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3.4 As gerações teóricas do regionalismo

3.4.1 A primeira geração do regionalismo

3.4.1.1 O sistema social e pluralista do neofuncionalismo

Em direção semelhante a Deutsch, Ernst Haas buscou construir uma teoria de integração que contemplasse as Ciências Sociais e a construção de uma comunidade política pós-nacional (BRESLIN, HIGGOTT e ROSAMOND, 2002). O Neofuncionalismo herdou de Mitrany a lógica evolucionária de um sistema que tem por objetivo a paz, uma antecipação do spillover de Haas. A proposta tecnocrática, flexível e funcional de Mitrany pode ter influenciado não apenas o trabalho de Haas, mas autores recentes que têm abordado temas de políticas européias, como Hooghe e Marks (2001) e Majone (1997). A temática de governança regional multi- nível (HOOGHE e MARKS, 2001) e o papel de agências regulatórias e instituições políticas não-majoritárias têm sido usadas para explicar e justificar a gênese de policies em arranjos regionais (MAJONE, 1997).

Haas evitou o clima profundamente normativo da época, ao se distanciar de visões idealizadas da Europa do pós-guerra. Apesar da influência funcionalista, Haas optou por uma teoria que transbordasse a compreensão do fixo sistema de Estados europeus, com sua crítica à ausência de uma teoria política (da ação) que explicasse a mudança, nos trabalhos de Mitrany. Em Uniting of Europe (1958) Haas discute a construção da Comunidade Econômica do Carvão e Aço (CECA) e a importância da Alta Autoridade, instituição européia que representou a invasividade da dimensão supranacional sobre as dimensões domésticas, nacionais. A

51 perspectiva francesa em estabelecer uma ordem européia no pós-guerra que reduzisse as chances do rearmamento alemão, e organizasse a retomada econômica encontrou nas instituições supranacionais da CECA o suporte para a governança regional. O neofuncionalismo está especialmente relacionado ao deslocamento de identidades nacionais em direção a um novo centro de poder supranacional, comunitário (SCHMITTER, 2004). O modelo Haasiano pode ser explicado através das seguintes variáveis:

a) Quanto à ontologia: Haas construiu um modelo dotado de uma ontologia transformativa, em que os atores reorientam suas lealdades e vínculos, deslocando-os de um locus anteriormente nacional para uma nova esfera política supranacional. Por meio desta característica o Neofuncionalismo se distancia dos modelos realistas e neo-realistas, presentes majoritariamente nas relações internacionais (WALTZ, 1986; HOFFMANN, 1995), pois sugere que as identidades dos atores envolvidos em interações regionais podem ser mudadas. Tal mudança seria produzida racionalmente pelos grupos de interesse, o que justificaria uma teoria política em caminho oposto ao funcionalismo. Tais preocupações teóricas aproximaram o trabalho de Haas ao construtivismo, meta-teoria de relações internacionais baseada na compreensão de que a estrutura internacional seria composta por idéias, crenças e culturas antes do que por capacidades militares em um domínio de auto-ajuda (WALTZ, 1979). Em textos mais recentes, após ter anunciado a obsolescência do próprio Neofuncionalismo, Haas confessa uma grande aproximação com o construtivismo, pelo motivo das preocupações comuns com os sistemas sociais (HAAS, 1975 e 2001);

b) Quanto à epistemologia: o Neofuncionalismo possui uma característica processual: a conformação de interesses ocorre em um longo e persistente movimento. Pode estar localizada na esfera nacional, inicialmente, mas se desloca para o domínio comunitário, esfera em que os grupos políticos dispersos na sociedade plural teriam seus interesses maximizados. Assim, o Neofuncionalismo tem por oposta a Teoria da Estabilidade Hegemônica, proposta inicialmente por Gilpin. A mudança política apontada por Gilpin somente ocorreria no sistema internacional se: 1) o sistema, mantido por um

