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Michel Foucault, que buscou realizar uma analítica do poder, define o poder como o modo de ações complexas exercidas por uns sobre outros. Foucault caracteriza o poder da seguinte forma:

Multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esforço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação de Leis, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1998, p.88-89).

Para Foucault, o poder não tem centro, nem somente vem de cima; ele vem de baixo, dos lados, ele é onipresente e se produz em todos os pontos. “O poder está em toda parte, não porque englobe tudo e sim porque provem de todos os lugares” (1998, p.89). O poder não tem substância, não é uma coisa que pode ser adquirida, não é uma instituição ou estrutura, é “uma situação estratégica complexa em uma sociedade determinada” (Ibidem). Sua distribuição não é igualitária, nem justa. Na verdade o que existe são relações de poder sempre instáveis, desiguais e móveis exercidas a partir de diversos pontos. Relações de poder que não são subjetivas, mas racionais, explícitas, intencionais, calculadas, têm alvos e objetivos claros e perfeitamente definidos (FOUCAULT, 1998),

Nestas relações de poder, não existem as figuras de dominadores e dominados, pois as múltiplas correlações de força atuam na sociedade como um todo, tanto no sistema produtivo, quanto nas famílias, nas instituições, nos pequenos grupos e “(...) servem de apoio a amplos efeitos de clivagem que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si, evidentemente, em troca procedem a redistribuições, alinhamentos, arranjos de série, convergência desses afrontamentos locais” (FOUCAULT, 1998, p. 90).

Foucault reitera que tudo isto tem a liberdade como elemento sine qua non, pois,

Quando definimos o exercício do poder como um modo de ação sobre a ação dos outros – no sentido mais extenso da palavra, incluímos um

elemento importante: a liberdade. O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relações de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se de uma relação física de constrangimento), mas quando, justamente, ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há, portanto um confronto entre poder e liberdade (...) (FOUCAULT, 1995, p. 244).

As relações de poder permeiam todas as relações humanas, sejam elas econômicas, de trabalho, de saúde, de conhecimento, de gênero, dentre outras. No entanto, para Foucault devemos evitar a visão do poder somente como algo negativo, que exclui, reprime e censura, pois o poder tem o seu lado positivo e produtor, pois entre outras coisas, ele produz conhecimento, identidades, subjetividades. “(...) ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam dessa produção” (FOUCAULT, 1999, p. 172). Ou seja,

(...) se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos em nível do desejo – como se começa a conhecer – e também em nível de saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o corpo foi possível um saber fisiológico, orgânico (FOUCAULT, 2001, p.148).

Segundo Foucault (1995, p. 243), as relações de poder funcionam mais no sentido da aquisição de consentimentos do que pelo uso da violência, neste sentido, o exercício do poder é “um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável”. Em seu extremo, o exercício do poder pode recorrer à violência, coação ou simplesmente impedir por qualquer meio a ação de outros, no entanto, “é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações” (Ibidem).

Desta forma, o termo conduta exprime o que há de mais específico nas relações de poder. Conduta pode significar tanto o ato de conduzir os outros, como a maneira do indivíduo se comportar dentro de parâmetros predeterminados. O exercício do poder então consiste em “conduzir condutas” ou, poder-se-ia dizer, a conduta da conduta (FOUCAULT, 1995, p.244).

2.1.1 O DISPOSITIVO

Foucault analisa o exercício do poder como uma tecnologia, uma prática na qual as táticas (os meios) e as estratégias (os fins), com base na regularidade e racionalidade, são pensadas, aperfeiçoadas e desenvolvidas sem cessar. Assim, o exercício do poder, na sua prática, se utiliza de dispositivos, ou seja, de “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (2001, p.244), ou em outras palavras, ”o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (Ibidem).

Foucault (2001) frisa que existe uma relação entre os elementos heterogêneos que formam o dispositivo: “entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes” (p.244). O dispositivo também pode assumir certas configurações para resolver problemas específicos:

(...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe ai um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou−se o dispositivo de controle−dominação da loucura, da doença mental, da neurose (FOUCAULT, 2001, p.244).

Como parte do jogo de poder, o dispositivo pode ser mapeado em pelo menos três pontos fundamentais: a heterogeneidade dos elementos que o compõe; sua função estratégica inscrita numa relação de poder; e sua composição marcada pelo entrecruzamento entre as relações de poder e as relações de saber. Em outras palavras, o dispositivo se refere a “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por ele” (FOUCAULT, 2001, p. 246).

Neste caso, a estratégia é o que permite que uma determinada relação de forças possa se manter, estabilizar e acentuar. No entanto, as estratégias que coordenam as relações de poder podem produzir “movimentos de retorno”, ou seja, se inventar, modificar, reajustar, bifurcar-se, produzir novos efeitos e avançar em domínios anteriormente não previstos. (FOCAULT, 2001).

