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1.6 Quando a manifestação não é mais possível – casos que chegaram à justiça

1.6.2 Argentina, 2005 Caso M.d.C.S

O acórdão proposto refere-se ao julgamento do recurso interposto pelo marido da paciente M.d.C.S., em estado vegetativo permanente desde o ano de 1998.

A paciente, aos 32 anos, em razão de complicações pós-parto teve falta de oxigenação prolongada, causando dano cerebral com prognóstico de irreversibilidade. No mesmo ano de 1998, reconhecida a incapacidade da paciente, o marido A.G. é nomeado curador. Em 25 de outubro de 2000 ingressou com pedido de autorização para interromper a alimentação e hidratação artificiais de sua esposa, fundamentando o pedido nas orientações dos médicos especialistas em neurologia, acompanhad o de documentos que apresentam as opiniões de eclesiásticos, declarações da Associação Médica Mundial, do Comitê de Ética, Direito e Humanidades, entre outros, que avalizam a solicitação.

No mesmo ano, os pais e a irmã da paciente ingressaram na ação, opo ndo-se ao pedido de supressão da alimentação e hidratação.

O pedido é negado pelo Tribunal de Família e o requerente A.G interpõe recurso a Corte Suprema da Província de Buenos Aires. Perante a Corte Suprema, é proferido o parecer do Procurador-Geral, seguindo-se dos votos dos sete juízes que a compõem80.

No parecer do Procurador-Geral, em que opina pela manutenção da decisão de primeiro grau, há referência aos votos proferidos naquela instância. O citado voto da Juíza Maria Julia Abad bem reflete o argumento da primazia do direito a vida, entendendo este como um bem supremo e fundamento de todos os demais bens e direitos, pelo que, dele não pode dispor nem a pessoa detentora desse bem, nem os tribunais81.

79 VLEX Argentina. Sentencia de Corte Suprema de la Provincia de Buenos Aires, 9 de Febrero de

2005 (caso Causa C 85627). Disponível em: <http://vlex.com/vid/causa-c-36910459>. Acesso em: 25

fev. 2015.

80 A decisão é introduzida e indica os julgadores, da seguinte forma: En la ciudad de La Plata, a de febrero de 2005, habiéndose establecido, de conformidad com lo dispuesto em El Acuerdo 2078, que deberá observarse El siguiente orden de votación: doctores Hitters, Roncoroni, Negri, Kogan, Genoud, Soria, Pettigiani, se reúnen los señores jueces de la Suprema Corte de Justicia em acuerdo ordinario para pronunciar sentencia definitiva en la causa Ac. 85.627, "S., M. d. C.". Livre tradução: Na cidade da Prata, em 9 de fevereiro de 2005, tendo sido estabelecido, de conformidade com o disposto no Acordo 2078, que deverá observar-se a seguinte ordem de votação: doutores Hitters, Roncoroni, Negri, Kogan, Genoud, Soria, Pettigiani, se reunem os senhores juízes da Suprema Corte de Justiça em acordo ordinário para pronunciar sentença definitiva na causa Ac. . , "S., M. d. C. Acórdão em análise. p. .

81 Nesse sentido: [...] La Dr. Abad afirma: la vida es el valor supremo de la persona humana. Es decir que frente a ese valor, no hay otro que pueda superarlo. La vida humana fundamento de todos los restantes bienes y derechos, no resulta disponible ni por las personas que son titulares de dicho bien, ni por los

No julgamento pela Suprema Corte os sete juízes enfrentam, inicialmente, questões de ordem processual e, após, ingressam no debate de fundo relativo ao direito ou não de se desligar os aparelhos da paciente M.d.C.S.

A decisão proferida em fevereiro de 2005 foi unânime em negar provimento ao recurso. Manteve, pois, a decisão pela impossibilidade de interrupção do suporte vital. Os fundamentos utilizados, contudo, variaram, sobressaindo à inexistência de manifestação da paciente e de indícios irrefutáveis de que nas condições em que se encontrava teria optado pela suspensão do tratamento.

Dos votos proferidos o de maior ênfase na defesa do direito à vida é do Juiz Pettigiani82. Analisa os critérios de morte encefálica e reconhece que pelo quadro

comprovado da paciente ainda existem atividades cerebrais. Embora expresse o paradoxo de se estar frente a uma vida humana que vive sem vida, em razão do estado vegetativo permanente atestado, sustenta que enquanto há vida há esperança, de forma que entende não poder se autorizar a supressão de alimentação e hidratação.

