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CAPÍTULO I – DESENVOLVIMENTO MORAL

1.3. A perspectiva de Kohlberg

Lawrence Kohlberg, psicólogo estadunidense, contemporâneo de Piaget, se dedicou a estudar o desenvolvimento moral, retomando e aperfeiçoando, conforme relata o próprio Kohlberg (1969), a idéia de justiça de Sócrates e Platão e as teorias cognitivo- desenvolvimentistas de Baldwin (1906, citado por Kohlberg, 1969), Dewey (1930, citado por Kohlberg, 1969), Mead (1934, citado por Kohlberg, 1969), Piaget (1948/1998) e Loenvinger (1966, citado por Kohlberg, 1969).

Kohlberg, em sua tese de doutorado, realizou estudos longitudinais nos Estados Unidos, utilizando-se de dilemas morais, nos quais solicitava aos participantes que apontassem soluções para os dilemas e justificassem suas respostas. De um modo geral, os dilemas expunham os entrevistados a situações limites, o que remetia a profundas dúvidas sobre a opção mais correta que se deveria tomar. A título de ilustração, segue-se o dilema do Prisioneiro Foragido, que será utilizado no segundo e terceiro estudos na presente tese de doutorado. É importante registrar que o dilema do Prisioneiro Foragido compõe o Moral

Judgment Interview (MJI), instrumento criado por Kohlberg (1964), e foi utilizado por Rest (1975) como um dos seis dilemas constituintes do instrumento denominado Defining Issues

Test (DIT).

Um homem foi condenado à prisão por dez anos. Depois de um ano, porém, ele fugiu da cadeia, mudou-se para uma região nova do país, e tomou o nome de Simões. Durante oito anos ele trabalhou duro, tanto que conseguiu economizar dinheiro suficiente para ter seu próprio negócio. Ele era muito gentil com seus fregueses, pagava altos salários a seus empregados e dava muito dos seus lucros pessoais para obras de caridade. Um certo dia, dona Cida, uma velha vizinha, reconheceu-o como o homem que tinha fugido da prisão, e a quem a polícia estava procurando. Dona Cida deveria entregar o Sr. Simões à Polícia? Por que? (tradução de Camino & Luna, 1989).

Kohlberg, após análise dos dados de suas pesquisas, desdobra as fases preconizadas por Piaget em três níveis de julgamento moral, denominados pré-convencional, convencional e pós-convencional. Esses níveis, por sua vez, foram subdivididos, por ele, em seis estágios, conforme será apresentado a seguir.

O nível pré-convencional, onde se situam os estágios 1 e 2, corresponde à perspectiva sócio-moral individual concreta. Para os integrantes deste nível, as regras são externas ao eu. Não existe ainda a percepção convencional das regras. Estariam neste nível moral a maioria das crianças até os nove anos de idade, alguns adolescentes e muitos adolescentes e adultos criminosos (Colby & Kohlberg, 1984).

O estágio 1, denominado por Colby e Kohlberg (1987) de moralidade heterônoma, é caracterizado pela obediência às regras e à autoridade – o certo é evitar infringir as regras,

obedecer por obedecer e evitar causar danos físicos a pessoas e propriedades. Isto é, o que define se algo está certo ou errado é a autoridade, não a cooperação entre iguais. É neste sentido que Kohlberg (1981), em uma edição anterior, define o estágio 1, como o estágio de orientação à obediência. Há, também, neste estágio, uma perspectiva egocêntrica, pois o sujeito não considera o interesse dos outros ou não reconhece que o ponto de vista deles difere do seu.

O estágio 2, por sua vez, denominado de moralidade individualista instrumental ou orientação relativista instrumental (Kohlberg, 1981), caracteriza-se por uma perspectiva individualista concreta, onde o certo é agir para satisfazer os interesses e necessidades próprias e deixar que os outros façam o mesmo, ou ainda, o certo é uma troca igual, uma transação, um acordo.

