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A pesquisa teórica, cênica e dramatúrgica

4.2 O processo de criação de um novo espetáculo

4.2.2 A pesquisa teórica, cênica e dramatúrgica

Logo no primeiro dia, foi solicitado aos participantes que reunissem fotos, músicas, cartas, diários, notícias e outros materiais relativos à década de 80. Vários temas seriam escolhidos e as pessoas, encarregadas de expor a pesquisa realizada – sob a forma de seminários ou de workshops.

Enquanto a pesquisa histórica ia sendo feita, direção e dramaturgia propunham temas a serem explorados pelos atores, sempre vinculados, de alguma maneira, ao período. No primeiro ensaio Solange propôs que, em duplas por ela designadas, fossem desenvolvidas cenas a partir de duas músicas dos anos oitenta: Revanche (Lobão/Bernardo Vilhena) e Mal nenhum (Lobão/Cazuza). Mesmo sendo improvisadas, as opções deveriam ser conscientes por parte dos atores, para que pudessem ser retomadas, repetidas, aprofundadas, caso necessário.

Depois das sessões de improvisação eram feitas avaliações do material criado, sendo já analisado seu possível aproveitamento no espetáculo – ainda que não de forma taxativa. No caso desse ensaio específico, o Diário de Dramaturgia registra:

Das cenas apresentadas, pudemos levantar alguns pontos interessantes, alguns especificamente referentes aos anos 80:

• a falta de comunicação, a dificuldade de relacionamento – entre familiares, entre amigos, entre casais, entre pessoas em geral – seja por motivos de conflitos de idade, problemas de saúde (aids), diferença social, cultural, etc

• o advento da aids e a perplexidade diante dela, seja por parte do paciente seja dos familiares, amigos, sociedade (...)

• (“se der eu volto...”) um amigo visita o outro no hospital – aids – não há palavras, nada para ser dito, não há

como receber conforto, é tudo grave, desconhecido, vexatório, triste

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• (“eu não vejo nada lá...”) o medo, a recusa em enxergar, a covardia, por parte de um. A ousadia, a necessidade de romper os limites do tédio, do cotidiano, da mesmice, do já conhecido, por parte do outro. (...)

• gravidez indesejada: a reação da família, que muitas vezes expulsava a filha de casa e, lógico, as famílias que

aceitavam, arcando com as conseqüências de ficarem faladas. A reação das amigas, como um fato ainda pouco comentado.

• O “espírito da época”: deve ser privilegiado, e não somente o fato, a informação, o quadro, a revista. É esse espírito que vai nortear o trabalho, por isso deve-se estar atento para o que surge no processo e verificar o que está abaixo da linha superficial do fato, ou, o que gera o fato. Falar sobre tudo sem ter de falar sobre tudo. (...)

Os itens em itálico, grifados para o presente estudo, referem-se a temas, propostas ou mesmo situações que se tornaram parte do espetáculo. Há um grande número de elementos que surgiram logo nos primeiros ensaios e foram adotados como pontuais ou mesmo estruturadores da peça, sendo constantemente retomados e desenvolvidos. Algumas personagens que iam surgindo eram reaproveitadas em outras situações; cenas esboçadas eram desenvolvidas em outra oportunidade e com novos estímulos – sempre pelos atores, já que ainda não havia uma preocupação com elaboração do texto dramatúrgico. Este começaria a surgir depois de mais algum tempo de observação dos ensaios.

Em 9 de fevereiro, foi perguntado a cada componente do grupo o que estava fazendo em determinado ano da década de 80, com o intuito de destacar o subjetivo/pessoal para que fosse contraposto ao social. Dentre os pontos abordados destacaram-se o aluno repetente, a mãe constantemente chamada na escola, o professor que vira ídolo e referência para o jovem, o professor odiado, a explosão da expressão corporal e dos laboratórios teatrais, itens de consumo do período: calça Gladson, jeans Staroup, bolsa Tiger, agasalho Adidas, tênis Rainha Vôlei, programas de televisão: Porta da Esperança, Bozo, Boa noite, Cinderela, Viva a Noite, as músicas do grupo Menudo.

