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3.2 A ORGANIZAÇÃO BUROCRÁTICA COMO RACIONALIDADE

3.2.3 A MÁQUINA FORDISTA E A INVENÇÃO DO HOMEM INTERCAMBIÁVEL

Henry Ford (1863 - 1947) foi uma das pessoas mais influentes no século XX, desenvolveu o processo de produção em massa e também pode ter dado início ao de consumo em massa. No entanto, Ford não ficou conhecido por produzir teorias inéditas sobre a organização do trabalho, na verdade o que ele fez foi aplicar com resultados impressionantes tecnologias e teorias que já existiam (HARVEY, 1992).

No início do século XX, eram utilizadas várias unidades de medida para fabricação de componentes automotivos. Praticamente cada oficina utilizava a sua, o que dificultava imensamente a montagem final de um automóvel. Ford unificou o sistema de medidas utilizado em suas fábricas e pelos seus fornecedores, possibilitando a fabricação de peças intercambiáveis e em série.

Antes de Ford, um automóvel era montado integralmente por um grupo de operários em um sistema de docas. Ford adaptou o sistema de transporte de carcaças de animais usado em abatedouros, para a fabricação de automóveis. Criou a esteira transportadora, utilizada no sentido reverso ao dos abatedouros, ou seja, no lugar de desmontar; montar. O chassi do automóvel era transportado enquanto operários posicionados em postos de trabalho, ao longo da esteira, montavam os diversos componentes, até a construção total do automóvel no final da esteira. Esse sistema possibilitou um incremento enorme na produtividade, e o advento da produção em massa. Ford conseguiu reduzir drasticamente o tempo necessário para a preparação das máquinas, tornando-as especializadas em determinadas operações e colocando-as em sequencia lógica ao longo da esteira transportadora (WOOD JR., 1992).

Ford também adaptou as teorias organizacionais de Taylor e Fayol ao seu sistema produtivo, levando a divisão do trabalho e a fragmentação de tarefas a pontos nunca antes pensados. Na esteira, cada trabalhador era especializado em uma determinada operação e ocupava um posto de trabalho do qual não se deslocava, pois tudo que precisava para a montagem do automóvel era-lhe providenciado por outros trabalhadores previamente encarregados destas tarefas. O operário típico não preparava as máquinas, não procedia a manutenção, não inspecionava a qualidade, nem tinha noção do que o seu companheiro do lado fazia (WOOD JR., 1992).

Dessa forma, os trabalhadores não necessitavam se comunicar com seus colegas para realizarem o trabalho. Por isso não se deve impressionar com o fato de que nas fábricas de Ford, que utilizavam massivamente o trabalho imigrante, os operários falavam mais de cinquenta idiomas diferentes e a maioria mal falava o inglês (WOMACK, 1992).

A simplificação e a especialização do trabalho possibilitaram a Ford desenvolver o trabalhador intercambiável. A substituição de um operário na linha de produção se tornou das tarefas mais simples, pois a aprendizagem das tarefas por outros trabalhadores novatos ocupava menos de uma semana de atenção dos instrutores. A própria tarefa de supervisão do trabalho era muito facilitada, pois a esteira agia como um grande disciplinador do trabalho, determinando sua velocidade e ritmo, possibilitando ao supervisor perceber qualquer relaxamento por parte dos operários (WOMACK, 1992).

Neste sentido, a esteira produzia o efeito panóptico, descrito por Foucault, possibilitando o olhar disciplinar, uma máquina de controle que funcionava como “um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento” (FOUCAULT, 1999, p. 145).

A organização burocrática fordista era pensada como um sistema fechado, composto por entidades autônomas, hermeticamente isoladas e protegidas das influências externas. Planejada para atingir objetivos fixos esta forma organizacional tinha muita dificuldade de inovar. Dividida como uma caixa de ovos, com seus departamentos e funções especializadas, criava dificuldades quase intransponíveis a qualquer novidade vinda de fora. A falta de canais de comunicação entre os diversos atores tornava as organizações incapazes de lidar com situações imprevistas, resultando em imobilismo, falta de cooperação e perda de tempo (MORGAN, 1996).