No nível convencional, que abarca os estágios 3 e 4, o justo e o injusto não se confundem mais com o que leva à recompensa ou ao castigo. Este nível se caracteriza pela conformidade às normas sociais e morais vigentes. Neste caso, o eu se identifica com as expectativas dos outros e há consciência e respeito quanto à convencionalidade das regras, já internalizadas, vistas como necessárias e decorrentes das relações de cooperação. Assim, o indivíduo que está no nível de moralidade convencional é aquele que procura viver conforme as regras estabelecidas, com o que é socialmente aceito e compartilhado pela maioria, respeitando a ordem estabelecida. Portanto, há uma tendência a agir de modo a ser bem visto aos olhos dos outros. É o nível da maioria dos adolescentes e adultos da sociedade norte- americana (Colby & Kohlberg, 1984) e de outras sociedades, inclusive a brasileira (Biaggio, 1976).

O estágio 3 do nível convencional corresponde à moralidade normativa interpessoal, para a qual as expectativas familiares ou do grupo é que contam. Existe, neste caso, uma preocupação em desempenhar o papel de uma pessoa boa (amável), preocupar-se com os

outros e seus sentimentos, ser leal e manter a confiança dos parceiros, estar motivado a seguir as regras e expectativas. Nesse estágio, o indivíduo tem a necessidade de ser bom e correto aos seus olhos e aos olhos dos outros, é o estágio da regra de ouro: aja com os outros como gostaria que eles agissem com você.

O estágio 4 é o da moralidade do sistema social, que já foi denominado por Kohlberg (1981) de orientação da manutenção social. O sujeito busca fazer seu dever na sociedade, apoiar a ordem social, manter o bem-estar da sociedade ou do grupo; ademais, valoriza o cumprimento dos deveres com os quais concordou e apóia as leis.

Finalmente, no nível pós-convencional, que inclui os estágios 5 e 6, o indivíduo diferencia o eu das regras e expectativas dos outros e define seus valores em função dos princípios que internalizou. Este nível é alcançado, conforme cita Colby e Kohlberg (1984), por uma minoria dos adultos e geralmente só depois dos 20 ou 25 anos de idade.

O estágio 5 corresponde à moralidade dos direitos humanos e do bem-estar social, antes denominada orientação do contrato social (Kohlberg, 1981). Neste estágio, o direito, os valores e os contratos sociais básicos de uma sociedade são sustentados, mesmo quando em conflito com regras e leis concretas de um grupo. Há, neste caso, o reconhecimento de que os valores variam de cultura para cultura, mas que existem valores e direitos não relativos como os direitos à vida e à liberdade que devem ser defendidos sempre. Nesta ótica, pode-se dizer que o sujeito valoriza o ponto de vista da lei, mas sempre conta com a possibilidade de mudar a lei em função de considerações racionais ou de utilidade social. Quando não há lei, a obrigação é definida pela livre concordância ou pelo contrato entre as partes.

O estágio 6 corresponde à moralidade dos princípios éticos gerais, universalizáveis,

reversíveis e prescritivos, antes denominada orientação do princípio ético universal (Kohlberg, 1981). Sua perspectiva é o princípio ético universal de justiça que engloba os seguintes conceitos: dignidade inviolável da humanidade, liberdade, solidariedade e

igualdade. Quanto as Leis, elas são válidas se seguirem estes princípios; se os violarem, não se deve obedecê-las, pois o princípio é superior à lei; os princípios têm validade independentemente da autoridade de grupos ou pessoas que os sustentem, bem como da identificação do sujeito com tais pessoas e grupos. Neste caso, o certo é definido por uma decisão de consciência (autônoma, racional, lógica e coerente) e o que conta são princípios éticos abstratos, não regras morais concretas.

É importante registrar que Kohlberg, Levine e Hewer (1983) questionaram a existência do estágio 6, quando eles verificaram a ausência de evidências empíricas que comprovassem sua existência; por outro lado, eles justificaram a necessidade de continuar a postulá-lo enquanto construto teórico por percebê-lo como um estágio final.

