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2.5 O fim de vida com dignidade

2.5.1 O respeito pela autonomia do paciente

A dignidade é um valor intrínseco da pessoa, como parte da humanidade e como sujeito autônomo e capaz de tomar decisões que é. Desconsiderar a capacidade da pessoa de se autogovernar é uma forma de desconsiderar o humano que há nela. Quando se fala em respeito à pessoa, pois, se fala de autonomia, de autodeterminação, que nada mais é do que o envolvimento da pessoa nas decisões que dizem respeito a sua vida, seu bem-estar e mesmo ao fim de sua existência.

O envelhecimento normal já é um período em que, por decorrência da diminuição da capacidade física e por vezes mesmo mental, a pessoa fica naturalme nte mais vulnerável, o que não representa, a priori, que tenha sua capacidade intelectual, mental e psicológica comprometida de forma a perder seu direito de autodeterminação. A infantilização no tratamento do idoso é uma forma de diminuição da sua capacid ade, que na grande maioria das vezes não corresponde à realidade e apenas auxilia e reforça a debilidade que começa a se instalar.

O aumento da expectativa de vida e a possibilidade cada vez maior de se alcançar idades bastante avançadas, ainda sem os cuidados prévios que serão necessários para a manutenção da mesma qualidade de vida do adulto ativo, acaba por impor restrições naturais, que podem ou não vir acompanhadas de doenças.

A doença, por sua vez, pode se instalar em qualquer fase da vida. A maior vulnerabilidade do paciente doente, em especial quando reconhecido a fase de terminalidade, não indica incapacidade de participação no processo decisório que diga respeito ao seu corpo e sua vida. O doente precisa ser ouvido e compreendido. A valorização da sua autonomia, nessa etapa final da vida, é um contributo para o reconhecimento da dignidade que lhe é própria.

As crenças pessoais do doente, suas vontades e, mais que isso, seus desejos, que correspondem a parte mais irracional do seu querer, precisam ser consideradas nas decisões que dizem respeito ao fim de vida. A pessoa que teve a liberdade de construir toda a sua vida e personalidade, deve poder chegar ao fim de sua existência igualmente,

com a possibilidade de conduzi-la, pois é a forma de viver o processo de morrer que

coroa sua vida 335.

Qualidade de vida diz respeito à percepção que a pessoa tem das situações que lhe cercam que, portanto, irão variar de acordo com as circunstâncias individuais e sociais do momento. Assim, mesmo diante de um processo de fim de vida, é possível a percepção de qualidade pela pessoa, na medida em que essa etapa transcorra de forma coerente com os conceitos e valores que pautaram toda a sua vida.

Vieira, em pesquisa realizada com uma mostra de 89 pacientes internados no núcleo de cuidados paliativos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, utilizando -se de instrumentos de avaliação indicados pela OMS, tanto para avaliar a capacidade dos pacientes como sua percepção de qualidade de vida, constatou que esses pacientes mantém a capacidade de tomada de decisão em seu melhor interesse e tem boa avaliação de sua qualidade de vida336.

O reconhecimento da autonomia do paciente e de sua capacidade de participação no processo de tomada de decisão, mesmo em circunstâncias difíceis como é a de um paciente terminal, tem implicação direta na sua percepção de qualidade de vida. Ou seja, o seu envolvimento nos processos de tomadas de decisão foi exatamente um dos fatores que contribuiu para a percepção de melhor qualidade de vida.

Um dos pilares da bioética é exatamente o respeito pela pessoa que implica no reconhecimento de sua autonomia. Retirar do paciente a possibilidade de interagir nas decisões que dizem respeito a sua vida, qualquer que seja a motivação, é diminuir sua importância e o dever de tratá-lo com a dignidade que lhe é conferida pela sua condição de ser humano.

