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Não há dúvida sobre a importância do poder para a disciplina de relações internacionais. Desde Tucídides, passando por Maquiavel, Hobbes, Morgenthau, Dahl, Aron, Wight, Waltz e Mearsheimer, o poder constitui-se como o corpus da área, algo semelhante ao que ocorre na ciência política. Porém, o poder tem sido alvo de inúmeras controvérsias na disciplina18.

Estudos sobre poder em relações internacionais sublinham distintas formas para caracterizar o fenômeno. Na tradição realista, desde Maquiavel a Morgenthau, poder é visto como uma meta, uma finalidade comum à ação política de todos os Estados (MAQUIAVEL, 1980; MORGENTHAU, 1948). Uma visão próxima sublinha os recursos físicos que uma nação possui. Esta interpretação salienta os elementos nacionais de poder em termos de capacidades, armas e recursos econômicos como bases para uma definição objetiva de poder (STOESSINGER, 1962; WALTZ, 1979; MEARSHEIMER, 2003). Inúmeros mecanismos foram construídos por meio desta definição para se obter critérios objetivos de classificação de poder de diferentes Estados. O mais conhecido critério, fruto do trabalho de David Singer e M. Small (1972) é conhecido por correlates of war (Cow).

O cálculo de recursos de poder foi amplamente utilizado por Waltz em Theory of International Politics (1979). Sua compreensão de capacidades (capabilities) como uma variável independente (a explicar o comportamento dos Estados) e material de poder está na base da distinção entre potências e Estados frágeis. No neorealismo de Waltz, a distribuição de capacidades militares permitiria o uso do conceito de balança de poder, recurso analítico utilizado para se compreender o equilíbrio no sistema internacional e o comportamento genérico das potências. Decorre daí a

18 Ver: HOFFMANN, STANLEY. Notes on the elusiveness of modern power. International Journal 30. Spring, 1975; Martin Wight, Power Politics. Edited by Hedley Bull et al., London: Royal Institute of International Affair, 1978; NEUMANN, IVER B. (ed.) Regional Great Powers in International Politics,

Basingstoke: St. Martin’s Press, 1992; WOHLFORTH, WILLIAM C. The Elusive Balance. Power and perceptions during the cold war. Cornell University Press. 1993; LEMKE, DOUGLAS. Regions of War and Peace. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2002; SOARES DE LIMA, MARIA

REGINA e HIRST, MÔNICA. Brazil as an Intermediate State and Regional Power: Action, Choice and Responsibilities, in: International Affairs 82.1, 21-40, 2006.

noção mecânica de Waltz sobre a tendência inexorável ao equilíbrio no sistema internacional.

A construção de indicadores de poder baseados apenas em capacidades militares gerou um grande número de trabalhos críticos, na disciplina (HOFFMANN, 1975; WOHLFORTH, 1993). Afinal elementos sociais, econômicos, tecnológicos, dentre outros, poderiam levar uma nação a se destacar frente às outras, sob o prisma do poder. Os recursos naturais e a geografia de um Estado inegavelmente podem ser utilizados para se pensar em vantagens de um Estado ao outro, em situação de conflito ou guerras. A proteção natural bi-oceânica dos Estados Unidos, entre o Atlântico e o Pacífico; o tamanho do território do Brasil, ou o número elevado de habitantes da China, dentre outras características singulares, poderia levar a uma variação em distintas medições e índices de poder.

Uma hipótese alternativa para se pensar poder foi construída por Dahl (1957) ao relacionar poder à influência e ao uso de capacidades, de forma a tratá-lo como um meio e não como uma meta. O diagrama abaixo explicita a noção de influência:

Para fazer Influência A B X

Figura 2: modelo de poder como influência

75 Esta tradição, liberal-pluralista, realça a habilidade dos Estados em exercer influência sobre outros no sistema internacional. Não obstante, o ponto apresentado aqui não se resume apenas a se A possui habilidade em influenciar B, mas se A consegue alterar o curso de ação ou política estabelecida por B. Porém, a influência não termina quando A consegue fazer com que B faça X. O exercício não cessa. Desta maneira, é possível falar de influência como processo, e não apenas como um epifenômeno. É possível também entender influência como algo situacional ou

contingencial, pelo fato que é possível avaliar o período em que a influência de A sobre B leva a X, ou por outro lado, a gradação de influência que A exerce sobre B, se diminui ou aumenta ao longo do tempo.

