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A relação médico/paciente tradicional é marcada por uma relação vertical, com caráter fortemente paternalista. Com o domínio do conhecimento médico-científico a intervenção médica assumiu esse caráter na medida em que a decisão partia unilateralmente do médico, cabendo ao paciente tão somente o cumprimento do que lhe foi determinado, seguindo o código Hipocrático de que o médico é quem comanda; o

paciente é quem obedece 25.

23 Cfr. NEVES, Maria do Céu Patrão; OSSWALD, Walter. Bioética..., pp. 107-108. 24 Cfr. GAFO, Javier. Bioética..., pp. 20-22.

25 No original: [...] from the (ippocratic corpus that the physician is the one who commands; the patient the one who obeys .

RICH, Ben A. Advance Directives. Journal of Legal Medicine, v. 19, n.1, p. 63-67, 1998. Published online: 23 Jul 2009. Downloaded by Georgetown University at 06 June 2013. p. 64.

Cientes do fim assumido pelo juramento hipocrático, que lhes conferia o norte de que deveriam fazer todo o possível com a finalidade de salvar as vidas humanas, desenvolve-se a atividade médica com o que se costuma identificar como caráter paternalista, na qual em razão do domínio de um conhecimento muito específico, e uma linguagem própria, os médicos determinavam o que deveria ou não ser feito, de forma impositiva, sem considerar a capacidade de entendimento e autonomia do paciente para tomar decisões relativas à sua própria saúde.

O intuito paternalista e a finalidade de proteção e defesa da vida a qualquer custo são a própria justificativa para a atuação médica impositiva. Com efeito, como a finalidade é o bem vida, não se perqueria de outra forma de atendimento, plenamente justificadas as atividades médicas impostas já que eram em vista do bem final maior26.

Esse posicionamento, contudo, desconsidera a pessoa do paciente, sua personalidade própria, suas crenças e desejos pessoais e sua capacidade de tomar decisões, em especial no que diz respeito à sua vida e saúde, decisões da esfera mais íntima da pessoa.

Essa relação de cunho paternalista e vertical preponderou por muito tempo e ainda se apresenta em muitas relações médico-paciente27, quer por postura médica,

quer pela própria conduta do paciente. A postura paternalista traz benefícios também para o paciente que não precisa tomar a frente em decisões difíceis que dizem respeito à sua própria vida. Por comodismo, medo, incapacidade ou mesmo condicionamento social, tende a seguir a orientação do profissional sem maior questionamento ou interferência.

26 Nesse sentido refere Sgreccia: Não podemos, porém, deixar de mencionar o facto de que, na ética médica hipocrática, a relação médico-paciente era fundada no modelo de beneficência: a obrigação fundamental do médico era libertar o paciente da doença, do sofrimento e da injustiça, propondo-se a realizar o bem do paciente. Em nome desse bem, o objectivo era conseguido geralmente por meio da autoridade do médico, cuja responsabilidade principal era tomar todas as decisões no melhor interesse do paciente, e muito facilmente se podia cair naquilo a que, com conotação negativa, se chamou paternalismo médico. Nesse modelo, por exemplo, a informação dada ao paciente era modulada pelo médico de molde a convencer o doente, e eventualmente mesmo a constrangê-lo a agir para o seu próprio bem , mesmo quando isso custasse sacrifícios que, nesse momento, o doente não quisesse enfrentar. No melhor interesse do paciente, podia, além disso, justificar-se, em algumas circunstâncias, até mesmo calar certas informações, manipular a verdade, intervir sem pleno consentimento . SGRECC)A, Elio. Manual..., p. 279. 27 Aponta Marcos de Almeida: […] tais atitudes de paternalismo benevolente têm caracterizado, em grau maior ou menor, o comportamento da grande maioria dos médicos em relação aos seus pacientes nos últimos 2.500 anos. Ninguém negaria que esse modelo continua permeando boa parte da prática médica contemporânea . ALME)DA, Marcos de. Comentários sobre os princípios fundamentais da bioética: perspectiva médica. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian (Org.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996. p. 60.

A postura paternalista pode inclusive gerar distorções, como a não elucidação do quadro para um paciente capaz, deduzindo-se que o melhor para ele naquele momento seria o desconhecimento do mal que lhe acomete.

Esse comportamento é denominado paternalista na medida em que o profissional da saúde trata o paciente como um pai trata um filho menor, tomando par a si as decisões difíceis e das quais não tem ele a capacidade de compreensão de todas as variáveis envolvidas, em prol de seu bem-estar.

