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A teoria do consentimento informado parte do pressuposto da capacidade da pessoa em participar das decisões que digam respeito à sua vida e saúde.

Tanto na área assistencial como na de investigação, a imposição de ações ao sujeito deve ser debatida dentro de conceitos éticos. Embora áreas com finalidades e atividades diversas, por vezes se conjugam, de forma que o doente pode ser também o investigado. Em qualquer dos casos, há o consenso da necessidade do consentimento do sujeito da pesquisa e/ou do paciente para o ato que se pretenda realizar.

Mesmo quando a ideia da autonomia individual não era tão delineada se reconhecia a importância do esclarecimento das circunstâncias envolvidas em ações tomadas nas questões de saúde. Esse consentimento ganhou maior relevância nas questões ligadas à área investigativa, para a qual se direcionaram a elaboração de regras. Seguiu seu curso transferindo-se para a área assistencial cotidiana do encontro entre paciente e seu médico.

Na área da pesquisa com seres humanos, os danos causados à saúde em razão de utilização da pessoa como objeto para o experimento, que sequer tinha conhecimento de que isso estava por ocorrer, levaram ao questionamento do direito à informação. Os relatos de atrocidades ocorridas, em especial na segunda guerra mundial, em que

prisioneiros em campos de concentração eram utilizados como cobaias para os experimentos, sem saber que estavam sendo sujeitados a experiências, guiaram a discussão para a necessidade de respeito à pessoa e, de consequência, a sua autonomia39.

Ganha relevância o chamado informed consent, termo já utilizado nos Estados Unidos, com aplicação tanto na área investigativa como assistencial40. No campo

assistencial em especial, esse instrumento pretende a proteção e promoção da autonomia do paciente, que participará do processo de tomada de decisão, após esclarecido suficientemente das variáveis envolvidas no seu caso, de forma a permitir a tomada de decisão livre e racional.

Em ambas as áreas há, portanto, dois elementos preponderantes envolvidos, quais sejam, a informação e o consentimento livre41.

Clotet ao tratar do consentimento informado, conceitua como sendo uma decisão voluntária, manifestada por uma pessoa autônoma e capaz, após um processo informativo, para a aceitação de um tratamento específico ou de experimentação, consciente dos riscos, benefícios e das consequências. Reconhece que é uma condição indispensável na relação médico/paciente ou pesquisador/investigado42.

É, pois, um instrumento importante de interação do médico/pesquisador com o paciente/investigado, que permite o respeito à autoridade da própria pessoa e como tal não pode se converter em uma mera etapa burocrática na qual o médico/pes quisador se limite a colher uma assinatura do paciente/investigado.

39 Na Alemanha nazista muitos são os relatos de atrocidades cometidas em prol da ciência. Sgreccia relaciona: (ouve prisioneiros judeus, polacos, russos e italianos que, segundo as actas do processo de Nuremberga, foram submetidos a cruéis experimentações de farmácos, gases e venenos; muitas dessas experimentações implicaram a morte, com dores atrozes. […] Contam-se ainda experimentações envolvendo cortes de ossos, músculos, nervos; injecções de vacinas de presumíveis soros anticancro, de hormonas, etc.[…] Tudo motivado por uma presumida supremacia da ciência atrás da qual se escondia apenas a razão do Estado . SGRECC)A, Elio. Manual..., p. 749.

40 O termo utilizado não é o ’nico. Na lingua portuguesa também é utilizado consentimento livre e esclarecido . Esclarece Clotet: Num primeiro momento, é importante destacar que consentimento informado é tradução da expressão inglesa informed consent. Na lingua portuguesa, particularmente no Brasil, emprega-se também o termo consentimento livre e esclarecido , que é tradução do termo francês

consentement livre et éclairé e a utilizada nas resoluções da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

CONEP aprovadas pelo Plenário do Conselho Nacional de Sa’de CNS . CLOTET, Joaquim. Bioética..., p. 227.

41 Refere Junges: O ato de consentimento deve ser genuinamente voluntário e basear-se na revelação adequada das informações. Nesse sentido, engloba elementos de informação e elementos de consentimento. Fazem parte do primeiro a revelação das informações em conformidade com o nível de captação do doente e de sua compreensão adequada; do segundo, o consentimento voluntário e a competência para o consentimento . JUNGES, José Roque. Bioética; perspectivas e desafios. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. p. 43.

O consentimento informado é um processo e não um ato, que culminará no documento redigido e assinado. Ressalte-se que é um processo de respeito à autonomia na medida em que admite a capacidade de autodeterminação da pessoa quando de posse de dados que permitam a tomada de decisão. Daí porque pressupõem por parte do profissional a prestação de informações, na medida da necessidade e da capacidade do agente que a recebe.

