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1.6 Quando a manifestação não é mais possível – casos que chegaram à justiça

1.6.5 Análise das decisões judiciais

Os quatro acórdãos selecionados tratam da questão referente à interrupção de tratamento/suporte vital já em andamento, especificamente, a supressão da alimentação e hidratação em paciente em estado vegetativo persistente. Nas quatro situações relatadas, embora referentes a períodos e locais diversos, tratava-se de quadro clínico similar, em que foram mantidas atividades cerebrais motoras, inclusive de respiração, nos quais a alimentação e a hidratação eram feitas por sonda nasogástrica.

Não é de se estranhar essa ocorrência, pois se trata de uma das situações limítrofes em que a tomada de decisão envolve variáveis que precisam ser encaradas, dificilmente solucionada na relação entre o médico e os familiares do paciente. Ademais, documentos que constem diretivas antecipadas de vontade ainda são bastante raros e em regra o assunto é tratado quando do desenvolvimento de uma doença ou frente ao envelhecimento. Já nos casos analisados, a situação de inconsciência ocorreu de forma abrupta e inesperada, em jovens/adultos, mas que dificilmente tenham tido a preocupação com fim de vida que os levasse a elaborar o documento.

l'objet de menaces ainsi que la désignation par le procureur de la république d'un représentant légal pour Vincent Lambert. octobre : La justice administrative rejette la demande d arrêt des traitements, estimant que seul son médecin traitant est à même de statuer sur ce type de décision . 10 mars 2016 : Rachel Lambert est nommée tutrice de son mari par le juge des tutelles de Reims. 9 juin 2016 : L'avocat des parents Lambert saisit la cour d'appel contre la décision du juge des tutelles et souhaite reprendre la procédure judiciaire du transfert de Vincent Lambert vers un établissement spécialisé. 8 juillet 2016 : Estimant que "Rachel Lambert n a pas failli et a rempli ses devoirs d épouse", la cour d appel de Reims Marne confirme qu elle est bien la tutrice principale de son mari . (Livre tradução: "5 julho de 2015 : A família é convocada ao CHU de Reims. Na sequência da reunião, a equipe médica se compromete com o procedimento de encerramento do tratamento, utilizando os termos de obstinação irracional. Os pais, não concordando com a decisão, apresentam uma queixa por « tentativa de assassinato e sequestro contra o CHU e os médicos que cuidavam e cuidam de Vincent Lambert ». Em 21 de julho, os bispos de Rhone- Alpes, região de residência dos pais de Vincent Lambert protestaram contra a decisão médica que « pode deliberadamente provocar a sua morte ». Um novo conselho de família está marcado para 23 de julho de 2015 para anunciar a decisão da equipe médica. 23 de julho de 2015: a equipe médica decide suspender o procedimento colegiado de interrupção dos cuidados porque, segundo eles, « as condições de serenidade e segurança necessárias para a continuação deste processo, tanto para Vincent Lambert, como para a equipe médica, não estão presentes ». O médico de Vincent Lamber solicitou proteção judicial para o seu paciente, que estaria sujeito a um projeto de remoção, a proteção de seu serviço que estaria ameaçado e a nomeação pelo procurador da república de um representante para Vicent Lambert. 09 de outubro de 2015: O Tribunal Administrativo rejeitou o pedido para parar o tratamento, acreditando que somente o médico é capaz de decidir sobre este tipo de decisão. 10 de março de 2016: Rachel Lambert foi nomeada guardiã de seu marido pelo juiz de tutelas de Reims. 09 de junho de 2016: O advogado dos parentes Lambert ingressou no Tribunal de Recursos contra a decisão do tribunal de tutela e deseja retomar o procedimento legal de transferência de Vincent Lambert para uma instituição especializada. 08 de julho de 2016: Acreditando que "Rachel Lambert não falhou e cumpriu os seus deveres como esposa", o Tribunal de Apelação de Reims (Marne) confirma que ela é a principal guardiã de seu marido ). WIKIPÉDIA. Affaire

Vincent Lambert. Disponível em: <https://fr.wikipedia.org/wiki/Affaire_Vincent_Lambert>. Acesso em:

Verifica-se, contudo, que embora nem todos os acórdãos tratem diretamente do assunto, a tendência é referir que suporte de alimentação e hidratação artificial é procedimento médico que, como tal, pode ser recusado.

É possível perceber a hesitação e o medo de que a determinação de interrupção de tratamento possa abrir espaço para decisões de fim de vida que não considerem a vontade do paciente ou que sejam tomadas por questões de ordem econômico - financeiras. Daí porque análises cautelosas e exigências de provas que permitam concluir que não haverá alteração de quadro clínico e, também, que caso o paciente pudesse se manifestar, optaria pela suspensão do tratamento.

Nos acórdãos consta a preocupação em comprovar o estado vegetativo persistente e identificar como irreversível a situação clínica do paciente. O acórdão analisado relativo ao caso Eluana Englaro faz extensa análise das condições da paciente, do que representa o estado vegetativo persistente, e de se tratar de estado permanente, sem possibilidade de reversão, reconhecendo como situação diversa da morte encefálica, com base em documentos e pareceres médicos aos quais credita importância. Além da irreversibilidade do quadro clínico, surge o problema da identificação da vontade presumida do paciente. Nos quatro casos relatados, não havia manifestação prévia de vontade para o tratamento que gostaria ou não de receber, caso estivesse em situação que não pudesse se manifestar.