Contudo, o médico frente a um paciente, maior e capaz, ao agir com essa postura, menospreza seu potencial de compreensão e de tomada de decisão, não raro infantilizando-o ao desconsiderar sua capacidade e assumindo para si a responsabilidade da decisão.

Na área assistencial, em especial, é essa postura médica a maior barreira para se assegurar a autonomia de ação do paciente. Não se desconhece que a orientação da atividade médica, ao longo dos tempos, segue a orientação hipocrática. Segundo o juramento hipocrático, realizado pelos médicos, ao adquirir o grau específico, cabe a este, de acordo com o seu julgamento e conhecimento, fazer o que for possível em prol de seu paciente.

O juramento é o mais famoso dos escritos do médico Hipócrates de Cós. É o escrito mais curto do corpus hippocraticum e influenciou a cultura ocidental, possivelmente pela universalidade dos deveres que descreve, tanto que o texto se

tornou modelo de todos os códigos de ética adotados pelos médicos e até profissionais de outras áreas 28.

O Código de Ética médica brasileiro, de 2009, é exemplo da influência dos antigos escritos gregos, mantendo dentre seus princípios fundamentais o dever de agir em benefício do paciente e de não lhe causar danos29.

28 Os autores apresentam o texto original em grego e a tradução: Juro por Apolo médico, Asclépio, Higia, Panacéia e todos os deuses e deusas, e os tomo por testemunha que, conforme minha capacidade e discernimento, cumprirei este juramento e compromisso escrito: […] utilizarei a dieta em benefício dos que sofrem, conforme minha capacidade e discernimento, e além disso repelirei o mal e a injustiça; […] em quantas casas eu entrar, entrarei em benefício dos que sofrem evitando toda injustiça voluntária e outra forma de corrupção . CA)RUS, (enrique F.; R)BE)RO JR. Wilson A. Textos Hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. pp. 151-152.

29 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em:

<http://www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/versao_impressao.php?id=8822>. Acesso em: 22 nov. 2015.

Nota-se, contudo, que esse comportamento estritamente paternalista está em alteração. Embora detentor do conhecimento específico com relação à doença do paciente, o médico é, nesta relação, o prestador do serviço procurado pelo paciente, que permanece sendo o agente principal da gestão da sua própria sa’de 30.

Osswald relata que, em verdade, tem-se como precursor dessa alteração do comportamento da relação médico/paciente, não um médico, mas sim o Papa Pio XII, que em Congresso com médicos, ainda no ano de 1952, refere: o médico não tem sobre o

doente, senão os direitos que este lhe confere 31.

Desta forma, fica claro a necessidade de entrosamento e sintonia de forma que a decisão possa ser tomada considerando a autonomia das duas partes envolvidas. Isso porque, embora reconhecimento do que em bioética se convencionou a chamar de respeito à pessoa, não há como se desconsiderar a autonomia também do médico. Não há inversão dos papéis, até porque o paciente, embora sujeito dotado de capacidade, não detém as informações e o conhecimento profissional necessários.

Propõe-se o envolvimento das partes para a tomada da decisão em matéria de cuidados da saúde, de forma a encontrar, dentre as ações possíveis e legais, a que melhor atende ao interesse do paciente na fase em que se encontra.

Admite-se, por óbvio, tratar-se de relação difícil porque é uma relação

assimétrica ditada pela necessidade e pela doença 32, de forma que permanecerá sempre

certa superioridade médico-científica, de quem é o detentor do conhecimento necessário para combater a doença e a morte, vistas aqui como um mal a ser vencido. Contudo, ao se adotar como um ideal ético a necessidade de interação e consideração pela pessoa do doente, altera-se a visão sobre a relação médico-paciente.

A exigência do consentimento do paciente para os atos médicos a serem praticados, pois, passa a ser uma exigência ética, dentro da ideia de respeito à sua pessoa.

Com o fim de possibilitar ao paciente sua intervenção ativa nesse processo de tomada de decisão, diante da existência de assimetria entre os sujeitos dessa relação, é essencial que sejam prestadas informações claras e seguras que permitam compreender

30 Cfr. SGRECCIA, Elio. Manual..., p. 276.

31 Cfr. OSSWALD, Walter. Limites do consentimento informado. In. ASCENSÃO, José de Oliveira (Coord.).

Estudos de direito da bioética. v. 3. Coimbra: Almedina, 2009. p. 153.

a situação, as opções que se apresentam e os riscos e benefícios associados a cada opção proposta.

A obtenção desse consentimento não deve ser tratada como mera etapa burocrática a ser vencida, mediante a oposição da assinatura do paciente em um documento do qual não tenha ele a perfeita compreensão, mas sim no fornecimento de

uma quantidade suficiente de informação para que o paciente seja capaz de uma decisão razoável 33.