Há um grande número de possibilidades de se avaliar influência, no exemplo dado. O retorno da influência de B sobre A, para se fazer Y, por exemplo, seria uma nova forma de avaliar processos e interações de poder.

Influência

A B

Para fazer Para fazer

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Influência

Y X

Figura 3: modelo de interação de poder

De outra maneira, é possível pensar não sobre como A exerce influência sobre B para fazer X, mas ao contrário, como A influencia B para não fazer X. Esta é uma interação muitas vezes chamada por poder negativo (HOLSTI, 1964). No caso da América do Sul um bom exemplo foi a pressão do Reino Unido para que o Brasil não assumisse uma postura favorável à Argentina, no conflito das Malvinas, em 1982. Sabe-se que o Brasil nutria alguma simpatia pela causa Argentina, tendo fornecido, sigilosamente, aviões Xavante e EMB 111 – Embraer, para que Buenos Aires patrulhasse o litoral e acompanhasse a movimentação britânica. Não obstante, Brasília manteve-se neutra durante o período da guerra (1982-1983), mesmo que tenha se manifestado favoravelmente ao vizinho, reconhecendo seu direito sobre as ilhas no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Brasil não se confrontou com a Coroa Britânica, manteve-se eqüidistante do conflito e compreendeu a fragilidade do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) frente à pressão do Reino Unido e OTAN (CERVO e BUENO, 2002; MONIZ BANDEIRA, 2003).

77 Mas, logo após o conflito (1984), o Brasil candidatou-se a Secretaria-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) e obteve êxito, tendo sido eleito por unanimidade entre os Estados da região. Brasília iniciou um processo que levou a postulação de liderança regional, em assuntos do Atlântico sul, tendo aprovado nas Nações Unidas (Assembléia geral) a proposta que elevava a região a Zona de paz e cooperação, em 1986.

O poder, nestes exemplos, possui caráter relacional, é possível tanto falar do que A influencia B, mas também como B influencia A, em um processo retroalimentado. Porém, um problema comum em elaboração de políticas de defesa está relacionado a quanto e como um Estado A deve alocar recursos frente a uma percepção da influência e das capacidades de Estados estrangeiros em conjunto, sobre a sua própria soberania e interesses.

Como alocar recursos em defesa depende de uma complexa equação em que a realidade exógena, internacional, entendida como externalidade positiva e negativa, é percebida pelos elaboradores de política. Ao mesmo tempo, os elaboradores de política inserem em seus modelos de avaliação os dados nacionais relacionados ao poder doméstico. Pode haver uma grande discrepância entre o poder real de um Estado supostamente adversário, tido aqui por Estado B, e sua capacidade de causar danos ao Estado calculador, aqui designado por Estado A. O Estado B pode anunciar o lançamento de um programa para dotá-lo de capacidades ofensivas, como a construção de mísseis balísticos ou o desenvolvimento de armas nucleares. Por outro modo pode fazê-lo secretamente, negando insistentemente o desenvolvimento de capacidades. Para minimizar o risco, o Estado A pode lançar mão de mecanismos de sondagem remota ou de inteligência, porém seu cálculo será sempre sub-ótimo, o que pode fazê-lo se armar além ou aquém da ameaça representada por B.

Há, em considerações políticas sobre defesa, um ponto crítico, frequentemente negligenciado por autores como Waltz (1979) – a capacidade de emprego, ou seja, converter recursos (capacidades) em poder efetivo. A Alemanha foi surpreendentemente eficiente em transformar poder potencial em poder efetivo,

78 entre guerras, frente aos seus competidores. Estados podem adotar estratégias eficientes, como as utilizadas pelo Terceiro Reich para ocupar a França em 1940, se valendo de divisões Panzer e da Blitzkrieg; ou podem subestimar a capacidade de um outro Estado apenas por medir equivocamente capacidades estáticas. O poder nuclear pode ser utilizado para gerar eletricidade, para obter a dissuasão ou mesmo para destruição em massa, assim, o uso e a condição de mobilização da capacidade torna-se central no cálculo do elaborador e do tomador de decisões do Estado.