As diretivas antecipadas de vontade em matéria de cuidado de saúde vieram na esteira da teoria do consentimento informado. Em alguns países, como os Estados Unidos da América, já foram acolhidas há algum tempo, tanto que em 1991 editaram o Ato de Auto-Determinação do Paciente106. A edição ocorreu, exatamente, em razão do

caso Nancy Cruzan, que levou as pessoas a se questionarem o que aconteceria com elas na mesma situação.

Embora o pioneirismo americano, constata-se que ainda é um tema pouco abordado. A ideia começa por se disseminar apenas nesse século XXI. Como exemplo, podemos citar a lei espanhola do ano de 2002107 e de Portugal, apenas de 2012108. Países

106 No ingles The Patient Self-Determination Act (PSDA).

107 Lei que estabelece as instruções prévias – ESPANHA. Boletín Oficial del Estado. Ley 41/2002, de 14 de

noviembre. Básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de

información y documentación clínica. Disponível em:

<https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2002-22188>. Acesso em: 14 set. 2015. (119)

108 Lei que regula as diretivas antecipadas de vontade – PORTUGAL. Assembleia da República. Lei n.º

25/2012 de 16 de julho. Regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de

como o Brasil sequer possuem legislação sobre o assunto, apenas regrado no âmbito médico pelo Conselho Federal de Medicina, por meio de resolução datada de 2012109,

mas que ainda assim não foi suficiente para difundir o debate.

Nos quatro acórdãos relatados houve referência e exigência, em maior ou menor grau, de provas da possível decisão do paciente nas condições em que ele se encontrava, ponto crucial para o deferimento ou indeferimento do pedido de retirada do tratamento.

Em todos os julgados, porém, ficou assegurado que o sujeito competente poderia se manifestar pela interrupção de tratamento de alimentação e hidratação artificial, desde que apto a se manifestar. O problema, pois, se apresenta diante da incapacidade de manifestação e da inexistência de uma manifestação prévia, casos em que se passa a exigir a prova que permite presumir a vontade do paciente, mediante análise de sua personalidade, modo de vida, crenças, manifestações proferidas sobre o tema, entre outros.

No primeiro dos acórdãos, referente à Nancy Cruzan, foi decidido pelo indeferimento justamente em razão de não se ter prova de vontade da paciente para a situação posta110.

No acórdão da Corte Argentina, igualmente, a decisão de indeferimento do pedido decorreu do fato de não ter essa prova. Há referência expressa quanto à necessidade d e uma prova que permitisse abstrair com certeza a vontade da paciente. Referências descontextualizadas não foram consideradas, entendendo que não teria havido suficiente reflexão da pessoa sobre assunto de tamanha importância.

Com relação ao caso italiano, a decisão de autorização da supressão da alimentação e hidratação artificial, somente foi deferida no terceiro procedimento interposto, e com análise da vontade presumida da paciente, após prova produzida relativa à sua personalidade, manifestações que foram feitas sobre situações similares e a forma como conduzia sua vida.

Por fim, a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, embora limitada ao exame da adequação da legislação e do tratamento conferido na esfera legal francesa Testamento Vital (RENTEV). Diário da República, 1.ª série - N.º 136 - 16 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/0B43C2DF-C929-4914-A79A-

E52C48D87AC5/0/TestamentoVital.pdf>. Acesso em: 14 set. 2015>. Acesso em: 07 fev. 2017.

109 Resolução do CFM que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade do paciente - CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM nº 1.995/2012...

110 Cabe reiterar que mesmo com o julgamento de improcedência, outra ação foi movida, na qual foram apresentadas provas de manifestação da paciente para amigas, que permitiram concluir que se pudesse se manifestar iria recusar a manutenção da vida no estado vegetativo persistente em que se encontrava.

aos termos da Convenção Europeia, analisa a evolução do tratamento das situações de fim de vida e reconhece que as soluções francesas convergem com as regras da União Europeia.

Também se verifica nos casos propostos que a unanimidade familiar tende a contribuir para o entendimento quanto à vontade presumida do paciente. Tanto no caso argentino como no caso francês as divergências familiares dificultaram o deferimento do pedido. No caso argentino o fato foi considerado como argumento que impossibilitava concluir que a vontade presumida da paciente seria no sentido de rechaçar tratamento. Também nos pedidos frente aos tribunais franceses a divergência entre a esposa/irmãos e os pais/irmãos do paciente foi não só a desencadeadora dos vários recursos, como um empecilho para se capturar as reais crenças, vontades e desejos do paciente.

Deve ser salientado aqui que a proteção ao direito à vida está presente em todos os acórdãos analisados e que seu prolongamento, a despeito das condições clínicas, se sobrepõe sempre que houver dúvida de qualquer natureza.

Contudo, o caminho aberto é da autodeterminação do paciente em matéria de cuidados com a saúde, podendo eleger, interromper ou rechaçar tratamento e terapias, em especial em situações de fim de vida.

Fica patente tratar-se de um direito personalíssimo, de forma que não há como ser delegada uma decisão quanto aos cuidados de saúde e vida para terceira pessoa. Nesse passo, os acórdãos, mesmo que com fundamentos diferentes, deixaram certo que o representante somente poderia manifestar a vontade presumida do paciente que se encontra incompetente, mas não pode decidir o que entende que seria adequado de acordo com suas próprias convicções.

Mesmo nos casos relativos à nomeação de procurador para cuidados de saúde, com mandado válido diante da incapacidade do mandante, o mandatário deverá levar em consideração, para a tomada de decisão, os conceitos e valores do paciente e não os seus.

Para as pessoas maiores e capazes ganham relevância as diretivas antecipadas, que permitem expressar a vontade, com eficácia projetada para momentos de incapacidade de manifestação.