A forma de interação entre médico e paciente permite muitas variações; deve -se, contudo, ter sempre a cautela de não deixar o paciente desassistido.

Sgreccia refere além dos dois modelos contrapostos desse relacionamento, que identifica como sendo o paternalista34 e o informativo35, outras duas possíveis formas de

interação desses sujeitos, que são, o modelo interpretativo36 e, por fim, o deliberativo37

no qual ambos os sujeitos teriam participação efetiva na tomada de decisão, apresentando-se esse como paradigma a ser privilegiado.

33 Cfr. ALMEIDA, Marcos de. Comentários..., p. 63.

34 De acordo com o autor: É a instauração da relação com o médico que assegura ao paciente a recepção de todas as intervenções que melhor promovam a sua saúde e o seu bem-estar. E é competência do médico identificar todas as intervenções diagnósticas e terapêuticas que melhor possam servir para essa finalidade e que no momento oportuno apresentará, com informações selecionadas, ao próprio paciente, com a finalidade de obter seu consentimento. […] Neste modelo, presume-se que haja meios objetivos para determinar o que será melhor para o paciente e, assim sendo, o médico poderá decidir com a mínima participação deste. Na prática, o médico representa também o tutor do paciente e as suas escolhas prevalecem sobre a autonomia do paciente . SGRECC)A, Elio. Manual..., p. 281.

35 De acordo com o autor: […] a interação com o paciente serve para que o médico lhe forneça todas as informações relativas ao diagnóstico, às terapias e aos riscos de cada uma delas, depois do que, com o assentimento fundamental do paciente, executará as intervenções selecionadas que forem requeridas. Nesse modelo, presume-se que, relativamente ao tratamento diagnóstico-terapêutico, os factos sejam estritamente distintos dos valores; assim sendo, e assumindo que o paciente tenha os seus próprios valores bem definidos, aquilo que lhe falta é conhecer os factos; e a obrigação do médico é, pois, fornecer- lhe todas essas informações para que o paciente possa decidir-se por um tratamento em vez de outro. Não há espaço para os valores do médico, nem para aquilo que ele pensa sobre os valores do paciente. […] A autonomia do paciente exerce, assim, um estreito controlo sobre o processo decisional do médico . SGRECCIA, Elio. Manual..., p. 277.

36 De acordo com o autor: O papel da relação médico-paciente é ajudar o paciente a reflectir sobre os valores e a atribuir um significado às suas escolhas, de forma a que, para além das informações sobre riscos e benefícios das intervenções específicas, o médico ajude o paciente a argumentar sobre os seus valores e a escolher entre as intervenções aquelas que melhor realizem valores específicos . O autor reconhece que é um modelo interessante embora limitador porquanto os profissionais não têm preparo na atividade de conselheiros e poderiam exercer uma influência maior sobre o paciente, limitando a capacidade de decisão deste. SGRECCIA, Elio. Manual..., p. 278.

37 De acordo com o autor: O médico deverá agir como um professor ou um irmão mais velho do paciente, informando-o sobre os aspectos clínicos e os valores implicados em cada intervenção. Trata-se de um verdadeiro caminho moral que o médico e paciente deverão empreender para chegar à decisão, caminho esse no qual o médico tem um papel muito activo, ao indicar ao paciente o que deverá fazer e que metodologia deverá utilizar para chegar a uma decisão. A autonomia do paciente tem o significado de poder avançar nessa auto-realização moral a que se chega depois de ter examinado os diversos valores em conflito e a sua implicação no tratamento que deve ser aplicado . SGRECC)A, Elio. Manual..., p. 278.

Saliente-se que, já é pressuposto da relação, acolhida pela classe médica, a necessidade do consentimento do paciente para a realização de atos de intervenção na sua saúde, corpo ou mente. Assim, de forma mais ou menos paternalista, haverá a necessidade de interação dos sujeitos dessa relação. O que ocorre é que nas relaçõ es de modelo dito paternalista, a intervenção do profissional será de forma mais impositiva, enquanto que nas demais, embora possa exercer certa persuasão, haverá maior interação com o paciente.

Com efeito, é reconhecido que é na interação entre o médico e o paciente que o

processo terapêutico deveria acontecer 38. Considerando as peculiaridades e os bens que

estão no centro dessa relação, um modelo inter-relacional, que permita ambas as partes manifestarem suas posições, com vistas à tomada de decisão que concilie interesses maiores, é o mais atrativo.