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4.3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL: DO CAPITAL

4.3.4 GOVERNANÇA: A NOVA ARTE DE GOVERNAR SEM GOVERNO

A expressão governance (governança) surge a partir de documentos elaborados principalmente pelo Banco Mundial, em meados da década de 1990. Segundo o documento Managing Development: The Governance Dimension (Gestão do Desenvolvimento: A Dimensão da Governança) publicado pelo Banco Mundial em 1991, o interesse do Banco no conceito de governança nasce a partir da eficácia dos esforços de desenvolvimento.

Para o Banco Mundial (1991), governança é o exercício de autoridade, controle, gerenciamento e governo. Para o Banco, o que interessa em termos de governança é a maneira pela qual o poder é exercido em um país na administração dos recursos econômicos e sociais para o desenvolvimento. A preocupação do Banco Mundial com a gestão do desenvolvimento se estende além da capacidade do setor público de criar regras, instituições e um quadro previsível e transparente para a condução dos negócios públicos e privados e à responsabilização (accountability) do desempenho econômico e financeiro.

Segundo o Banco Mundial (1991), a “boa governança” (good governance) é essencial para um desenvolvimento forte e equitativo e um complemento fundamental para a política econômica. Nesta boa governança, os Governos

desempenham um papel-chave ao formular regras para que os mercados funcionem de maneira eficiente e ao solucionar problemas ou falhas destes mercados. Para desempenhar este papel, além de receitas e de agentes para coletar estas receitas, é necessário também, sistemas de responsabilização, sistemas adequados e confiáveis de informação e eficiência na gestão dos recursos.

Segundo Diniz (1995), a preocupação do Banco Mundial com a governança desloca o foco da atenção nas implicações puramente econômica da ação estatal para uma visão mais abrangente, envolvendo dimensões sociais e políticas da gestão pública. A capacidade de governo não seria avaliada apenas pelos resultados das políticas governamentais, mas sim pela forma pela qual o governo exerce seu poder.

Roseneau (2000) esclarece que governança não é o mesmo que governo. Os dois conceitos “referem-se a um comportamento visando a um objetivo, a atividades orientadas para metas” (p.15). Entretanto, governo se refere a atividades sustentadas por uma autoridade formal “pelo poder de polícia que garante a implementação das políticas devidamente instituídas” (Idem). Já governança sugere atividades “apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências” (Idem).

Quanto ao conceito de governabilidade, Santos (1997) diz que ele se refere à dimensão estatal do poder e diz respeito a suas condições sistêmicas e institucionais sob as quais se dá o exercício do poder, tais como as características do sistema político, a forma de governo, as relações entre os Poderes, o sistema de intermediação de interesses, enfim, diz respeito à arquitetura institucional.

De outra forma, governança se refere a um fenômeno mais amplo do que o governo. Governança abrange as instituições governamentais, mas também implica em mecanismos informais, de caráter não governamental, que tem como objetivo fazer com que pessoas e organizações dentro de sua área de atuação “tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas” (ROSENEAU, 2000, p. 16).

A governança é um sistema de ordenação que depende de sentidos intersubjetivos, mas também de constituições e estatutos formalmente instituídos. Para dizê-lo mais claramente, a governança é um sistema de ordenação que só funciona se for aceito pela maioria (ou pelo menos pelos atores mais poderosos de seu universo), enquanto os governos podem funcionar mesmo em face de ampla oposição à sua política. Nesse sentido, a governança é sempre eficaz, quando se trata das funções necessárias para a persistência sistêmica, ou então não é concebida para existir efetivamente (com efeito, não se fala em uma governança ineficaz, mas sim de anarquia ou caos). Por outro lado, os governos podem ser bastante ineficazes sem que deixem de ser considerados como existentes – diz-se simplesmente que são “fracos”. Portanto, pode-se falar em governança sem governo – sem mecanismos regulatórios em uma esfera de atividade que funcione efetivamente mesmo que não tenha o endosso de uma autoridade formal (2000, p.16).

Roseneau (2000) explica que no mundo não é difícil encontrar várias autoridades formais sem apoio de mecanismos regulatórios adequados, são os chamados – governos sem governança –,países que sofrem divisões profundas na sua sociedade e cuja ação política se encontra paralisada. Existe uma estreita ligação entre governança e ordem. “Governança corresponde à ordem mais a intencionalidade” (p.16).