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hegêmona, é posto em desequilíbrio pelo aumento proporcionalmente maior de poder11 de um Estado desafiador; 2) o potencial Estado desafiador estabelece um cálculo de custo-benefício de sua expansão; 3) dada a expectativa de ganhos superiores aos custos de uma eventual disputa o Estado desafiador estabelece um curso de ação em estratégia contenciosa; 4) Uma guerra hegemônica produz um novo equilíbrio, consagrando um novo hegêmona (GILPIN, 1981, p. 10 e 11). Em Gilpin, portanto, a mudança ocorerria em grandes momentos, como nas guerras hegemônicas no ambiente internacional ou nas revoluções por alteração de status-quo em ambientes domésticos. Haas está em caminho oposto, pois define que as mudanças em regimes de integração se dão incrementalmente, em função do deslocamento de lealdades políticas e pelo ativismo de organismos de cunho supranacional. A ênfase de Haas se dá nos atores e em suas interações, em termos de processos e não de resultados (ROSAMOND, 2000, p. 55);

c) Quanto aos grupos de interesse: o pluralismo político previsto por Haas está relacionado a uma ampla mobilização de vários segmentos da sociedade por meio de partidos políticos e poderosos grupos de interesse que liderados por uma elite se envolveria em uma luta por sobrevivência política e poder. Tais grupos seriam maximizadores e buscariam as instituições supranacionais como suporte para atingir seus interesses (MATTLI, 2005);

d) Papel das instituições supranacionais: o trabalho de Haas é profundamente crítico aos modelos tradicionais de governança nacional e as suas repercussões no plano internacional: o federalismo, as confederações e a gestão intergovernamental (ROSAMOND, 2002). A busca por soluções para problemas comuns, especialmente em ambientes de crescente interdependência, levaria às instituições supranacionais, que desfrutam de um papel central na explicação para a progressiva caminhada para uma mais profunda cooperação, em projetos de integração. Se a integração circula do econômico para o político, o que permitiria a sustentação ao processo seria o papel de coesão gerado pelas instituições internacionais. A predição de auto- sustentação do processo integrador ocorreria por meio do fenômeno do

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A definição de poder para Gilpin implica em distinguir capacidades militares, econômicas e tecnológicas: “In this book, power refers simply to the military, economic and technological capabilities of states” (GILPIN, 1981, p. 13).

53 spillover, uma espécie de transbordamento da cooperação, que partiria dos simples acordos de cooperação baseados no comércio e em outras áreas das low politics, e alcançariam as esferas da high politics, sustentando a integração política. O motor que empurraria a sustentação da integração européia seria a Comissão Européia, instituição comunitária que possui o poder executivo no projeto europeu;

e) Papel das lealdades. Não é possível que ocorra o spillover político sem que haja uma transferência de lealdades que se deslocariam da esfera nacional para o domínio supranacional. O conceito, central em Haas, refere-se à legitimidade e autoridade da comunidade política. Porém o ponto saliente na literatura repousa sobre se o deslocamento de lealdades significa que os atores (grupos de interesses) aderem, exclusivamente, a uma nova lealdade supranacional ou se mantêm antigas e múltiplas lealdades (RISSE, 2005). Uma compreensão de que o deslocamento de lealdades seria total, de uma esfera a outra, equivaleria a dizer que tal processo seria um movimento de soma-zero, deslegitimador da soberania e da identidade nacional. Interpretações recentes de Haas dão conta da perspectiva de um institucionalismo de cunho sociológico, em que a lógica da conduta apropriada seria uma alternativa (ao se pensar as lealdades em Haas) aos esquemas de escolha racional. Tal possibilidade permitiria entender o avanço do pilar intergovernamental em momentos recentes na integração européia, notadamente a cooperação em assuntos de segurança e defesa.

3.4.1.2- AS CRÍTICAS AO NEOFUNCIONALISMO E A EMERGÊNCIA DO