Sobre o modelo fordista se constituiu toda uma visão de mundo:

A fábrica fordista – com a meticulosa separação entre projeto e execução, iniciativa e atendimento a comandos, liberdade e obediência, invenção e determinação, com o estreito entrelaçamento dos opostos dentro de cada uma das oposições binárias e a suave transmissão de comando do primeiro elemento para o segundo – foi sem dúvida a maior realização até hoje da engenharia social orientada pela ordem (BAUMAN, 2001, p. 68).

O fordismo, segundo Bauman (2001), foi uma fase do capitalismo volumoso, pesado, imóvel, com suas fábricas enormes, maquinarias dedicadas e pesadas e força de trabalho massiva. As fábricas se assemelhavam a fortalezas, fechadas com altas muralhas guarnecidas por arame farpado e grandes o suficiente para “abrigar

todo o necessário para resistir a um cerco prolongado, talvez sem perspectivas” (p. 69).

Obcecado por tamanho e volume, o capitalismo fordista também tinha em conta as fronteiras, que deveriam ser firmes e impenetráveis. “O gênio de Henry Ford foi descobrir o modo de manter os defensores de sua fortaleza industrial dentro dos muros – para guardá-los da tentação de desertar ou mudar de lado” (BAUMAN, 2001, p.69).

A aplicação das tecnologias de organização do processo de trabalho, além do aumento da produtividade, provocou também uma reação generalizada por parte dos trabalhadores descontentes com o processo sistemático de desqualificação e degradação do trabalho a que eram submetidos. Esta resistência era observada pelo elevado número de faltas ao trabalho e também de demissões voluntárias. Para tentar quebrar a resistência dos operários, Ford elevou os salários para cinco dólares por dia e instituiu o turno de oito horas de trabalho (BEAUD, 1991).

A estratégia de Ford, além de assegurar uma mão de obra disciplinada e fiel, também produzia uma divisão na classe trabalhadora, diferenciando aqueles que trabalhavam na Ford, daqueles que não trabalhavam; aqueles que recebiam cinco dólares por dia, daqueles que não recebiam. No entanto, para ter direito aos cinco dólares, o operário comprometia-se em não faltar ao trabalho, não beber, não jogar, não frequentar certos lugares ditos inadequados, etc. Os cinco dólares por dia constituíam-se, dessa forma, em instrumento de controle e disciplinamento, uma verdadeira biopolítica da população operária. Mas mesmo assim, nem todos tinham direito a eles, pois ficavam fora do benefício as mulheres, os jovens com menos de 21 anos e os operários com menos de seis meses de casa (BEAUD, 1991).

Ford acreditava que um novo tipo de sociedade poderia ser construído com o uso adequado do poder das corporações. Os cinco dólares e as oito horas por dia tinham, como objetivo principal, disciplinar os operários ao trabalho na linha de montagem e, também, proporcionar renda e tempo livre para o consumo dos bens produzidos em massa (HARVEY, 1992).

O modelo produtivo idealizado por Ford disseminou-se na primeira metade do século XX, mesmo com dificuldades, por boa parte do mundo. O termo fordismo foi elaborado por Antonio Gramsci (1891-1937) para se referir à constelação de

relações culturais e políticas estadunidenses, originadas deste sistema de produção, que acabou se constituindo como regime de acumulação de boa parte do século passado.

(...) as experiências realizadas por Ford e a economia feita pela sua empresa através da gestão direta do transporte e do comércio da mercadoria produzida, economia que influiu sobre o custo de produção, permitiu melhores preços de venda. A existência dessas condições preliminares, racionalizadas pelo desenvolvimento histórico, tornou fácil racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sindicalismo operário de base territorial) com a persuasão (alto salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política habilíssima) para, finalmente, basear toda a vida do país na produção. A hegemonia vem da fábrica e, para ser exercida, só necessita de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia (GRAMSCI, 1989, p.381-2).

No período após a Segunda Guerra mundial, considerado os “anos dourados” do capitalismo, foi percebido o potencial do fordismo para a produção em massa que, unido ao keynesianismo11, “teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, (...) que esse conjunto pode ser chamado de fordista- keynesiano” (HARVEY, 1992, p. 119).