Segundo Rosenau (2000), a ordem global consiste em uma série de acordos e entendimentos pelos quais flui a política mundial. São acordos nas áreas de mercado, território, transporte, imigração, direitos humanos, etc. Por outro lado, existem entendimentos subjacentes à ordem mundial construídos exatamente para manter esta ordem. Governança e ordem são fenômenos inter-relacionados.

Como atividades intencionais planejadas para regularizar os entendimentos que sustentam os assuntos mundiais, a governança obviamente modela a natureza da ordem mundial prevalecente, o que não poderia fazer se a estrutura que constitui essa ordem não o facilitasse. Portanto, a ordem é ao mesmo tempo uma precondição e uma consequência do governo. Uma coisa ajuda a explicar a outra, e nenhuma parece em primeiro lugar. Não pode haver governança sem ordem, e não pode haver ordem sem governança (a não ser que os períodos de desordem sejam considerados uma modalidade de ordem) (ROSENEAU, 2000, p.20).

No entender de Cox (2000), a ordem não deve ser percebida como uma situação social isenta de conflitos ou turbulências. “Ordem é todo modelo ou regularidade de interação que encontremos em qualquer situação social” (p.189).

Toda ordem implica em propósito ou intenção. Nesse sentido, existem diferentes tipos de ordens que promovem objetivos e valores diversos, no entanto, pelo menos três valores particulares transcendem a qualquer ordem: a segurança contra a violência, o princípio do pacta sunt servanda, ou seja, "os pactos devem ser respeitados" ou "os acordos devem ser cumpridos" e o respeito relativo às posses ou propriedades.

Cox (2000) também frisa a diferença entre “ordem mundial” e “ordem internacional”. A primeira é transitória e se refere à ordem prevalecente em toda a humanidade, sem levar em conta como a humanidade está instituída. A segunda diz respeito a uma condição particular de institucionalização, historicamente limitada e de um sistema de Estados nacionais.

Instituições são formas aceitas e compreendidas de organizar certos aspectos da ação social, como por exemplo, o matrimônio, a família, organizações formais como as Nações Unidas, o FMI, o próprio Estado. “As instituições são os modos como as práticas sociais, desenvolvidas em reação a problemas particulares que confrontam uma sociedade, se transformam em rotinas compostas por conjuntos específicos de regras” (COX, 2000, p. 190).

Segundo Hardt e Negri (2001), a criação da Organização das Nações Unidas consolidou o conceito de ordem internacional estendendo-o no sentido de uma ordem global. A criação da ONU “aponta igualmente para uma nova fonte positiva de produção jurídica, eficaz em escala global – um novo centro de produção normativa que pode desempenhar um papel jurídico soberano” (p.22).

Ao término da Segunda Guerra Mundial, ocorreu um aumento marcante dos laços internacionais e consequentemente da ordenação regulatória e cooperativa com o objetivo de sua administração. Os laços de interdependência passaram a ser aceitos como um traço fundamental das relações internacionais. Como reflexo das políticas econômicas liberais e vínculos econômicos em vários níveis, envolvendo comércio, investimentos estrangeiros e empresas transnacionais, fizeram com que os Estados fossem perdendo autonomia na condução da política econômica interna e internacional (ZACHER, 2000).

As atividades de corporações já não são definidas pela imposição de comando abstrato e pela organização de simples roubo e de permuta desigual. Mais propriamente, elas estruturam e articulam territórios e populações. Tendem a fazer dos Estados-nação meramente instrumentos de registro do fluxo de mercadorias, dinheiro e populações que põem em movimento. As corporações transnacionais distribuem diretamente a força de trabalho pelos mercados, alocam recursos funcionalmente e organizam hierarquicamente em diversos setores mundiais de produção. O complexo aparelho que seleciona investimentos e dirige manobras financeiras e monetárias determina uma nova geografia do mercado mundial, ou, com efeito, a nova estruturação biopolítica do mundo (HARDT; NEGRI, 2001, p.50).

