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2.3 O momento da morte

2.3.3 A morte ao seu tempo – ortotanásia

Visando identificar a morte ao seu tempo, contrapondo -se a conceitos de antecipação ou prolongamento da vida, utiliza-se o termo «ortotanásia». Também de origem grega, no qual o termo «orto» significa «correto», é utilizado para identificar a morte correta, qual seja aquela que acontece naturalmente.

Sob o argumento de manutenção da qualidade de vida do paciente, mesmo em situações de terminalidade, a ortotanásia é considerada como um conceito eticamente aceitável, que considera a autonomia do paciente, permitindo que o período de fim de vida seja reapropriado por este.

Da mesma forma que se busca assegurar a vida digna a toda pessoa, também no momento final se reivindica tratamento com dignidade, reconhecendo o direito à liberdade de escolha, de forma que o paciente poderia optar em se submeter ou não a um novo tratamento, assim como interrompê-lo, mediante avaliação própria das consequências e riscos envolvidos, de forma a não prolongar seu sofrimento.

O trâmite do reconhecimento da Ortotanásia pelo Conselho Federal de Medicina no Brasil é um bom exemplo das dificuldades que o tema apresenta.

A questão relativa à ortotanásia foi tratada pelo Conselho Federal de Medicina CFM – que aprovou em 2006 a Resolução nº 1.805/2006. Inúmeras discussões e divergências surgiram sobre sua aplicabilidade, no campo da legalidade da sua prática278. Foi objeto de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, na

278 Referia o artigo 1º da resolução: Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM).

Resolução CFM Nº 1.805/2006 (Publicada no D.O.U., 28 nov. 2006, Seção I, pg. 169). Na fase terminal de

enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Disponível em:

qual foi concedida liminar para suspender sua eficácia. Diante da decisão judicial, o CFM entendeu de afastar a Resolução, perdendo a ação o seu objeto, muito embora o mesmo julgador, ao final, tenha julgado improcedente a ação, revogando a liminar279.

A polêmica instaurada, possivelmente, decorre da não compreensão por parte da sociedade que via aqui uma carta branca aos médicos para abreviar a vida dos pacientes. Cabette chama a atenção de que as disposições regulamentares em questão não eram bastante claras na sua formulação, gerando ambiguidades e insegur ança280.

Veio então editado o Novo Código de Ética Médica em 17 de setembro de 2009 - Resolução CFM Nº 1.931 - que em seu art. 41 veda ao médico a utilização de meios para abreviar a morte do paciente. Mas no parágrafo único estabelece como ética a prática d a ortotanásia, dessa vez, delimitado seu âmbito de aplicação, de forma a não gerar ambiguidades281.

Os argumentos contrários à prática da ortotanásia amparam-se na obrigação do médico de lutar pela vida do paciente, entendendo que refutar ou suspender um tratamento estaria indo contra esse dever. Ainda, referem que se trata de uma eutanásia passiva, ou por omissão, na medida em que a decisão implica em não iniciar ou suspender uma medida vital com o intuito de se deixar morrer. Por fim, é salientada a finalidade econômica por trás da medida, em razão dos altos custos envolvidos na manutenção dos pacientes, motivação que não pode conduzir uma decisão sobre a vida da pessoa.

Os argumentos merecem atenção. A linha divisória entre a prática da ortotanásia, acolhida como ética, e a prática da eutanásia, mais combatida pelas várias razões já expostas, nem sempre é exatamente clara.

A utilização de um termo diverso veio, possivelmente, na tentativa de se contrapor ao termo «eutanásia», que ao longo do tempo e por r azões históricas adquiriu

279 Sentença disponível em: <www.s.conjur.com.br/dl/sentenca-resolucao-cfm-180596>. Acesso em 22 nov. 2015.

280 O autor explicita sua preocupação com a vagueza tanto das normas regulamentadoras como legais sobre o tema: )sso é bastante preocupante, principalmente tendo em conta a diversidade de modalidades e classificações de eutanásia e a recorrente confusão conceitual entre ortotanásia e eutanásia passiva, mesmo entre os juristas . CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e ortotanásia: comentários à Resolução 1.805/06 CFM: aspectos éticos e jurídicos. Curitiba: Juruá, 2009. p. 110.

281 É vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal . CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.931, de 17 de

uma conotação depreciativa e indevida, como já analisado. Como se vê, também na esfera da ortotanásia não se está imune às críticas e receios, mas encontra -se em uma esfera de maior aceitabilidade.

Assim, ainda que essa variação de terminologia possa ser desnecessária, sob o argumento de que se estaria na verdade apenas utilizando um conceito antigo de eutanásia, tem sua importância na medida em que consegue angariar maior simpatia e possibilidade de aplicação.