No que se refere ao modelo biopolítico, o fordismo era totalizante, dirigido a racionalizar todos os aspectos da vida social. Não somente a produção da fábrica era racionalizada, mas também a vida familiar e comunitária dos trabalhadores, com pretexto que os hábitos de trabalho começavam em casa. O próprio Ford enviava uma equipe de assistentes sociais nas casas dos trabalhadores de suas fábricas para verificar in loco se, o estilo de vida dos trabalhadores, “tinha o tipo certo de probidade moral, de vida familiar e capacidade de consumo prudente (isto é, não alcoólico) e ‘racional’ para corresponder as necessidades e expectativas da corporação” (HARVEY, 1992, p.122).

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11 O inglês John Maynard Keynes (1883-1946), após a crise de 1929, propôs uma política do trabalho a ser assumida pelo Estado, através da qual esse se encarregaria de parte dos custos da reprodução da força de trabalho. Keynes propunha uma saída capitalista que, mediante uma retomada da atividade econômica, possibilitasse reduzir o desemprego e aumentar o poder de compra do trabalhador. A teoria econômica de Keynes tentava justificar as novas políticas, por meio das quais seria procurada a integração do trabalho na sociedade capitalista. O estado-providência é resultante da síntese keynesiana, que tenta conciliar os princípios da economia liberal com as novas condições do capitalismo (BEAUD, 1991).

De forma geral, entre os anos de 1910 a 1930, os reformadores estadunidenses começaram a promover uma série de ações orientadas a assegurar a proteção e a saúde pública. No mesmo período, nos Estados Unidos, há uma proliferação de expertises relacionadas à psicologia, psicoterapia, psicologia industrial. Com o tempo, a disciplina fordista passou a buscar a autorregulação individual, como alternativa democrática à hierarquia e à coerção externa. Nesse sentido, os reformadores fordistas trataram de experimentar novas formas organizativas e práticas gerenciais, capazes de promover a automotivação e o autogoverno (FRAZER, 2003).

3.3 A PSICOLOGIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E A PASSAGEM DA DISCIPLINA PARA O (AUTO) CONTROLE

As teorias organizacionais, baseadas nas teorias de Taylor, Fayol, Ford, dentre outros, foram áreas dominadas por engenheiros e matemáticos, talvez seja este o motivo de suas abordagens francamente mecanicistas. A escola clássica foi caracterizada pela abordagem disciplinadora e coerciva, baseada na fragmentação e desqualificação do trabalho que, tinham como objetivo, o aumento da produção e do lucro das organizações.

Na escola clássica da administração, o trabalhador é entendido como homo

economicus e representado como um ser passivo e previsível, cujo comportamento

pode ser administrado apenas por incentivos financeiros, treinamento e vigilância, garantindo obediência e produtividade. No entanto, a resistência operária contra a utilização desses métodos, materializada em faltas ou abandonos sistemáticos do trabalho, greves, paralisações e sabotagens, reduziam a produtividade e os rendimentos caíam assustadoramente, tornando-se imperativo para o capital entender a subjetividade operária.

A necessidade de ajustar o trabalhador ao modo capitalista de produção e de superar sua resistência, faz com que nasça nos departamentos acadêmicos das universidades, uma série de disciplinas que tinham como objeto de estudo o trabalhador. Segundo Braverman, a Psicologia industrial e a Fisiologia industrial surgem para “aperfeiçoar os métodos de seleção, adestramento e motivação dos trabalhadores e foram logo ampliadas numa pretensa Sociologia industrial, para o estudo da oficina como sistema social” (BRAVERMAN, 1987, p.125).

Com o desenvolvimento da psicologia científica nasce um novo tipo de controle juntamente com conhecimento e poder sobre os indivíduos que resistem à normalização disciplinar. Nesse contexto, entra em cena a contribuição das ciências humanas para a teoria das organizações e o foco muda de homo economicus para

homo social (WAHRLICH, 1977).

Os psicólogos e sociólogos da organização do trabalho se interessaram pelo estudo da organização como um sistema de controle, baseado no reconhecimento da motivação dos indivíduos. Encaravam a organização como algo dinâmico, contrastando com o conceito estático das doutrinas da escola clássica. Preocupavam-se com a coisa em processamento e não com seus aspectos estruturais e, encaram a organização como algo vivo, móvel e fluído. A organização, para os psicólogos, era resultado de uma série de transigências que levam em conta um número infinito de possibilidades em torno de uma situação específica. A organização representa pessoas que reagem e respondem a estímulos que não podem ser definidos com precisão (WAHRLICH, 1977).