Ainda no âmbito das Nações Unidas, em 1990, foi instituída uma comissão independente composta por 28 membros com o propósito de sugerir caminhos possíveis e preparar um relatório sobre as oportunidades para a governança global. Dentre os membros da comissão, pode-se citar: Ingvar Carlsson, Suécia, primeiro ministro; Barber Conable, Estados Unidos, presidente do Banco Mundial; Jacques Delors, França, presidente da Comissão Europeia; Enrique Iglesias, Uruguai, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento; Celina Vargas do Amaral Peixoto, Brasil, diretora da Fundação Getúlio Vargas; Ig Patel, Índia, diretor executivo do Fundo Monetário Internacional; Adele Simmons, Estados Unidos, presidente da Fundação MacArthur; Brian Urquhar, Reino Unido, representante da Fundação Ford (LAMB, 1996).

A comissão não era um organismo oficial das Nações Unidas, no entanto, foi subscrita pelo Secretário Geral das Nações Unidas e financiada por meio de dois fundos do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), nove governos nacionais e fundações diversas, incluindo a Fundação MacArthur, a Fundação Ford e a Carnegie Corporation (LAMB, 1996).

No relatório final, a Comissão considera que os eventos mundiais desde a criação da Organização das Nações Unidas em 1945, combinando com os avanços da tecnologia, a revolução da informação e, agora a consciência global de uma catástrofe ambiental iminente, criaram um clima para que as pessoas do mundo reconheçam a necessidade e os benefícios de uma governança global.

A Governança global, de acordo com o relatório, não implica em um governo mundial ou federalismo mundial, a governança global é um novo sistema de

governo. Não existe um modelo histórico para o sistema nele proposto, nem existe qualquer método pelo qual os governados possam decidir se querem ou não querem ser regidos por este sistema. As decisões tomadas por órgãos administrativos, por organismos delegados ou acreditados, e organizações da sociedade civil, já estão sendo implementadas com base nas recomendações publicadas pela Comissão (LAMB, 1996).

O relatório da Comissão foi publicado pela Oxford Univesity Press em 1995, com o título Our Global Neighborhood, nele o termo governança é definido como:

A totalidade das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram seus problemas comuns. É um processo contínuo pelo qual é possível harmonizar interesses conflitantes ou diferentes, e realizar ações cooperativas. Governança diz respeito não só a instituições ou regimes formais autorizados a impor a obediência, mas também a acordos informais que atendam a interesses de pessoas e instituições (OUR GLOBAL NEIGHBORHOOD, 1995, tradução nossa).

O mesmo relatório afirma que, em nível local, a governança pode incluir uma cooperativa para instalar e manter um sistema de distribuição de água para a população, um conselho comunitário para administrar a reciclagem de lixo, um grupo de usuários que se reúnem com empresários e o poder público para gerir o transporte público, dentre outras iniciativas.

No plano global, Governança era vista primeiramente como sendo apenas as relações intergovernamentais, mas agora já pode ser entendida como envolvendo organizações não governamentais (ONGs), movimentos de cidadãos, corporações multinacionais e o mercado de capitais global. Com estes interagem os meios de comunicação em massa, que exercem hoje enorme influência (OUR GLOBAL NEIGHBORHOOD, 1995, tradução nossa).

Neste sentido, vem corroborar o conceito de uma nova ordem política global denominada de Império por Hardt e Negri:

O conceito de Império caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. Antes e acima de tudo, portanto, o conceito de Império postula um regime que efetivamente

abrange a totalidade do espaço, ou que de fato governa todo o mundo “civilizado”. Nenhuma fronteira territorial confina o seu reinado. Em segundo lugar, o conceito de Império apresenta-se não como um regime histórico nascido da conquista, e sim como uma ordem que na realidade suspende a história e dessa forma determina, pela eternidade, o estado de coisas existente. Do ponto de vista do Império, é assim que as coisas serão hoje e sempre – e assim sempre deveriam ter sido. Dito de outra forma, o Império se apresenta, em seu modo de governo, não como um momento transitório no desenrolar da história, mas sim como um regime sem fronteiras temporais, e, nesse sentido, fora da História ou no fim da História. Em terceiro lugar, o poder de mando do Império funciona em todos os registros da ordem social, descendo às profundezas do mundo social. O Império não só administra um território com sua população, mas também cria o próprio mundo que ele habita. Não apenas regula as interações humanas como procura reger diretamente a natureza humana. O objeto do seu governo é a vida social como um todo, e assim o Império se apresenta como forma paradigmática de biopoder (HARDT; NEGRI, 2001, 14-15).