Os estágios morais preconizados por Kohlberg estão resumidos no Quadro 1.

Quadro 1. Estágios de desenvolvimento moral de Kohlberg NÍVEL I: PRÉ-CONVENCIONAL

Estágio 1

Moral heterônoma Evitar quebrar normas com base na punição e na obediência e evitar danos físicos às pessoas e à propriedade. Estágio 2

Propósito instrumental e troca

Seguir normas apenas quando for de interesse imediato de alguém; agir para satisfazer seus próprios interesses e necessidades e deixar que os outros façam o mesmo.

NÍVEL II: CONVENCIONAL Estágio 3

Expectativas interpessoais mútuas

Pôr em prática o que é esperado pelas pessoas próximas a você ou o que as pessoas geralmente esperam das outras em seus papéis de filho, irmão, amigo etc. “Ser bom” significa manter relações mútuas, tais como confiança, lealdade, respeito e gratidão.

Estágio 4 Ordem social

Cumprir os deveres reais com os quais você pactuou. As leis devem ser mantidas, exceto em casos extremos onde elas entrem em conflito com outros deveres sociais estabelecidos.

NIVEL III: PÓS-CONVENCIONAL Estágio 5

Acordo social e consenso

Manter as normas relativas aos grupos, quando provenientes de um contrato social. Valores não-relativos e corretos, como a vida e a liberdade, entretanto, deveriam ser mantidos em qualquer sociedade indiferentemente da opinião da maioria.

Estágio 6

Princípios éticos universais

Seguir princípios éticos auto-escolhidos. Quando as leis violam estes princípios, a pessoa deste estágio age de acordo com o princípio. Os princípios são universais de justiça: a igualdade dos direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos como pessoas individuais.

Sobre os estágios morais, Kohlberg ainda afirma que a seqüência dos mesmos aparece em todas as culturas, o que tem sido confirmado em pesquisas realizadas por Colby e Kohlberg (1984) e em uma revisão, realizada por Snarey (1985), de mais de 40 pesquisas referentes a 27 culturas, que dão evidência para a noção de que a seqüência de estágios se mantém nas várias culturas, com algumas nuances, atribuídas a fatores culturais, mas que não ameaçam a idéia de universalidade defendida por Kohlberg.

Além da idéia do universalismo dos estágios, Kohlberg (1969), com base nos pressupostos de Piaget (1960, citado por Kohlberg, 1969) acerca do desenvolvimento cognitivo e em suas pesquisas realizadas entre 1958 e 1978, sustenta as seguintes afirmações acerca dos estágios:

(1) o desenvolvimento cognitivo (pensamento lógico) é condição necessária, ainda que não suficiente, para o desenvolvimento moral;

(2) o desenvolvimento envolve transformações das estruturas cognitivas;

(3) as transformações das estruturas são resultados de interações entre o sujeito e o meio ambiente;

(4) as estruturas desenvolvem-se mediante um processo de equilibração; (5) a justiça é a essência do desenvolvimento moral;

(6) a seqüência dos estágios morais é hierárquica e invariante;

(7) pode-se parar em qualquer estágio moral, em qualquer idade, porém o desenvolvimento continua, prossegue a partir do estágio que parou, sem pular ou inverter a ordem dos seguintes;

(8) ao atingir o nível mais avançado de organização, o indivíduo prefere agir com base neste nível, o que não significa que o pensamento do estágio anterior desapareceu; (9) as condições sociais, culturais e religiosas não interferem na natureza seqüencial dos

Note-se que as considerações de Kohlberg pontuadas acima, mais precisamente a idéia de universalidade e de seqüencialidade dos estágios de desenvolvimento moral, ao mesmo tempo em que são um dos pontos mais fundamentais da teoria de Kohlberg, são também as idéias mais criticadas na literatura. No próximo tópico, este debate será retomado com a apresentação de outras perspectivas acerca do desenvolvimento moral.