O voto proferido apresenta uma série de circunstâncias similares e deixa antever o receio de que uma decisão favorável seja uma porta para novos casos. Embora não expresso de forma tão clara, é o temor da chamada «encosta escorregadia»83, vale dizer,

a autorização poderia ser mal interpretada, entendida como uma liberação para a eutanásia.

Ingressa no debate relativo ao enquadramento do suporte vital fornecido à paciente, qual seja limitado à alimentação e à hidratação artificial, que entende não poder ser considerado tratamento fútil ou extraordinário. Ao contrário, sustenta o caráter ordinário da medida e refere que sua administração não corresponde a uma terapia, mas a satisfação, por vias alternativas, de uma necessidade do corpo humano.

Em sentido contrário o voto da Juíza Kogan refere que não se pode tratar a alimentação e a hidratação artificiais genericamente como um suporte vital básico.

tribunales . Livre tradução: A vida é um valor supremo da pessoa humana. )mplica em dizer que frente a esse valor não há outro que possa superá-lo. A vida humana é fundamento de todos os demais bens e direitos, não é disponível nem pelas pessoas que são titulares desse direito, nem pelos tribunais.) Acórdão em análise. p. 2.

82 Cfr. Acórdão em análise. pp. 44-60.

83 Rebatendo o argumento da «encosta escorregadia» ver DWORKIN, Ronald. Domínio..., p. 279 e SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 223.

Reconhece que no caso da paciente M.d.C.S. essa terapia não contribui em nada para a evolução de seu quadro médico84.

Kogan reconhece ainda que o direito à vida deve se harmonizar com o direito à autonomia, à autodeterminação e à liberdade individual de cada ser humano, de forma que deve ser acatado o direito de um paciente competente e devidamente informado de recusar tratamento médico.

Esse direito, porém, deve ser exercido pela própria pessoa, pois se trata de direito personalíssimo, concluindo que não pode ser delegado à terceira pessoa o direito de rechaçar a um tratamento, ainda mais quando levaria a morte.

Nesse mesmo sentido, seguem os votos dos Juízes Hitters e Rancoroni.

No voto proferido pelo Juiz Hitters é feita a análise tanto do consentimento informado, concluindo pela possibilidade da pessoa rechaçar tratamentos médicos desmedidos e desproporcionais, a chamada distanásia. Contudo, quando da análise relativa à substituição da manifestação da parte, entende o magistrado que, ao contrário da tradição de origem não românica, como a estadunidense, não há previsão no ordenamento argentino para que terceiro possa decidir sobre a vida do paciente85.

O voto do Juiz Rancoroni, por sua vez, refere que o direito de morrer com dignidade é um direito personalíssimo e, como tal, só pode ser exercido pela própria pessoa. Não admite a possibilidade de ser manifestado por um terceiro que não teria como saber os desejos e vontades do titular da vida, concluindo que se a própria pessoa

84 Refere a Juíza em seu voto: Si bien algunos autores han tildado a La alimentación e hidratación artificiales como una medida proporcionada de tratamiento, calificándola como "soporte vital básico", no puedo sostener genéricamente esa premisa. Así, más allá del valor simbólico que culturalmente tienen la alimentación y la hidratación, deben atenderselas circunstancias de cada caso y la posibilidad de que produzcan algún resultado favorable al enfermo. En el caso de M. d. C., esa terapia no ha contribuido a la evolución de su cuadro médico . Livre tradução: Se bem que alguns autores tratam a alimentação e hidratação artificial como uma medida proporcional de tratamento, qualificando-a como suporte vital básico , não posso apoiar genericamente a essa premissa. Assim, acima do valor simbólico que culturalmente tem a alimentação e hidratação, devem atender-se as circunstâncias de cada caso e a possibilidade de que produzam algum resultado favorável ao enfermo. No caso de M.d.C., essa terapia não contribui para a evolução de seu quadro médico . Acórdão em análise. p. .

85 Refere o Juiz em seu voto: Es decir, que em nuestro derecho positivo no se encuentra permitido trasladar una decisión tan extrema (suspender La alimentación e hidratación artificial que com llevaría a la muerte a um sujeto distinto del próprio afectado en forma inmediata . Livre tradução: Significa dizer, que em nosso direito positivo não é permitido transferir uma decisão tão extrema (suspender a alimentação e hidratação artificial que levaria a morte) a um sujeito distinto do próprio afetado de forma imediata . Acórdão em análise. p. .

exerce esse direito morrendo, já o terceiro exerceria esse direito matando ou deixando o outro morrer86.

Prossegue o magistrado referindo à impossibilidade de se buscar por opiniões ou provas de manifestações descontextualizadas da paciente e sua real intenção. É preciso muito mais que a manifestação de uma opinião. Exige-se a identificação dos valores, crenças, sonhos, temores, amores e dores, enfim, de toda história da pessoa que permita identificar como espera sua morte87.