Por sua vez, Gilles Deleuze, procurou desenvolver mais o conceito de dispositivo em Foucault, por meio de uma releitura do conceito. Para Deleuze, o dispositivo é uma máquina de fazer ver e fazer falar, constituída de “um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferentes” (1996, p.1). Linhas que estão sempre em desequilíbrio e que seguem direções diversas. O conceito de dispositivo tem como base as três grandes instâncias descritas por Foucault, que são: o poder, o saber e a subjetividade.

A primeira instância, o poder, se refere às formas pelas quais é possível determinar as relações e disposições estratégicas entre os elementos do dispositivo; A segunda diz respeito à produção do saber e a constituição de uma rede de discursos; e a terceira diz respeito à subjetividade e a formação de sujeitos. Estas instâncias não possuem contornos definitivos, estão sempre em desequilíbrio, sempre em produção. Deleuze (1996) pensa o dispositivo em termos de um conjunto de linhas em movimento que o constituem, atravessam e o conduzem.

A primeira destas linhas Deleuze denomina de linhas de visibilidade. A visibilidade no dispositivo é composta pelas linhas de luz que tanto podem mostrar quanto esconder formas, figuras, objetos. “Cada dispositivo tem seu regime de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga, distribuindo o visível e o invisível, fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela não existe” (DELEUZE, 1996, p.1). Como, por exemplo, a arquitetura da prisão de Bentham (2008) que permite ao vigilante ver sem ser visto pelo prisioneiro.

Se as linhas de visibilidade fazem dos dispositivos, máquinas de fazer ver, as linhas que fazem deles máquinas de fazer falar são chamadas por Deleuze de linhas de enunciação. As linhas de enunciação são por elas próprias enunciadas. O quê as linhas enunciam não são sujeitos nem objetos, mas regimes políticos, éticos, estéticos, definidos pelo enunciável e pelo visível, “uma ciência, num dado momento, ou um gênero literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, são definidos precisamente pelos regimes de enunciados a que dão origem” (DELEUZE, 1996, p.1).

Em terceiro, os dispositivos contém o que Deleuze chama de linhas de força. Elas estão ligadas às linhas de visibilidade e de enunciação de ponta a ponta, envolvendo-as, fortalecendo os trajetos de visibilidade e enunciação. Elas levam e trazem o ver e o dizer. “Invisíveis e indizíveis” elas são a dimensão do poder, “a terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, variável com os dispositivos“ (DELEUZE, 1996, p. 2).

Um quarto elemento do dispositivo são as linhas de subjetivação. Uma dimensão do dispositivo que está sempre em processo, nunca pronta, nunca acabada. As linhas de subjetivação em lugar de enfrentar as linhas de visibilidade, de enunciação e de força; delas escorregam, desviam, escapam. “É uma linha de fuga. Escapa às outras linhas, escapa-se-lhes” (DELEUZE, 1996, p. 2). Voltadas para si mesmas, atuam sobre si mesmas. O si próprio, não se reduz nem ao saber, nem ao poder. “É um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia.” (Ibidem).

Em síntese, os dispositivos são constituídos pela mistura e entrelaçamento de todas as linhas, de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, dentre outras, que se completam, incitam umas às outras, se sedimentam, criam novas curvas e bifurcações. Isto produz pelo menos duas consequências em prol de uma filosofia do dispositivo (DELEUZE, 1996).

Primeiro, não existe possibilidade de universalização, o que possibilitaria enquadrar ou delimitar os dispositivos. “O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o Objeto, o Sujeito não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação imanente a dado dispositivo”, e mais,

“cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir, distintos dos que operam noutro dispositivo” (DELEUZE, 1996, p. 3).

A segunda consequência seria uma mudança de rota, de direção, que deixe de lado o eterno e passe a assimilar o novo. O novo não como moda, mas sim como variação criativa inerente ao dispositivo;

Assim, todo o dispositivo se define pelo que detém em novidade e criatividade, e que ao mesmo tempo marca a sua capacidade de se transformar, ou de desde logo se fender em proveito de um dispositivo futuro, a menos que se dê um enfraquecimento da força nas linhas mais duras, mais rígidas, ou sólidas. E, na medida em que se livrem das dimensões do saber e do poder, as linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também, na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do antigo dispositivo (DELEUZE, 1996, p.4).

Assim, “pertencemos ao dispositivo e nele agimos”. O dispositivo é o que move o mundo, mas também é resultado deste próprio mundo. A atualidade de um dispositivo é sempre a novidade em relação a outros que o precederam.

O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo em que vamo-nos tornando, aquilo que somos em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir outro. É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais) e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual (DELEUZE, 1996, p.4).