Já foi analisado no capítulo primeiro desse trabalho que o paternalismo que dominava a relação médico-paciente está superado e necessita que profissionais da áre a

335 Cfr. MACIEL, Maria Goretti Sales. Aspectos..., p. 268.

336 Nesse sentido: O escore Total da amostra foi de 60,49%, resultado este que representou o grau de percepção de qualidade de vida dos pacientes, baseado no instrumento WHOQOL-OLD. Destaca-se que mesmo internados em razão do estado avançado e incurável de sua doença e, na maioria dos casos, sem possibilidade de retorno a seus lares, ainda assim os pacientes tiveram uma boa avaliação de sua qualidade de vida. […] O envolvimento dos pacientes em cuidados paliativos no processo de tomada de decisões pode ser avaliado pela capacidade evidenciada por todos os participantes e pelo resultado obtido no domínio Autonomia, do WHOQOL-OLD, que obteve um escore de 60,85%. Esses dois dados demonstraram a coerência dos resultados obtidos nesses dois diferentes instrumentos de pesquisa e da proposta de cuidados paliativos, em termos de teoria e prática associadas . W)TTMANN-VIEIRA, Rosmari; GOLDIM, José Roberto. Bioética e cuidados paliativos: tomada de decisões e qualidade de vida. Acta

Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 25, n. 3, pp. 334-339, 2012. Disponível em:

da saúde reconheçam no paciente uma pessoa autônoma e livre que pode e deve interagir no processo de tomada de decisão nas questões relativas à sua vida e saúde.

Também quando instalado o processo de morte é importante a não infantilização do paciente, quer pelo médico, quer pela família, de forma a não mantê-lo ausente e alheio às decisões nesse momento. A negação desse momento pelo próprio doente pode representar uma dificuldade para sua integração. Mas a negação pela família pode representar o afastamento de alguém ainda apto a se autodeterminar, impedindo -o de expressar sua vontade em momento que lhe seria muito importante.

Naturalmente que, se a opção pelo paciente é de não envolvimento e de não tomar conhecimento da gravidade de sua situação, também esta deverá ser respeitada. Como referem Neves e Osswald o médico, servidor da verdade, deve fornecer ao seu

doente a porção de verdade que este deseja, que pode integrar na sua vivência do mal que o aflige e o pode ajudar a ultrapassar a sua angústia existencial , reconhecendo que nem

sempre expor toda a verdade pode ser benéfica337.

Mas o importante quando se fala em autonomia é saber que a medida é exatamente o paciente. Não deve ser o médico nem os familiares quem determinam o que pode ou deve ser dito e o que pode ou deve ser feito. A opção de interagir com o paciente deve sempre ser a primeira a ser tentada.

Atendimentos de urgência e com grave risco à vida da pessoa transferem para o profissional médico a decisão dos atos a serem tomados, que devem atender ao dever médico de buscar o bem e não causar o mal do paciente.

A teoria do consentimento informado, que implica no reconhecimento de uma nova relação médico-paciente com respeito à forma de vida e crenças deste, é mitigada nas situações de emergência que se apresentam. Naturalmente que não se espera que o profissional, quando em risco o bem vida, suste atos de atendimento para primeiro obter o consentimento de familiares próximos.

A decisão é toda do médico, que, considerando seu conhecimento técnico, sua capacidade e a projeção de benefícios, deverá empreender todos os esforços para o bem do paciente. O resultado muitas vezes pode ser imprevisível como, por exemplo, a manutenção do paciente em estado vegetativo ou com sequelas graves e permanentes, mas diante da incerteza, os esforços necessários deverão ser empreendidos. Em

circunstâncias tais, o não envolvimento do paciente não implica em desrespeito a sua pessoa, senão que, é antes de tudo um dever do médico.

Porém, sempre que o procedimento necessário for eletivo ou que haja tempo prévio para se tratar da evolução da doença com manifestações do que gostaria, o dever do médico passa a ser o esclarecimento prévio e a observação da decisão do paciente. Reconhece-se como ideal a interação e o possível consenso com as orientações apresentadas.

2.5.2 A autonomia projetada: a diretiva antecipada como instrumento de manutenção da