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3.4 As gerações teóricas do regionalismo

3.4.3 A terceira geração: regionalismo global

3.4.3.3 A noção de ordem e as relações com o campo da segurança e defesa

Não há como se pensar ordens pós-Guerra Fria alheia às regiões. No entanto, as representações teóricas tradicionais do regionalismo, dentro da disciplina de relações internacionais, contemplam o nível global e o nível doméstico para explicar os problemas da segurança internacional. Usando o conceito de maximização do poder nacional, realistas e neo-realistas (ofensivos) tem examinado o nível doméstico e conceituado a segurança, buscando entender suas implicações para a esfera política e militar (MORGENTHAU, 2003; MEARSHEIMER, 2001). A segunda

70 ordem de considerações teóricas discute o tópico pelo viés da segurança coletiva ou global, como nos trabalhos sobre a Liga das Nações ou mesmo sobre as Nações Unidas (CLAUDE, 1971).

A ordem unipolar pode ter permitido maior ativismo às potências regionais (BUZAN e WEAVER, 2003), porém o ponto intrigante é o quanto a ordem regional é fruto das interações globais ou o quanto ela é derivada de uma dinâmica própria? Quais seriam o peso e a intensidade das forças regionais e globais na configuração da segurança internacional, no pós-Guerra Fria? Por outro lado, qual seria a relação entre a ordem internacional e regional e a construção de políticas domésticas, especialmente aquelas que possuem intensidade máxima na escala de importância para a manutenção do Estado, como as de defesa.

A interação entre o doméstico e o global pode ser mais bem entendida em caso de se adotar modelos que permitam incorporar estas interfaces, entre diferentes níveis de análise. Nas abordagens mais recentes do regionalismo esta possibilidade está aberta.

Este capítulo debateu as teorias e abordagens do regionalismo em relações internacionais, sua dimensão na segurança e defesa e governança. As relações entre regiões e ordem, porém, serão trabalhadas no próximo capítulo.

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4 - ORDEM INTERNACIONAL, ORDEM REGIONAL E PERCEPÇÕES POLÍTICAS

O debate sobre ordem internacional está frequentemente relacionado ao trabalho de Hedley Bull em Relações Internacionais. Em Anarchical Society, trabalho publicado em 1977, o autor define ordem como uma situação ou estado de coisas que pode, ou não, ser estabelecido, em maior ou em menor escala na política internacional em um dado período e lugar. Ordens internacionais sempre teriam ocorrido na política entre Estados, e Bull discutiu suas proposições ao apresentar o florescimento e expansão da sociedade internacional européia a partir do Renascença (BULL, 1977, p. 15).

A ordem internacional, desta forma, é uma variável dependente do conceito de sociedade internacional. A sociedade internacional, como base intelectual da ordem na vida entre os Estados, foi concebida por Bull como:

Uma sociedade de Estados (ou sociedade internacional) existe quando um grupo de Estados, conscientes de certos interesses e valores, forma uma sociedade, no sentido em que os Estados se relacionam uns com os outros por meio de obrigações auto-estabelecidas, e as partilham em instituições comuns (p. 12, tradução nossa).

Sistemas internacionais podem existir sem sociedades internacionais, desde que os Estados não compartilhem interesses e valores comuns, em suas interações. O sistema grego de cidades-estado, em que Cartago e a Pérsia foram inseridas de alguma forma, seria exemplo. Todavia, não existiam valores compartilhados, pois a Pérsia era percebida pelos gregos como uma região bárbara, algo semelhante às percepções sobre Cartago (BULL, 1977, p.14). Desta forma, sem uma sociedade entre as cidades-estado gregas a ordem era baseada em um cálculo para manutenção formal da existência das distintas soberanias. Não havia socialização de valores e interesses, assim a preservação do sistema era assegurada pela força das cidades-estado gregas.