Não é um documento que deva ser utilizado para fins da prática da medicina defensiva43. Muito mais do que as questões legais envolvidas, tanto o dever de informar

o paciente/investigado como o de cumprir com o que acordarem para fins de tratamento/investigação, deve ser considerado como uma obrigação moral do médico.

É possível identificar fases distintas nesse processo. Embora doutrinariamente as teorias elenquem mais ou menos etapas, todas identificam como necessário uma fase em que sejam fornecidos os esclarecimentos, que estes sejam compreendidos e que seja prestado o consentimento voluntariamente44.

As informações devem ser prestadas com clareza, na medida da necessidade e da capacidade da pessoa para quem se fornece os dados, tornando -a apta a decidir. A utilização de termos excessivamente técnicos para leigos, sem uma explicação do que

43 Pithan destaca: Atualmente, muitos profissionais utilizam o referencial da chamada Medicina Defensiva , que consiste, dentre outras práticas, na redução do processo de consentimento informado a um documento escrito, denominado Termo de Consentimento )nformado ou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido visando alcançar a segurança inerente a uma relação contratual, assemelhando-o a um contrato de adesão. Entretanto, o contrato de adesão e o Termo de Consentimento Informado têm natureza e objetivos distintos, impossibilitando, assim, a manutenção da perspectiva defendida pela Medicina Defensiva . )nicialmente, esta prática não corresponde a uma atitude eticamente adequada, pois fere o princípio da autonomia da vontade e da beneficência; […] FERNANDES, Carolina Fernández; PITHAN, Lívia Haygert. O consentimento informado na assistência médica e o contrato de adesão: uma perspectiva jurídica e bioética. Rev HCPA, Porto Alegre, v. 27, n.2, p. 78, 2007. Disponível em:

<http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/download/2568/1226>. Acesso em: 15 jun. 2015. p. 78.

44 Raymundo e Goldim relatam: Dan English ampliou para quatro o n’mero de elementos necessários para que um consentimento informado seja considerado válido: fornecimento de informações; compreensão; voluntariedade e o consentimento propriamente dito. Já Beauchamp e Faden estabeleceram que o processo de consentimento informado é composto de três etapas que envolvem sete diferentes elementos. A primeira é a etapa das precondições, incluindo a capacidade para entender e decidir e a voluntariedade no processo de tomada de decisão. A segunda compreende os elementos da informação, ou seja, a explicação sobre riscos, benefícios e alternativas e sua respectiva compreensão. A terceira é a dos elementos de consentimento propriamente ditos, na qual a pessoa decide em favor de uma opção e autoriza a realização dos procedimentos propostos . RAYMUNDO, Márcia Mocellin; GOLD)M, José Roberto. Apontamentos sobre o processo de consentimento com ênfase na autorização por representação em substituição ao consentimento por procuração. In: RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (Coord.). Bioética e direitos da pessoa humana. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. pp. 69-70.

realmente se trata, não atinge a finalidade pretendida. É importante que a linguagem utilizada seja clara e sem ambiguidades, permitindo-se o entendimento45.

O médico permanece com o dever de buscar o que é melhor para o paciente, mas deve ter em mente que este é um ser capaz de tomar suas próprias decisões, dai porque prestar as informações passa a ser uma obrigação médica46.

A veracidade é um requisito que deve ser sempre observado. O médico tem, pois, além da obrigação de prestar as informações, o dever de passá-las de forma verdadeira, mas dentro do que se fizer necessário. Não implica na necessidade de esmiuçar questões técnicas, de difícil compreensão pelo paciente. Mas a veracidade exige que a informação seja correta e permita a tomada de decisão de acordo com a realidade e não de forma a enganar o paciente, propositadamente ou não47.

Há casos em que o paciente notadamente não tem interesse em se inteirar da sua situação, o que é relativamente comum, em especial no caso de graves doenças48.

Naturalmente que a obrigação ética do médico de respeito à pessoa do paciente também fará com que observe a negativa em receber informações e exigirá que seja hábil em fornecê-las na medida em que a pessoa mostra ter capacidade para assimilá-las. Não lhe cabe, porém, inverter fatos ou dizer algo que não esteja de acordo com a verdade.

45 Importante a análise apresentada por Goldim: A avaliação do componente de informação inclui a análise da dificuldade de leitura dos Termos de Consentimento Informado. Em alguns estudos sobre estes documentos, utilizados tanto em situações de pesquisa quanto de assistência, todos os Termos apresentaram estrutura de texto considerada difícil ou muito difícil. A estrutura do texto e o vocabulário utilizado devem sempre ser adequados aos participantes. Devem ser acessíveis e permitir que a pessoa entenda adequadamente a proposta que lhe está sendo feita. Em um estudo com 59 participantes de projetos de pesquisa, a maioria dos participantes afirmou ter recebido explicações prévias (52,8%), ter compreendido as informações (55,9%), não ter recebido resposta às suas dúvidas (76,3%) e achado inacessível o Termo de Consentimento )nformado , % . GOLD)M, José Roberto. O consentimento..., p. 112.

