincero e de não-sincero, quando o educador acredita ou é forçado a ensinar aquilo que pessoalmente não sustenta.

doutrinamento, têm desenvolvido mentes críticas excecionais, as quais tiveram a capacidade de criticar o sistema doutrinante. De facto, não se pode ter a certeza que a pessoa já não é capaz de mudar o seu posicionamento, pois assim estaríamos a assumir que a sua liberdade e a sua volição estariam completamente encobertas (Merry, 2005, p. 409). Portanto, apesar de se reconhecer que o critério-consequência tem toda a legitimidade de ser apresentado e avaliado, até porque, tendo em consideração os resultados, o doutrinamento “is kept at a minimum” (Loeb, citado em Patterson & Huss, 1993), não é, contudo, condição suficiente para configurar uma situação doutrinante.

4.1.4.2. Consideração sobre o carácter doutrinante da NEC

Todos os critérios, individualmente, são insuficientes para configurar, com certeza, a situação de doutrinação. Com efeito, os filósofos educacionais ainda não chegaram a um consenso qual seria o principal critério, ou qual a combinação dos mesmos, que melhor definiria adequadamente o conceito de doutrinação. Efetivamente, no plano cognitivo, não é possível ter, em termos conceptuais, muita clareza e contornos definidos. No entanto, paradoxalmente, a crítica da doutrinação é utilizada com veemência e inequivocamente, em relação a determinadas abordagens educativas, sugerindo uma motivação emocional subjacente (Thiessen, 2001). Vejamos então, tendo em consideração as diversas facetas conceptuais, em que medida a NEC, como abordagem diretiva, se posiciona face à temática do doutrinamento.

Considerações sobre o conteúdo. Em primeiro lugar, lembramos que a Escola, dada a sua natureza organizacional e humana, é já, inevitavelmente, um contexto de educação para a cidadania, mesmo na sua aceção moral, e essa assunção não requer, nem um ordenamento jurídico legitimador, nem um qualquer mandato social, nem tão pouco intencionalidade ou sistematização por parte dos educadores envolvidos (Carita, 1996; Menezes, 2005, p. 19). Tendo somente em consideração a presença incontornável do currículo oculto, portador e veiculador de valores, leva-nos a aceitar que todo o tempo é tempo de valores (Lapsley & Narvaez, 2006; Patrício, 1993; Valente, 1989b)118, quer seja deliberado, não-intencional, explícito ou implícito. Inclusive, segundo Pedro (2002), a declaração de intenções quanto à defesa de uma radical neutralidade axiológica é paradoxal e contraditória, pois a própria afirmação que valora o neutralismo é já uma diretriz ideológica, política e filosófica (p. 133), sendo ainda um exemplo de doutrinamento dissimulado119 (pp. 60-64).

118 Os valores estão embutidos inextricavelmente na escola, nomeadamente no contexto de sala de aula onde os docentes o

fazem de forma implícita quando selecionam ou excluem tópicos, quando insistem em respostas corretas, quando encorajam os estudantes a procurar a verdade do assunto, quando estabelecem rotinas dentro da turma, quando enfatizam a necessidade de disciplina, quando encorajam a excelência (Lapsley & Narvaez, 2006).

119 A transversalidade curricular é acusada de incorrer em doutrinamento dissimulado e sub-reptício. Reconhecemos, em certo

sentido, que quando existe unicamente uma disciplina onde, pretensamente, se processa exclusivamente a educação moral, mais facilmente é submetida a inquirições sobre a sua configuração, conteúdo e pretensões, ao invés daquilo que sucederia nas outras

Todavia, devemos justificar a inclusão de determinados valores que possam ser utilizados ações e deliberadamente na ação educativa. É possível tal? Lickona responde afirmativamente frisando que “existem objetivamente valores que são universais, consensuais e válidos e que a Escola pode e deve ensinar numa sociedade pluralista” (1991, p. 38).

Reconhecemos que os valores propostos por Lickona, Ryan e Wynne, proponentes principais da NEC, entroncam-se nos Direitos Humanos, o que confere não só uma legitimidade mas um enquadramento importante. Além disso, por um lado, esses valores, configuram uma cidadania compreensiva de direitos e deveres e encontram legitimidade e justificação nos princípios éticos de tendência universalizante, sendo satisfeitos os exigentes testes clássicos em matéria ética: de reversibilidade (questiona se a pessoa gostaria de ser tratada da mesma forma) e universalidade (pergunta se gostaria que todas as pessoas agissem da mesma forma numa situação similar). Similarmente, utilizando uma linguagem mais kohlberguiana, o raciocínio e a ação morais são regulados por critérios que satisfariam as duas questões em consideração (reversibilidade e universalidade respetivamente): a) advogaria eu a mesma solução se mudasse de lugar na disputa de interesses em causa? e b) cheguei eu a uma conclusão que seria aceite por todos, sempre e em quaisquer situações? (Brooks & Goble, 1997; Lickona, 1991, 1993; Ryan, Bohlin & Farmer, 2001).

Por outro lado, na literatura mundial, nas variadas religiões, no domínio filosófico e na própria arte, encontramos uma plataforma partilhada de valores morais. Os ideais da sabedoria, justiça, temperança e coragem, designados como virtudes cardinais da antiga civilização grega, surgem através da História e das culturas (Lickona, 1999, 2004; Ryan, Bohlin & Farmer, 2001). Como Cunha (1996) preconiza, são valores normativos, não arbitrários e subjetivos, pois têm sido positivamente considerados com base na tradição a vários níveis, desde o local ao universal. As civilizações reconheceram e transmitiram um núcleo axiológico120.

disciplinas sem esse propósito explicitado e plenamente assumido (Oliveira-Formosinho, 1989). Todavia, pensamos que o argumento parte do seguinte princípio incorreto: a não intencionalidade ao nível da infusão curricular implica a neutralidade axiológica da dinâmica humana, didática e curricular das disciplinas, e, consequentemente, o doutrinamento não ocorre.

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O falecido C. S. Lewis, o professor da Universidade de Oxford, constatou que várias culturas (egípcios, babilónios, hebreus, chineses, indianos, gregos a nas culturas anglo-saxónica e americana), especialmente as antigas, partilhavam, apesar de diferenças claras, um caminho comum, um Tao (termo perfilhado dos escritos do chinês Lao-Tzu). Os valores comuns incluíam a bondade, honestidade, lealdade (para os pais, esposas e membros da família e ajuda aos carenciados (pobre, doente) (citado em Ryan & Bohlin, 1999, p. 51; Ryan, 1993). Outra evidência também apresentada para sublinhar o universalismo ético, é o facto da famigerada Regra de Ouro se encontrar plasmada de uma certa forma nas religiões do Judaísmo, Cristianismo, Islão, Budismo, Confucionismo e Hinduísmo. Fazer aos outros aquilo que se quer que os outros façam a si, é encontrado nas demais grandes religiões mundiais (Kidder, 1991; Ryan, Bohlin & Farmer, 2001, p. 5). Presentemente, no contexto do Reino Unido, onde presentemente as questões concernentes à formação do carácter na esfera educativa retomaram acrescido interesse, o Schools Curriculum and Assessment Authority, estabelecido na década de 90 pelo governo conservador e que depois sob Tony Blair continuou a análise e o debate sobre a educação moral que visasse reais mudanças comportamentais, foi desafiado a estabelecer um Fórum Nacional para Valores em Educação. Tal fórum procurou salientar os valores nucleares que a pluralista sociedade britânica poderia concordar, alguma plataforma comum sobre os princípios que conduzissem a uma conduta virtuosa.