Ordens são formadas, para Bull, com quatro grandes objetivos: o primeiro volta-se para a preservação do sistema e da sociedade de Estados em si; o segundo para manutenção da soberania externa e da independência dos Estados, o terceiro para

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garantir a possibilidade da paz, e por fim para a limitação da violência, manutenção dos acordos e garantias comuns de propriedade, pelo princípio pacta sunt servanda (BULL, 1977, p. 19).

Bull não partiu de uma visão da ordem internacional semelhante à encontrada no conceito de anarquia Hobbesiana. O estado de guerra em Hobbes é mais pessimista quanto ao relacionamento entre Estados que a representação de Bull, em Anarchical Society. A sociedade de Estados parte de regras socializadas, algo distinto ao encontrado em Hobbes, no Leviatã:

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seu reino, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados 17.

Interpretações mais recentes dão conta que Bull, além de não utilizar o conceito de anarquia de Hobbes, também não buscou realizar uma transposição, para o plano internacional, das noções de ordem e governo existentes em âmbito doméstico. Tal compreensão retira todo o sentido de analogias domésticas para se representar a ordem em Bull. Não há harmonia, estabilidade ou paz automática na sociedade internacional; muito menos o poder e os conflitos seriam suprimidos, ao contrário, frequentemente podem ser forças dominantes nas relações internacionais (ALDERSON e HURRELL, 2000).

O debate contemporâneo sobre ordem permite distinguir tipos de ordens diferentes, rotas e instrumentos para a negociação e o estabelecimento de regras. Bull (1977), Buzan (1993), Hurrell (1998) e Alagappa (2003) desenvolveram tipologias de ordem. Bull, em primeiro lugar, discute a possibilidade de se pensar em três grandes tipos: sistema, sociedade internacional e sociedade grociana. O primeiro diz respeito ao modelo hobbesiano, de estado de natureza agressivo, em que a guerra é uma

73 contingência das interações por poder. A ordem internacional produzida pelo poder aumenta o risco de conflitos e a manutenção da soberania e do poder dos principais Estados é instável. O segundo modelo é focado em regras de convivência geradas pelo poder e pela busca pela restrição dos efeitos negativos da guerra. O terceiro está baseado em considerações que as regras surgem em função de parâmetros morais encontrados entre os Estados, que buscam a justiça e relações não belicosas (BULL, 1977, p. 23-27).

Buzan aponta uma tipologia de ordem composta por sistemas, sociedades funcionais e sociedades civilizacionais (BUZAN, 1993); Hurrell trabalha três categorias de ordem, minimalista, plural e solidária (HURRELL, 1998). Para as finalidades desta tese o conceito central será o de ordem, e não o de sociedade internacional. A ordem internacional (entendida como interações governadas por regras) liga-se diretamente às questões próprias à gestão da segurança internacional, já o conceito de sociedade internacional pode ser entendido como voltado para uma compreensão alternativa da política internacional (ALAGAPPA, 2003). Serão analisadas as interações políticas no Cone Sul e Europa, bem como a produção das regras decorrentes da distribuição de poder e da percepção dos atores nas regiões. A construção de sociedades regionais deve ser entendida como desdobramento fortemente ligado a manutenção das regras socializadas por Estados.

Para se pensar a ordem internacional, como desdobramentos de regras estabelecidas, cabe, então, partir de elementos que articulam o poder, os interesses e os valores comuns, que são resultantes de percepções dos atores internacionais. A compreensão do poder, das regras e instituições envolvidas nas interações entre Estados é realizada, por sua vez, por homens de Estado e elites que permitem que estas percepções cheguem até a esfera de produção de políticas. A política externa de cada Estado demanda tal percepção, assim como a política de defesa - políticas fortemente relacionadas à externalidades e ao ambiente exógeno ao Estado.

Aqui há dois pontos de suma importância: a compreensão do poder e sua definição, e a percepção dos homens de Estado e elites na elaboração de políticas.

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