46 Oliveira refere: Decidir em vez do doente era a obrigação do médico hipocrático. Mas o nascimento da teoria dos direitos fundamentais e o reconhecimento da autonomia dos cidadãos modificou a relação terapêutica e temperou o princípio da beneficência. O médico continua a jurar, como dantes, que procurará o bem do paciente; mas o paciente hoje não é um incapaz. É um centro autónomo de decisão, tem o direito de recusar um tratamento, por mais recomendável que seja. E para recusar, ou admitir, um tratamento, precisa de obter a informação relevante. Se o médico não lha dá actua com negligência, e lesa o direito do paciente à autodeterminação nos cuidados de sa’de . OL)VE)RA, Guilherme de. O fim da arte silenciosa: o dever de informação dos médicos. In: ______ (Org.). Temas de direito da medicina 1. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 113.

47 Nesse sentido ver GOLDIM, José Roberto. O consentimento..., p. 113.

48 Kubler-Ross identifica como primeiro estágio pelos quais passa um paciente com doença em fase terminal é a da negação, ou pelo menos uma negação parcial. A forma como é dada a comunicação da má notícia também tem interferência na postura adotada pelo paciente. Refere a autora: Essa negação ansiosa proveniente da comunicação de um diagnóstico é muito comum em pacientes que são informados abrupta ou prematuramente por quem não os conhece bem ou por quem informa levianamente para acabar logo com isso , sem levar em consideração o preparo do paciente . KUBLER-ROSS, Elisabeth.

Também é necessário identificar a capacidade daquele que recebe as informações. Não se está a falar apenas em capacidade legal. Reconhecidamente, dependendo da situação fática, mesmo um adolescente relativamente incapaz, por exemplo, tem compreensão, possibilitando sua participação na tomada de decisão em matéria de cuidados de saúde.

Naturalmente que, ao se estabelecer um documento, deverá se verificar também a capacidade legal para firmá-lo. Especial relevância terá a capacidade legal quando se tratar de diretivas antecipadas, porquanto somente poderão ser realizadas por quem está na sua plena capacidade mental e legal, considerando as peculiaridades envolvidas, como se verá adiante.

Há que se verificar, porém, a capacidade de compreensão da situação posta e de entendimento das informações que se lhe forem prestadas49, quando então deverá ser

envolvida no processo de decisão sobre questões que digam respeito ao seu corpo e à sua vida.

A capacidade que se busca é a necessária para tomar decisões, a qual exige certas habilidades por parte do paciente, tais como a possibilidade de envolver-se no assunto,

compreender ou avaliar as alternativas e comunicar a sua preferência 50.

A forma de avaliação dessa capacidade ainda é discutida e não há um consenso na maneira segura de fazê-lo. Não há, pois, um método seguro que permita afirmar quando o indivíduo adquire sua capacidade plena. Ademais, há adultos legalmente capazes que por vezes não apresentam autonomia para lidar com suas questões diárias. Por outro lado, mesmo crianças podem ter capacidade de lidar com determinadas situações, mesmo que delicadas.

A mensuração da capacidade, pois, dependerá de cada caso concreto, mas estará em análise a capacidade de compreender a situação e as alternativas, e de consentir.

Outro dado importante no consentimento informado é que deve ser preponderantemente voluntário. A decisão em consentir o u não com um determinado

49 Preleciona Goldim: A capacidade para entender e decidir não tem uma dependência direta com a idade da pessoa. Muitas crianças e adolescentes podem já ter este entendimento e podem participar ativamente do processo de consentimento, mesmo que sem valor legal associado. Os idosos também têm o direito de participar do processo de consentimento. Muitas vezes são considerados como sendo não mais capazes de tomar decisões, mas em grande parte das vezes este fato não se comprova. Em uma pesquisa, realizada pelo nosso grupo, envolvendo estudos feitos com idosos foi verificado que várias pessoas que foram tidas por suas famílias como sendo incapazes de entender e tomar decisões eram plenamente capazes disto . GOLDIM, José Roberto. O consentimento..., p. 112.

procedimento, cirurgia, terapia, participação em pesquisa, etc., exige que parta da pessoa de forma livre. Faz-se necessário verificar se a pessoa não está sendo coagida por quem presta as informações, por situações familiares ou de cunho religioso.