Ademais, em uma oposição clara contra a obstinação terapêutica, e não propondo abreviar a vida, mas sim deixar a morte chegar, apropriando -se da morte natural, processo inevitável, apresenta vantagens inegáveis na cultura atual, compatibilizando tanto defensores do direito à vida como defensores do direito de autodeterminação do paciente: aqueles porque não se trataria de abreviar a vida, mas deixar seguir seu curso; esses porque a autonomia pessoal estaria em exercício quando da recusa ou suspensão de um tratamento.

Embora em muitos casos seja sutil a diferença entre os conceitos, a intenção terá papel dominante para estabelecer essa diferença. Na eutanásia passiva, ainda que o fim último seja aliviar o sofrimento, a omissão visa causar a morte do paciente, enquanto que, na ortotanásia, a omissão, quer por recusa ou suspensão de um determinado tratamento, não é o que causará a morte, mas apenas não prolongará esse período de fim de vida, deixando que a morte ocorra no seu tempo certo.

O conceito de ortotanásia surge, pois, em contraposição à prática da distanásia. A obsessão em manter a vida biológica a qualquer custo acabou por gerar uma prática médica de prolongamento irracional do processo de morte. As UTIs permitem aos profissionais da área da saúde a utilização de tratamentos que mantém vivo o organismo biológico seriamente enfermo, desta forma adiando o momento da morte até limites que antes sequer eram imaginados282.

É, pois, de fatos concretos que se passou a perquirir a necessidade de maiores cautelas na tomada de decisão, de forma a avaliar com clareza riscos e benefícios a cada nova etapa do tratamento, com vistas a reconhecer, tanto pelo médico como pelo paciente quando é hora de parar, pois o prosseguimento do tratamento causará mais dor e sofrimento.

Essa decisão exige entrosamento entre o médico, o paciente e seus familiares. A autonomia do paciente é relevante e mesmo preponderante, pois é o primeiro que deve expor até onde está disposto a lutar pela sua vida. Contudo, não pode ser uma decisão dissociada das orientações médicas, que é a mais adequada a indicar os efeitos do tratamento proposto.

Essa prática, pois, visa evitar o prolongamento do processo de final de vida para pacientes terminais, e mantém a responsabilidade médica nos cuidados que se fizerem necessários, de forma que a decisão, quando adequadamente tomada em conjunto com o paciente e seus familiares, não se enquadrará como negligência médica.

Reitere-se que mesmo quando o profissional da saúde nada mais tem a fazer que possa levar à cura, ele é responsável pelos cuidados do paciente, pois sua obrigação é também a de evitar dor e sofrimento.

Segundo conceitos médicos, a terminalidade do paciente é determinada pelo diagnóstico de doença incurável, nos quais se prevê que a morte sobrevenha dentro de um prazo de seis meses. Embora se esteja falando de matéria que não apresenta grau de certeza absoluto, a evolução nessa área do conhecimento tem permitido diagnósticos cada vez mais precisos. Esse período foi estabelecido pelos peritos do Hastings Center e tem nítido valor indicativo283.

A terminalidade, pois, se apresenta quando já não haja possibilidade de cura, de forma que os tratamentos que podem ser feitos nada acrescentam de benefício. Ou seja, sabe-se que a pessoa vai morrer em um curto período de tempo, independente do que seja feito, de forma que, em dado momento é necessário reconhecer que não há mais nada a ser feito em termos curativos, passando-se ao que se denomina de tratamento paliativo, para minimizar dores e propiciar o conforto do paciente284.

A decisão pela recusa ou interrupção de um tratamento com fins curativos, pois, não implica em abandono do paciente pelo seu médico. Ao contrário, é talvez o momento

283 Cfr. SERRÃO, Daniel. Os cuidados paliativos. In: BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.). Do início ao

fim da vida: atas das primeiras jornadas de bioética. Publicação da Faculdade de Filosofia. Funchal, 2005.

p. 174.

284 Refere Serrão: O essencial é que o médico, de preferência em consulta de grupo, tendo em conta a história completa da doença e da sua evolução com os tratamentos instituídos, bem como os resultados obtidos, sucessivamente, usando indicadores globais como o índice de Karnovsky, e a sua experiência profissional, possa concluir, com suporte científico bastante, que se trata de uma pessoa com uma doença incurável e um prognóstico fatal a curto prazo. Sem a possibilidade voluntarista de que enquanto há vida há esperança […] SERRÃO, Daniel. Os cuidados..., p. 174.

em que o paciente necessita de maior atenção, ainda que com outro enfoque, não mais o de cura, mas o de minimização da dor.

2.4 Procedimentos terapêuticos para amenizar dor e sofrimento – cuidados