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5.1. As políticas educativas em torno da FPS desde a LBSE

5.1.4. A Reorganização Curricular do Ensino Básico

Em 1996, é despoletado um processo de revisão curricular no Ensino Básico, com a participação de inúmeros agentes. No seio dos assuntos mais sensíveis, até pela experiência até à data (1986-1996), foram identificadas a dimensão cívica da Escolas e a formação pessoal e social dos alunos. Em 1997, o Departamento do Ensino Básico lançou o projeto de Gestão Flexível Curricular. O projeto visou, por um lado, realçar a importância de uma aprendizagem sensível às competências necessárias num mundo em mudança, e, por outro lado, com o exercício de uma cidadania ativa e informada, capaz de ser uma mais-valia para a melhoria da

153 O Instituto de Investigação Educacional, em 1992, elaborou um relatório de avaliação da experiência de implementação da

área de formação pessoal e social nos 3 ciclos do ensino básico. Foram analisadas as opiniões de alunos (apenas os do 2º e 3º ciclos), dos encarregados de educação, dos professores, dos coordenadores da área de FPS, dos acompanhantes do projeto nas escolas, dos Conselhos Diretivos e Pedagógicos, dos Responsáveis pela formação e dos membros das Direções Regionais de Educação e da Inspeção Geral de Educação (Menezes, 1998, pp. 183-184).

própria sociedade154 (Alonso, Peralta & Alaiz, 2001, p. 13). O contexto educacional português manifestava assim, a mesma tendência em torno da temática da Cidadania, como preocupação inserida na esfera pública e académica, que na década de 90 ocorrera na Europa (Torney-Purta, Schwille & Amadeo, 1999, citado em Menezes, 2003)155. De facto, como corolário desse crescendo, o ano 2005 foi considerado o Ano Europeu da Cidadania através da Educação (Arthur & Davies, 2006; Davies, 2006)156. Entre nós, a Educação para a Cidadania passou a estar na moda157, não se confinando aos círculos académicos restritos (Menezes, 2005, pp. 13-

14), como se um fenómeno de bing-bang atingisse o conceito de Cidadania (Menezes, 2007, p. 21).

No contexto educacional português, na segunda metade da década de 90 do século XX, foi encetada a Gestão Flexível curricular, envolvendo um grupo experimental até 2001. A experiência enformou a reorganização curricular da educação básica, expressa no DL n.º 6/2001, de 18 de Janeiro. A principal novidade do normativo em termos de FPS, foi o estabelecimento do carácter transversal da Educação para a Cidadania, desde o pré-escolar ao ensino secundário (DEB, 2001, pp. 10-11; Freire-Ribeiro, 2008b). O objetivo pedagógico visava um contributo significativo na “construção da identidade” e no “desenvolvimento da consciência cívica dos alunos” (DEB, 2001, p. 10), num quadro de uma cidadania ativa que atravessasse a esfera micro-escolar, local e comunitária, onde o aluno assume um protagonismo interventivo (conforme o Quadro 9 em baixo ilustra).

Quadro 9. O ator e a esfera de intervenção na Cidadania Ativa

Sala Comunidade

Professor

Aluno ALVO

Nessa reorganização curricular, surgiram as áreas curriculares não disciplinares e obrigatórias (ACND)158, que visavam sobretudo a realização de aprendizagens significativas e a promoção da formação integral dos alunos: Área de Projeto (substituta da Área Escola), Estudo Acompanhado e Formação Cívica (substituta do DPS, que era uma disciplina curricular, ao

154 A perspetiva do sistema educativo português vai no sentido oposto de alguns pensadores, como Durkheim, que sustentava

que era a sociedade que criava a Escola e não o contrário.

155

No período dos anos 90 do século XX, diversos estudos e alguma evidência de uma significativa atividade transnacional surgiram, especialmente através do Concílio da Europa (projeto do Conselho da Europa “Educação para a Cidadania Democrática” (1994-2000)), e União Europeia (relatório “Construir a Europa pela Educação e a Formação” (1997)).

156 O interesse pela Educação para a Cidadania não se tem confinado ao espaço europeu, havendo também noutros contextos

internacionais a mesma tendência, especialmente na Austrália, Rússia, Colômbia e Canadá e a nível das organizações supranacionais (e.g., UNESCO, que lançou um projeto comparativo internacional subordinado ao tema: “Que Educação para que cidadania?” (1993-)) (Sears & Hyslop-Margison, 2006).

157 Valenzuela (2011, p. 39), reportando-se ao contexto espanhol, chega mesmo a referir que se chegou a um espírito obsessivo,

quase “fetichista”.

invés de ser uma área curricular não disciplinar), as quais assumem a uma desejável transversalidade (nas diversas disciplinas e áreas curriculares) e um carácter integrador de múltiplos saberes (Abrantes, 2002). A Formação Cívica é considerada o espaço privilegiado para a Educação para a Cidadania, pois pretende contribuir para o

desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento fundamental no processo de formação de cidadãos responsáveis, criativos, ativos e intervenientes, com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à sua participação, individual e coletiva, na vida da turma, da escola e da comunidade (DL n.º 6/2001, art.º 5º, ponto 3, alínea c)).

O Quadro 10 reflete as mudanças entre 1989 e 2001 ao nível das três estratégias que surgiram como estratégias ao nível do da formação dos alunos.