Utilizar apenas capacidades para se medir o poder pode levar frequentemente a equívocos estratégicos em política externa ou em defesa. Um dos desdobramentos teóricos mais relevantes em relações internacionais sobre o ponto talvez seja aquele ligado ao trabalho de Waltz (1979). Em Theory of International Politics, texto seminal do neorealismo, o autor apresenta seu modelo baseado em distribuição de capacidades:

Definir uma estrutura requer ignorar como as unidades se relacionam entre si e concentrar a atenção na posição umas em relação às outras (como estão organizadas ou posicionadas). A disposição das unidades é uma propriedade do sistema. A posição das unidades muda de acordo com alterações nas capacidades relativas. Uma estrutura política interna é definida: a) de acordo com o princípio pelo qual é ordenada; b) pela especificação das funções de unidades diferenciadas e c) distribuição das capacidades relativas de cada uma (pág.115, tradução nossa).

Em Waltz, as variáveis independentes que explicam o comportamento dos Estados e seus relacionamentos são a distribuição de capacidades (militares) e o número de potências no sistema. Os Estados ajustam suas políticas à configuração de poder existente no sistema, e a política de defesa (e externa) pode ser elaborada pela percepção que o Estado possui sobre as capacidades alheias e próprias, bem como a contagem de pólos de poder. O posicionalismo do Estado levaria a estratégias bem-sucedidas e a fracassos, em caso de uma incompreensão sobre os princípios ordenadores da política internacional.

Não há percepções de homens de Estado ou elites sobre capacidades, neste modelo, muito menos o poder possui uma representação na forma de influência. Mesmo que existam interações entre as unidades entre si e entre unidades e estrutura internacional, as mesmas não alterariam o poder real dos Estados. Waltz

79 preocupa-se com comportamentos dos Estados e não com resultados das interações, mesmo que beligerantes. Como a distribuição de poder é material, o modelo induz a que se imagine que todos os homens de Estado e elites formuladoras de políticas utilizarão a mesma racionalidade no que tange a construção de políticas.

A maneira pela qual a literatura de relações internacionais enfrentou o problema está ligada ao trabalho de Blainey (1973) e Gilpin (1975). Para estes autores, a única e convincente forma de avaliar capacidades está ligada a considerar os resultados de guerras. Guerras determinariam a escala de importância real de Estados. O problema aqui é que esta medida de poder pode ser desafiada pela força das negociações políticas e diplomáticas, razão do término de muitos conflitos, antes da vitória definitiva de um dos lados envolvidos. Uma recente demonstração contra- intuitiva de poder foi dada pelo grupo libanês Hezbollah, com o retorno das forças armadas Israelenses ao seu território de origem, mesmo em situação flagrante de superioridade militar, no final de agosto de 2006. As forças de Israel poderiam destruir a capacidade ofensiva do grupo islâmico no Líbano, porém as negociações que envolveram os Estados Unidos e Estados europeus levaram ao retorno das tropas. Há muitas dúvidas se as metas estabelecidas pelo Estado Israelense foram atingidas, o que fez o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, comemorar vitória, mesmo em situação de poder real em desvantagem (CORDESMAN, 2006).

Em outro trabalho de Gilpin, War and Change in World Politics (1981), o autor faz uso do poder por meio de uma associação entre capacidades e componentes intangíveis que afetam o resultado da ação política, ao se referir a moral pública, a qualidade dos líderes políticos e fatores situacionais. Estes componentes psicológicos do poder são entendidos através da escala de prestígio político dos Estados. A hierarquia de prestígio e capacidades afetaria a possibilidade de mudança nas relações internacionais (GILPIN, 1981, p.14).

As dificuldades do conceito de poder em Waltz levam a uma compreensão de que a balança de poder é o decisivo aparato analítico a ser utilizado pelos Estados para seu posicionamento no sistema internacional. Contar os pólos e avaliar as

80 capacidades das unidades (Estados) se desdobra em uma eterna avaliação da balança de poder para finalidades políticas. O problema em Waltz está relacionado ao fato que ao contrário de Gilpin, o autor de Man, the State and War contempla apenas a hipótese de equilíbrio de poder, no sistema de Estados. Uma corrente realista alternativa das Relações Internacionais busca explicar o poder pelo mecanismo da hierarquia (CARR, 1951; ORGANSKI e KUGLER, 1980; LEMKE, 2002).

