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3.4 As gerações teóricas do regionalismo

3.4.2 A segunda geração: o novo regionalismo

O Novo Regionalismo tem suas origens nas transformações do sistema internacional nos meados dos anos oitenta e na proliferação de arranjos regionais, sejam econômicos ou políticos pelo mundo (BOAS, MARCHAND e SHAW, 2005). As mudanças na economia e na política apontaram para um novo sistema baseado nas seguintes características: a) multipolaridade ou tripolaridade no sistema internacional, após o período bipolar. Junto à nova divisão de poder houve uma nova divisão do trabalho sob o capitalismo do final do século; b) o relativo declínio da hegemonia americana em uma combinação com uma menor refração dos Estados Unidos com o regionalismo; c) a erosão do sistema das nações-estado Vestfalianas e o aumento da interdependência e da globalização e d) as mudanças que consagraram a economia política sob o viés neoliberal nos países em desenvolvimento e nos Estados recém saídos do comunismo (HETTNE e SODERBAUM, 2002).

A segunda geração do regionalismo pode ser entendida como uma abordagem para o estudo da economia política contemporânea e das relações entre globalização e regionalismo, enquanto fenômenos interligados por uma complexa rede de fluxos,

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atores e processos. Talvez tal geração não seja propriamente uma geração exclusiva dos estudos regionais, mas uma geração que estuda as interconexões entre globalização e regionalismo, como forma de adicionar algum sentido territorial ao debate sobre estudos globais. Há uma importante bifurcação teórica derivada do ponto. Para alguns autores da sub-área (SHAW, 2003) as conexões entre regionalismo e globalização são o fermento para um problema disciplinar: dadas as clivagens decorrentes do conceito de Estado pós-Guerra Fria, os fundamentos dos estudos sobre relações internacionais e sobre relações globais (global relations) se tornaram competidores e antitéticos13. Frente à progressão e profundidade das forças globais os estudos sobre regionalismo se tornariam mais e mais significativos, frente ao enquadramento territorial aduzido aos tentativos modelos de estudos sobre globalização.

Há uma segunda interpretação que entende que os estudos sobre globalização permitiram uma melhor nitidez frente às múltiplas abordagens e níveis de análise na disciplina de relações internacionais, bem como salientaram os vínculos entre o nível regional e o global para o estudo da política, economia e segurança. Há nitidamente novos desafios para o regionalismo, sob o plano teórico, face aos desafios impostos pela globalização: como explicar regiões do mundo em que importantes capacidades estatais se esvaíram? Como explicar normas e instituições em regiões fragilmente reguladas? Como estudar regiões profundamente marcadas em que novas formas de pensar a segurança emergem, marcadas por ameaças regionais, extra-territoriais e não-estatais? Novas formas de governança regionais, sistemas multi-nível e de grande interdependência exigem refinamento teórico nos estudos sobre o regionalismo, justificando o Novo Regionalismo. Todavia há determinadas dimensões das mudanças recentes que demandam teorias já estabelecidas em relações internacionais (HURRELL, 2005). Nem todas as perguntas anteriores podem ser respondidas pelo Novo Regionalismo, mas sua importância tem sido crescente, pelos seguintes motivos:

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O internacional e o global são caminhos que expressam distintas idéias. As transformações globais envolvem a reconstituição, antes que a simples crítica ou superação das formas e relações estatais (SHAW, 2003, p. 40-41, tradução nossa)

61 a) A partir dos anos oitenta é possível identificar nos estudos regionais um

progressivo deslocamento da temática comercial, existente em uma determinada área geograficamente delimitada, para a emergência de estudos que cruzam fronteiras, em áreas não delimitadas, como os corredores de desenvolvimento asiáticos ou americanos. É possível, ao mesmo tempo, apontar para a ocorrência de modelos em macro-regiões (como o regionalismo produzido pela União Européia, NAFTA ou ASEAN) ou mesmo em micro-regiões, como nos fenômenos recentes que articulam Cingapura e Hong-Kong, ou em regiões européias como o Cáucaso ou asiáticas como a região do Mar Negro (BRESLIN, HIGGOTT e ROSAMOND, 2002). Tal abordagem ocorre em um momento em que as experiências de regionalismo não tenderam a ser profundamente institucionalizadas, como no exemplo oposto da União Européia. Há novas formas de regionalismo não- institucionalizadas (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico - APEC) simultaneamente a formas desinstitucionalizantes (Comunidade Andina) e outras em transição, como o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL;