Reconhecem os magistrados, e é expresso no voto do Juiz Soria, que não era de se esperar que a paciente, ao se internar para dar à luz ao seu quarto filho, se prevenisse com a indicação de um procurador ou se manifestasse sobre como gostaria que se agisse caso se encontrasse em EVP. Em verdade, reconhece o Juiz que não se exige, nem culturalmente, menos juridicamente, que as pessoas realizem exame profundo de sua consciência que permita uma tomada de posição nesse sentido.

Ainda que a maioria dos votos indique o reconhecimento da possibilidade de autodeterminação que permita decisão pela não manutenção da vida, quando desprovida de qualquer sentido, bem como de que a situação da paciente M.d.C. é de EVP, sem possibilidade de reversão, consideraram a ausência de manifestação prévia e a falta de prova da intenção da própria paciente, aliada a divergência familiar, fatos relevantes a indicar pela manutenção do suporte vital que a atende.

86 Mas este derecho a morir com dignidad al igual que su contracara y necesario presupuesto: el derecho a vivir de idêntica manera o derecho a la vida que, incluye, la facultad de elegir cómo terminar dignamente com ella en situaciones como la descripta) es un derecho personalísimo, inherente a la persona y que, como tal, solo puede ser ejercido por su titular. No se concibe que el mismo pueda ser ejercido por untercerocon total ignorancia de lo que podría desear o querer el titular de esa vida. Pues si este lo

ejerce muriendo, el tercer o lo ejercería matando o dejan do morir a otro . Grifo meu . Livre

tradução: Mas esse direito de morrer com dignidade (como o seu necessário pressuposto: o direito de viver de idêntica maneira o direito a vida que, inclui, a faculdade de eleger como terminar dignamente com ela em situações como a descrita) é um direito personalíssimo, inerente a pessoa e que, como tal, só pode ser exercído por seu titular. Não se concebe que o mesmo possa ser exercício do por um terceiro com total ignorância do que poderia desejar ou querer o titular dessa vida. Pois se este o exerce morrendo, o terceiro o exerceria matando ou deixando morrer o outro . Acórdão em análise. fl. .

87 Refere o Magistrado: En mi opinión a’n cuando concedamos a esas manifestaciones validez y veracidad, carecen de la más mínimas eficacia para arrojar la certeza que buscamos sobre la fidedigna e inequívoca voluntad de M. d. C. de cómo actuaren una concreta situación similar a la que hoy protagoniza. No es un cambio de pareceres u opiniones entre amigas sobre una hipotética y abstracta situación com lo que tampoco contamos en autos, niel mero conjeturar en torno a lo que una de ellas habría deseado, lo que configura la plena prueba que nos deposite en los campos de la certeza que buscamos . Livre tradução: Na minha opinião, mesmo quando concedemos a essas manifestações validade e veracidade, carecem de eficácia, mesmo mínima, para conferir a certeza de que buscamos na vontade confiável e inequívoca de M.d.C., como agir em uma situação concreta, similar a que ela hoje protagoniza. Não é uma troca de pontos de vista e opiniões com amigos, em uma situação hipotética e abstrata, com a qual sequer contamos nos autos, ou a mera conjectura sobre o que teria desejado, que constitui uma prova plena que confira a certeza que procuramos . Acórdão em análise. fl. -19.

Fica evidente que em caso de dúvida, como o em exame, os magistrados optaram pela decisão mais favorável ao prolongamento da vida, no caso, a manutenção do suporte vital.

É possível abstrair o receio do julgador em proferir decisão que vá contra o direito à vida, quando não está munido de segurança da posição do próprio indivíduo. Naturalmente que uma decisão favorável ao desligamento dos aparelhos passa a ser irreversível a partir do momento em que é executada. Contudo, a considerar a situação da paciente pelas informações que constam do acórdão, a tendência é de prolongamento indefinido da mesma situação. Diante da irreversibilidade do quadro não haverá a opção futura da paciente manifestar sua decisão e não tendo realizado antes, criou -se o impasse.

Os magistrados referem no voto a inexistência de documentos como os chamados testamentos em vida no ordenamento jurídico argentino, mas acenam como um instrumento válido que permite a manifestação da vontade da pessoa, para situações em que não possa mais se manifestar. Este caso reforça a importância de manifestações prévias sobre cuidados de fim de vida para evitar impasses como o relatado.

Pelos dados constantes no acórdão, em busca virtual, não foi possível verificar a situação da paciente após o julgamento.