A busca por influência e prestígio nas relações internacionais leva os Estados a não se comportarem, como regra, em balancing ou em bandwagon, conforme a prescrição neo-realista. O princípio da hierarquia, em condição distinta a anarquia, promove a política do status-quo, de forma que o comportamento dos Estados é função de padrões e da ordem estabelecida pelo poder dominante (LEMKE, 2002, p.22). Os princípios hierárquicos e as leis do status-quo foram apresentados, pela primeira vez, por Organski, em texto seminal de 1958.

O poder dominante, entendido como o Estado mais forte da hierarquia, estabelece e mantêm a ordem internacional de forma a assegurar seus próprios interesses ao longo do tempo. Padrões de interações vantajosas para o poder dominante são estabelecidos de forma a assegurar mais do que recursos materiais, especialmente recursos de prestígio (KUGLER e ORGANSKI, 1989, p. 172). Estes padrões são freqüentemente fruto dos sucessos de configuração de políticas domésticas que são transportados para a esfera internacional, externalizados como forma de garantir legitimidade. Assim, relações econômicas, regime político e práticas militares são externalizadas como forma de criar regras e estabelecer a ordem internacional. Uma vez estabelecida a ordem, o poder dominante buscará preservar o status-quo, que lhe renderá bons frutos em longo prazo. Os demais Estados, similares na composição de instituições domésticas e valores, podem se beneficiar do status- quo, compondo o que Organski designa por Estados satisfeitos (1958, p. 326-333). Nem todos os Estados, todavia, encontram satisfação de suas necessidades, ao longo do tempo na ordem hierárquica. O poder dominante busca prover políticas e instituições que diminuam as possibilidades de Estados insatisfeitos desafiarem a ordem, o que poderia produzir mudanças na hierarquia de poder.

81 A teoria da hierarquia de poder, ao contrário da teoria de equilíbro de poder, entende que a existência de um poder dominante diminui as chances de conflitos e guerras. A tendência natural seria a de acomodação dos demais Estados, dada a diferença de prestígio do poder dominante frente aos Estados satisfeitos. Fissuras no modelo somente ocorreriam se algum Estado, insatisfeito com a sua condição não- dominante, desafiasse a ordem. Esta situação seria rara, e não uma tendência inexorável, como no neorealismo. A ordem hierárquica provê benefícios para os Estados intermediários, ao assegurar-lhes soberania e cooperação para que o status-quo seja mantido.

O contraste de Organski, Gilpin e Lemke frente à teoria neorealista de Waltz é mais agudo que apenas contrapor uma dimensão não material de poder à capacidade e materialismo militar. Aponta para o quanto são frágeis às definições não contingenciais da política global, baseadas na força material e não em sua possibilidade de emprego. Afinal, em sistemas de balança de poder, como em Waltz (1979), quem estabelece a contagem de pólos? Quem desenha as políticas de balanceamento de poder ou de engajamento as potências? Qual a relação entre a política internacional (âmbito de Waltz) com as políticas de Estado? Qual o sentido prático das representações materiais de poder frente à alocação de recursos no setor de defesa de um Estado, ou em sua política externa?

Para dar respostas a estas perguntas, esta tese trabalhará a ordem política internacional, em consonância com o trabalho de Bull, Watson e Hurrell. Porém, como o foco é regional, será discutida a idéia de ordem regional como nível de análise e sua percepção pelos homens de Estado e elites políticas.

O ponto de partida são as abordagens tradicionais do regionalismo, do institucionalismo (como nos trabalhos de Solingen, Lake e Morgan) e dos complexos regionais de segurança (como em Buzan e Weaver), para chegar ao realismo neoclássico (como nos trabalhos de Zakaria, Schweller e Wohlforth). Desta forma se discute a formação da ordem regional e o papel dos líderes políticos e elites, bem como seus desdobramentos em segurança e política de defesa.

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