Quadro 10. Estratégias de FPS de âmbito curricular entre 1989 e 2001

Estratégias 1989 2001 Evolução

Disciplinar Desenvolvimento Pessoal e Social Formação Cívica Opcional e residual para obrigatória

Multidisciplinar Área-Escola Área Projeto Obrigatória

Transdisciplinar Reconhecida Manteve-se

FORMAÇÃO PESSOAL E SOCIAL

EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

Parece-nos que existiu claramente a tentativa de corrigir alguns aspetos negativos diagnosticados com a experiência decorrente do DL n.º 289/89. Segundo Afonso (2004), dado não ter existido uma disciplina formal, a experiência após 1989 constituiu-se, como vimos, difusa e pontual, implementada de forma descontínua e pouco sistematizada. Por isso, existia a necessidade de inserção curricular para contrariar essas consequências. Com a reorganização curricular do ensino básico, é empreendido um esforço particularmente na dimensão curricular específica, para cumprir mais plenamente os intentos preconizados na Lei de 1986. A Área de Projeto e a Formação Cívica passam a integrar o horário semanal de todos os alunos, institucionalizando aquilo que até à altura não tinha sido plenamente concretizado (Igreja, 2004), quer pelas horas limitadas atribuídas à área Escola, quer pela experiência incipiente da disciplina do DPS. A Educação para a Cidadania, torna-se assim uma componente curricular universal159, de natureza transversal em todos os ciclos (tal como aconteceu com a FPS da

159 O ex-ministro da Educação, Augusto Santos Silva (2001) sublinhou que Educação para a Cidadania, além de perpassar o

currículo, deveria lidar igualmente com toda a organização escolar, bem como a forma da Escola se relacionar com os demais agentes sociais. De acordo com a posição de Campos (1997, p. 102), é a própria Lei de Bases que reconhece a função educativa da organização da escola e do sistema no domínio da educação cívica. Ele alude a duas afirmações contidas na LBSE. À educação cabe “contribuir para desenvolver o espírito e a prática democrática através da adoção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar e na experiência pedagógica quotidiana, em que se integram todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias” (alínea b) do art.º 3º). E ainda que “a administração e gestão do sistema educativo devem assegurar o pleno respeito pelas regras de democraticidade e de participação que visem a consecução de objetivos pedagógicos e educativos, nomeadamente no domínio da formação social e cívica” (n.º 1 do art.º 43º). O investigador da Universidade do Porto menciona que ao descurar a dimensão implícita, organizacional e institucional da formação pessoal e social, os efeitos serão inevitavelmente limitados.

reforma de 1989), torna-se objeto privilegiado de uma área com um tempo específico de carácter obrigatório, e não fica dependente de um professor com formação específica (note-se que a formação de docentes foi uma das razões para a impossibilidade da generalização da FPS) (Menezes, 2003).

Outro aspeto que podemos salientar é que, a partir de 2001, o relacionamento entre a FPS e a Educação para a Cidadania torna-se peculiar (Menezes, 2003). A FPS surge como um subdomínio da Educação para a Cidadania, envolvendo todas as áreas não disciplinares (incluindo Formação Cívica), Educação Moral Religiosa e um tempo de 45 minutos cuja definição ficaria a cargo do estabelecimento de ensino. Assim, a FPS é concebida, além da Formação Cívica, como um espaço que privilegia a feitura de projetos (Área Projeto) e o desenvolvimento de uma maior autonomia das aprendizagens (Estudo Acompanhado), e da dimensão espiritual (Educação Moral Religiosa) e ainda outro domínio definido pelo estabelecimento de ensino. As áreas curriculares não disciplinares passam assim a ser componentes de uma secção denominada de FPS, a qual está abrangida, como o resto do currículo, pela Educação para a Cidadania.

Devemos reconhecer que não se fundamentou a mudança terminológica, tão sensível neste domínio, nem tão pouco a reorganização estrutural que criou relações de dependência. Pensamos que tal situação induz, na área de FPS uma heterogeneidade conceptual, e alguma ambiguidade ao nível dos objetivos pedagógicos. Esse facto, a concretizar-se, pode condicionar qualquer abordagem mais centrada e convergente, enfraquecendo as potencialidades da intervenção da Escola ao nível da almejada formação integral. Com esta reorganização, com o estabelecimento da Educação para a Cidadania e da Formação Cívica, pelo menos ao nível semântico, as matérias de índole social passam a merecer a preocupação prioritária. A preocupação com as literacias ao nível político e da história, as habilidades sociais bem como algumas competências comunicacionais, as interdependências da vida social, a ênfase numa moralidade pública, ao invés de uma moralidade pessoal, são facetas mais privilegiadas nessa conceção. Por outras palavras, o domínio da educação dos valores fica desse modo menos proeminente, no sentido da consideração dos conceitos morais e da própria civilidade, e perde assim uma perspetiva transversal e global que o enquadramento axiológico de 1989 consagrava. Note-se também, que a expressão Educação para a Cidadania, como área aglutinadora, potencia uma maior convergência em problemáticas mais latas, existindo a possibilidade de descurar a perspetiva que equaciona e interpela o sistema pessoal de referências internas. Neste novo enquadramento, uma das áreas não curriculares decisivas, na consecução da Formação Pessoal e Social, é a Formação Cívica, que na própria designação, enfatiza mais questões de civismo. A

reorganização curricular de 2001 remete para um plano de menor destaque a ordem dos valores morais pessoais, sobressaindo, ao invés, o plano social e cívico160.

Foi necessário esperar pelo ano de 2006 para posteriores avanços no plano das políticas educativas, após o último enquadramento de 2001, onde os princípios orientadores da organização e gestão curricular foram constituídos. Um ano antes, em 2005, no âmbito do Ano Europeu da Cidadania, as repercussões dessa invocação à escala europeia tinham sido limitadas, tendo sido reduzido o aproveitamento da dinâmica que a iniciativa poderia ter desencadeado no sistema educacional português (Reis, 2006).