É bem verdade que todo o doente está em uma situação mais vulnerável. Isso porque toda e qualquer doença não permite manter o controle total. A pessoa se torna dependente, precisando ao menos de uma indicação médica quanto ao que deve s er feito. Contudo, a voluntariedade que aqui se perquire é aquela que, mesmo em estado de doença, possibilite decidir de acordo com o seu melhor interesse.

Goldim refere que as pessoas com voluntariedade preservada organizam a sua

vida com base em um conjunto de crenças, valores, interesses, desejos e objetivos 51, os

quais permitem uma decisão única para cada pessoa.

Trata-se de considerar a autonomia da pessoa, dentro dos limites da sua capacidade. O indivíduo deverá ter capacidade de compreensão, de discernimento, de tomada de decisão e de manifestação de sua vontade.

As informações prestadas devem conter todos os dados básicos que permitam a tomada de decisão, que seriam a indicação clara das alternativas existentes, com as respectivas consequências, tanto no que diz respeito aos riscos a que será exposta como também os benefícios associados.

Para ilustrar a situação, imagine-se uma pessoa com doença avançada de câncer, cujo ingresso na pesquisa com novos medicamentos poderia lhe conceder uma sobrevida, enquanto que a sua recusa ao tratamento experimental apenas a levaria a aguardar o fim que se aproxima. Em uma rápida avaliação custo/benefício é possível perceber que a expectativa de sobrevida se apresenta melhor do que a não sujeição ao tratamento.

O exemplo, contudo, tratou da questão com bastante simplicidade. Outros fatores podem influenciar na decisão, sendo necessário perquerir os efeitos colaterais desse tratamento, o tempo de sobrevida e as expectativas pessoais para esse período. Enquanto para algumas pessoas a sujeição a um tratamento experimental pode ser benéfica e encorajadora, para outras pode ser dolorosa e degradante. De igual maneira, para algumas pessoas o benefício associado pode ser tão relevante que torne insignificante os riscos e para outras o menor risco a se correr pode ser maior que um significante benefício.

A situação concreta é que definirá a exigência de maior ou menor capacidade para consentir. O pressuposto é o de que aceitar uma situação favorável ou recusar uma

situação desfavorável atende aos melhores interesses da própria pessoa, não sendo exigida alta capacidade para a tomada de decisão 52.

No exemplo acima citado, se forem poucas as opções, com baixo risco envolvido e a possibilidade de um benefício, a tendência será a de aceitar o tratamento proposto. Já a recusa de um tratamento que possa trazer benefícios ou a aceitação de um que pode não agregar benefícios, exige uma maior capacidade de consentir.

Todo o processo de consentimento informado deve ainda observar os requis itos da confidencialidade e da privacidade, que permeiam a relação médico/pesquisador com o paciente/sujeito de pesquisa.

Verifica-se que a inclusão do paciente/sujeito de pesquisa na tomada de decisão entre participar ou não de um experimento não é barreira para o desenvolvimento científico, senão que alia a essa pretensão também o cuidado e o respeito que se deve ter com cada ser humano.

Representa o respeito à pessoa, com o reconhecimento de que os parâmetros e os limites a serem utilizados variam de indivíduo para indivíduo. Igualmente, essa inclusão afirma a capacidade da pessoa em compreender o que lhe é ofertado e, assim, participar da tomada de decisão em matéria de cuidados da saúde.

É a constatação de que todo indivíduo, quer seja para cuidados co m sua própria saúde, quer para fins de investigação, deve participar ativamente nas decisões que se fizerem necessárias.

Nesse sentido, pois, pode-se dizer que o consentimento informado respeita a dignidade individual, afasta o risco de influências e estimula uma decisão racional com respeito aos cuidados de saúde. Serve como um incentivo a parceria entre o doente e o profissional da saúde53.

A teoria do consentimento informado parte do pressuposto que conferir informação ao paciente é capacitá-lo, permitindo que a decisão que afete à sua esfera íntima parta dele próprio54.

52 Cfr. RAYMUNDO, Márcia Mocellin; GOLDIM, José Roberto. Apontamentos..., p. 72. 53 Cfr. OSSWALD, Walter. Limites..., p. 153.

54 Nesse sentido refere Bem Rich, que pela clareza da conclusão segue reproduzida: The modern view, which pervades the informed consent doctrine, is that knowledge is power, and therefore forthright disclosure of pertinent medical information to patients is empowering. The governing ethical principle is that of respect for individual autonomy. Autonomy is a recognition of what legal philosopher Charles Fried

Os Códigos de Deontologia médica incorporaram a teoria e estabelecem tanto a obrigação do médico de prestar as informações quanto a necessidade do consentimento por parte do paciente nas diversas situações de intervenção médica55.