Segundo Hardt e Negri (2001), à primeira vista, o quadro constitucional mundial pode parecer um conjunto confuso e desordenado de controles e de organizações representativas. Os elementos constitucionais globais estão distribuídos em um largo espectro de Estados-nação, grupos de Estados-nação e organizações transnacionais de todos os tipos. No entanto, quando se estuda mais a fundo a configuração do poder global, pode-se reconhecer uma estrutura em forma de pirâmide composta de três camadas.

A primeira camada é formada por três níveis. No cume da pirâmide está a única superpotência mundial que detém a hegemonia do uso mundial da força, os Estados Unidos, que atua em colaboração com a Organização das Nações Unidas. Em um segundo nível, ainda na primeira camada, está o grupo formado por Estados- nação que controlam os instrumentos monetários mundiais. Estes Estados-nação estão ligados entre si por uma série de organismos, como o G7, os clubes de Paris e de Londres, Fórum Econômico Mundial de Davos. No último nível da primeira camada está um grupo heterogêneo de organizações que exercem hegemonia militar ou monetária a nível global, como a OTAN, o FMI, o Banco Mundial, dentre outros (HARDT; NEGRI, 2001).

A segunda camada é formada por dois níveis. No primeiro, estão as empresas transnacionais que estendem no mercado mundial “redes de fluxo de capital, de fluxo de tecnologia, de fluxo de populações e coisas do gênero” (HARDT; NEGRI, 2001, p.331). Em um segundo nível está o restante dos Estados-nação que

desempenham várias funções: “mediação política no que respeita aos poderes hegemônicos globais, regateio no que respeita às empresas transnacionais, e redistribuição de renda, de acordo com necessidades biopolíticas em seus próprios e limitados territórios” (Idem, p.332),

Por fim, a última camada e mais ampla é formada por grupos que “representam interesses populares no arranjo global de poder” (HARDT; NEGRI, 2001, p.332). O Povo Global é representado por organizações que são relativamente independentes dos Estados-nação e do Capital, conhecidas como terceiro setor, formado por organizações não governamentais, organizações tradicionais da sociedade civil e organizações religiosas que, juntamente com a mídia, canalizam as necessidades e desejos das populações em formas que possam ser representadas dentro das estruturas globais de poder (HARDT; NEGRI, 2001).

Todo país dirige a maior parte de sua política no primeiro setor – o mercado – e no segundo setor – o governo – e frequentemente não se importa com o terceiro setor – a cultura –, sem perceber o papel fundamental que ela desempenha no estabelecimento da confiança social, da viabilização dos mercados e das transações comerciais. As organizações do terceiro setor atendem milhões de pessoas em comunidades de todo o mundo. São as instituições responsáveis pela preservação e melhoria de todas as dimensões das culturas locais. São elas que executam a maior parte das funções básicas necessárias para a manutenção das sociedades democráticas. São as organizações do terceiro setor que questionam os abusos institucionais do poder e articulam reivindicações sociais. É nelas que as pessoas aprendem como praticar valores cívicos e exercer suas atividades democráticas (RIFKIN, 2001).

As instituições transnacionais como o Banco Mundial e o FMI, estão começando a entender o relacionamento entre a cultura e o comércio. Durante décadas, essas instituições financiaram projetos de desenvolvimento econômico em países emergentes, crendo que somente economias fortes poderiam estimular o desenvolvimento social. Depois de muitos fracassos, estas instituições começaram a mudar de foco e suas prioridades passaram para o financiamento de projetos de desenvolvimento social, entendendo que as comunidades fortes e com uma cultura

sustentada são pré-requisitos para o desenvolvimento econômico e não um benefício dele (RIFKIN, 2001).

4.3.5 CONHECIMENTO, INOVAÇÃO, TRABALHO IMATERIAL E PRODUÇÃO