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A mudança linguística e o estatuto do clítico acusativo no português

No documento Adriana Martins Simões (páginas 65-68)

2.4. O objeto pronominal acusativo no português brasileiro

2.4.1. A mudança linguística e o estatuto do clítico acusativo no português

O PB vem passando por mudanças no sistema pronominal desde o século XIX, como evidenciaram diversas pesquisas tanto no âmbito gerativista quanto sociolinguístico (CYRINO, 1993, 1994, 1996; DUARTE, 1986, 1989; GALVES, 1988, 1993, 2001; KATO, 1993; KATO; TARALLO, 1986; TARALLO, 1993a, b). Essas mudanças linguísticas teriam resultado na exclusão do clítico acusativo de 3ª pessoa da gramática do PB, na ampliação dos contextos de ocorrência do objeto nulo e

propiciado o surgimento do pronome lexical em função acusativa, entre outros fenômenos. Conforme Galves (2001), essa mudança linguística teria distanciado o PB não apenas do português europeu como também de outras línguas românicas.

Tarallo (1993a) constatou que o PB e o português europeu tornaram-se línguas inversamente assimétricas no que se refere ao preenchimento das posições argumentais de sujeito e objeto. Sendo assim, enquanto no português europeu a tendência seria à ocorrência de sujeito nulo e ao preenchimento do objeto por um clítico acusativo, no PB a tendência seria ao preenchimento do sujeito e ao apagamento do objeto. Os dados diacrônicos de Tarallo86 (1983, apud 1993a) mostram que a partir do século XIX começou a ocorrer uma diminuição no preenchimento do objeto acusativo no PB, como se observa na tabela 2.1.

Data % de preenchimento do objeto direto

1725 89,2%

1775 96,2%

1825 83,7%

1875 60,2%

1982 18,2%

Tabela 2.1: Preenchimento do objeto direto pronominal – Tabela extraída e adaptada de Tarallo (1983 apud 1993a:84). A partir da análise de documentos de diferentes séculos, Cyrino87 (1990, apud CYRINO, 1993) também observou um aumento nas ocorrências de objeto nulo na 1ª metade do século XIX, bem como o surgimento do pronome lexical em função acusativa na 2ª metade desse século, que corresponde ao mesmo período em que começou a haver uma diminuição do clítico, como se observa na tabela a seguir.

Datas % de objeto nulo % de clítico % de pronome lexical

1ª met. séc. XVIII 14,2% 100% 0%

1ª met. séc. XIX 41,6% 100% 0%

2ª met. séc. XIX 23,2% 91,3% 8,6%

1ª met. séc. XX 69,5% 81,6% 18,3%

1ª met. séc. XX 81,1% 47,3% 52,6%

Tabela 2.2: Realização de objeto nulo, clítico e pronome lexical ao longo dos séculos – Tabela extraída e adaptada de Cyrino (1990, apud CYRINO, 1993).

Para Galves (1993, 2001), essa mudança no paradigma pronominal se originou do enfraquecimento da concordância ocasionado pela perda do pronome tu, que mantinha a distinção entre 2ª e 3ª pessoa, e a inserção do pronome você. Assim, no PB o paradigma flexional dos verbos se distinguiria apenas pela

86 TARALLO, F. Relativization strategies in Brazilian Portuguese. 1983. PhD Dissertation - University of

Pennsylvania.

87 CYRINO, S. M. L. O objeto nulo no Português do Brasil: Uma mudança paramétrica? Ms. Campinas:

combinação do traço [+pessoa] (1ª) ou [-pessoa] (3ª) com os traços de número singular e plural, como pode ser evidenciado na tabela abaixo extraída de Galves (2001:143):

+pessoa/-plural > -o +pessoa/+plural > -mos -pessoa/+plural > -m -pessoa/-plural > -0

Tabela 2.3: As desinências pessoais do PB

Tendo como ponto de partida os estudos de Tarallo (1993a, b) a respeito da inversa assimetria entre o PB e o português europeu, González (1994, 1998, 1999, 2001, 2005, 2008) constatou que também havia diferenças sintáticas entre o espanhol e o PB. Em função disso, González pleiteia a existência de uma inversa assimetria88 entre essas duas línguas no que se refere à expressão dos argumentos

interno e externo do verbo mediante o uso de formas pronominais tônicas e átonas. De acordo com essa autora, no que se refere aos argumentos internos, enquanto no espanhol a tendência seria ao preenchimento e à realização do objeto por pronome átono (eventualmente duplicado por uma forma tônica com funções informativas), no PB a tendência seria ao apagamento e à realização pelo pronome lexical. Observem-se as sentenças abaixo extraídas de González (2001):

(2.56) Vi ele ontem na rua.

(2.57a) Lo vi a él ayer en la calle (, no a ella). (2.57b) Lo vi ayer en la calle.

(2.57c) *Vi [a] él ayer en la calle.

(2.58) A Joana viu Ø na televisão ontem. (2.59a) *Juana vio Ø en la televisión ayer.

(2.59b) Juana lo vio en la televisión ayer.

Em relação ao clítico, no espanhol, este faz parte da gramática adquirida naturalmente, já que é produzido inclusive por pessoas não escolarizadas (cf. FANJUL, 1999). No PB, ao contrário do espanhol, o clítico acusativo já não constitui aquisição natural (MAGALHÃES, 2006), mas é resultado de aprendizagem formal,

88 Outros fenômenos relacionados a essa inversa assimetria entre o espanhol e o PB identificados por González

(1994) foram a realização do sujeito pronominal, o objeto indireto pronominal, as construções reflexivas e pronominais, as construções com dativos, as construções passivas e impessoais, a colocação pronominal e as estratégias de relativização, todas relacionadas à mudança ocorrida no PB.

de modo que ocorre apenas na produção de falantes instruídos (CORRÊA89, 1991,

apud NUNES, 1993; DUARTE, 1986, 1989), constituindo, assim, a periferia marcada

da língua (GALVES, 2001; KATO, 2005). Portanto, uma sentença como (2.60a) teria o estatuto de gramática adquirida na representação mental de um falante nativo do espanhol e (2.60b), aparentemente correspondente à (2.60a), possuiria o estatuto de gramática aprendida na mente/cérebro dos falantes do PB. Com base nisso, assumimos que, no âmbito do clítico, os falantes nativos do espanhol e do PB possuem gramáticas diferentes, não apenas a partir de uma perspectiva paramétrica, mas, sobretudo, a partir do estatuto que tem o clítico na mente/cérebro dos falantes nativos dessas duas línguas.

(2.60a) Lo vi ayer. (2.60b) Eu o vi ontem.

Tendo em vista a natureza do clítico no PB, essa forma de realização do objeto não será considerada em nossa pesquisa na comparação com as variedades de espanhol de Madri e Montevidéu, uma vez que estamos considerando a gramática dessas línguas como língua-I enquanto manifestação da gramática

nuclear, em outras palavras, o que é fixado na gramática por aquisição natural.

Sendo assim, no que se refere à realização fonética do objeto, no âmbito do PB será considerado o pronome lexical. Veremos a seguir as características das construções com objeto nulo e pronome lexical no PB.

No documento Adriana Martins Simões (páginas 65-68)