b) Outro importante ganho é a discussão possível do conceito de ordem frente aos fenômenos da globalização e regionalismo. Tal compreensão foi apontada inicialmente por Gamble e Payne (1996) e discutida por Lake e Morgan (1997) e Buzan e Weaver (2003). Neste autores há o uso do conceito de Buzan, Weaver e de Wilde (1997) de complexo regional de segurança (RSC) que articula unidades políticas ligadas geograficamente em um ambiente em que os principais problemas de segurança não podem ser geridos isoladamente (BUZAN e WEAVER, 2003). No mundo pós-Guerra Fria, os complexos regionais de segurança, e as regiões emergem como uma característica central para se pensar a ordem, que deve ser somada às considerações sobre a distribuição de poder global e as potências, para um quadro mais profundo sobre o poder no plano internacional;

c) Estudos que contemplam dimensões da cooperação sul-sul ou da transterritorialidade norte-sul. Este fenômeno foi apontado por vários autores (HURRELL, 1995a; GRUGEL e HOUT, 1999; BOAS, MARCHAND e SHAW, 2005) ao discutirem dois pontos cruciais: a emergência de um novo tipo de regionalismo que envolve Estados ricos e pobres, desenvolvidos e em

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desenvolvimento (como nos casos da APEC e do NAFTA) e o fenômeno da crítica ao eurocentrismo, como fórmula prescritiva para o desenvolvimento institucional de diferentes processos de integração;

d) A relevância do estudo entre políticas domésticas e as políticas dos estados- membros em uma dada organização regional. A partir do trabalho de Moravcsik (1991) autores como Milner (1997), H. Wallace e W. Wallace (2000) desenvolveram trabalhos que levam em conta a demanda de elites políticas domésticas e a inserção de Estados em plano regional. As barganhas internacionais produzem resultados que retro-alimentam a política doméstica e oferecem trade-offs que estimulam grupos de interesse em manter projetos regionais;

e) A ampliação dos estudos para além das premissas racionalistas permitiu um aumento considerável de estudos na área, em especial quanto a questões de identidade e regionalidade (regioness)14

. Há estudos construtivistas na sub- área que valorizam as distinções entre as regiões do mundo, de forma a distinguir processos de socialização e de interação regional, em um quadro que reforça as características sociais, antes que as econômicas ou de segurança (ACHARYA, 2000). Parte dos trabalhos neste campo tem servido para retirar o aspecto eurocêntrico e teleológico dos estudos que buscam compreender o regionalismo no mundo de forma análoga ao regionalismo europeu. O aspecto normativo de vários trabalhos na sub-área e a noção de que o regionalismo europeu seria uma espécie de futuro das demais experiências de integração tem sofrido críticas severas (HURRELL, 2005); f) O intenso debate sobre regionalismo e globalização. O Novo Regionalismo

permite estabelecer conexões causais entre globalização e o fenômeno da integração regional. O que ocorre nas regiões pode ser explicado pelas mudanças ocorridas no plano internacional, com destaque para a análise das relações políticas nas e entre as regiões. Nexos de causalidade entre os fenômenos globais e regionais até então haviam sido pouco estudados, mas há recentes trabalhos que exploram tal relação (BACH, 2004; FARRELL, 2005; HURRELL, 2005; SERRANO, 2005). Aqui dois pontos se destacam: em

14 Regioness pode ser traduzido por regionalidade. Diz respeito a um processo em que uma área geográfica é transformada de objeto em sujeito, capaz de articular os interesses transnacionais de uma região emergente (HETTNE e SODERBAUM, 2002).

63 primeiro, uma recusa em entender o nível regional como uma espécie de sub- sistema autônomo, isolado das forças globais, como nos primeiros estudos sobre o regionalismo, especialmente em Haas ou em estudos sobre segurança regional, como em Walt (1987). A literatura sobre segurança regional também revela tal restrição entre níveis de análise, ao considerar a dimensão regional em grande distância da global (LAKE e MORGAN, 1997; BUZAN e WEAVER, 2003). Um segundo ponto seria focalizar nos trade-offs entre o regionalismo e globalização, especialmente pela abordagem que sugere que o regionalismo pode ser entendido como uma reação dos atores (estatais e não estatais) frente às mudanças recentes na economia política internacional, causadas pela globalização (BOAS, 2000; FARRELL, 2005).