Outras lembranças foram aproveitadas posteriormente em cenas ou no próprio espetáculo: o namoro em casa, a paixão pelo cafajeste, o aborto, o jovem tímido que tem dificuldade de se enturmar, as reuniões e festas de final de semana, a ansiedade pela sexta feira, os bailinhos, um acidente que rouba a vida de algum amigo. O aproveitamento se dava de forma espontânea pelos atores em suas improvisações ou por meio de propostas da direção ou da dramaturgia.

No ensaio de 14 de fevereiro, por exemplo, foi pedido que os atores fizessem uma pesquisa (retrospectiva) sobre determinado ano, que escolhessem uma música do período e construíssem uma cena que contivesse o pessoal, o social e o musical. Dois dias depois, formaram-se dois grupos e a cada um foi dado um tema baseado num fato histórico da década: greve no ABC e Diretas Já. Para dar suporte ao tema foi dado um pequeno texto didático. Os títulos deveriam ser: “Greve no ABC e eu só tenho 16 anos” e “Enquanto acontecia o comício das Diretas Já...”. Poderiam aproveitar ou não

personagens já elaboradas. Foi pedido que definissem onde, quem e o quê, para facilitar o trabalho, lançando mão do recurso do jogo teatral.

Em 7 de março, as cenas foram apresentadas e, depois de avaliadas, foram feitas algumas reflexões. O grupo concluiu que poderia ousar também na forma de apresentação - por vezes a forma traz consigo uma semente que, no que se refere à encenação, pode ser tão valiosa quanto um conteúdo bem desenvolvido. É bastante comum, quando se pensa em processo colaborativo, imaginar que apenas a dramaturgia é que está sendo elaborada ao longo dos ensaios. Trata-se de um resquício dos moldes tradicionais de montagem, em que o texto vem primeiro e, só depois, à encenação cabe dar-lhe forma cênica. É preciso lembrar sempre que texto, cena, interpretação, cenário, luz e tudo o mais podem brotar desde o primeiro ensaio. Portanto, em Geração 80, recomendou-se também uma pesquisa formal: “qual a melhor solução cênica para determinado conteúdo?”.

Tal recomendação foi feita em várias ocasiões, uma delas na elaboração da cena denominada “Meu diário”. O texto foi entregue e a diretora solicitou que os atores extrapolassem a conversa com o caderno (conteúdo verbal) e procurassem resolver cenicamente esse “diálogo”. Ao ator não caberia, então, apenas a criação dramatúrgica – estabelecimento de personagens, conflitos, começo-meio-fim da cena, ou foco – mas também a criação cênica. Quando se avalia que às vezes a forma traz consigo uma semente mais importante que o conteúdo, no processo colaborativo se reconhece que ao ator é permitida a pesquisa estética que, em geral, fica nas mãos do diretor. Em Geração 80, muitas das soluções cênicas para as propostas da dramaturga surgiram da improvisação dos atores.

Dia-a-dia as improvisações traziam elementos que viriam a compor o resultado final. Em 21 de fevereiro, por exemplo, os atores foram divididos em equipes e receberam uma proposta de jogo. Eles deveriam criar um onde da década de 80, definir quem freqüentava esse onde e rechear a ação com fatos, produtos, vocabulário, filmes, músicas e outros elementos característicos da década. Em seguida foi dado um o que para cada equipe desenvolver a cena.

Uma das cenas apresentadas reunia, num boteco (onde), o dono do estabelecimento, um jogador de futebol, uma doceira e um pastor (quem) em torno do último capítulo da novela Vale tudo, de Gilberto Braga – o o que determinado pela coordenação. A abordagem, que fugiu da classe média e da juventude, trabalhando um lugar mais periférico e com pessoas mais velhas, acabou sendo retomada, num período adiantado dos ensaios, para resolver um reencontro entre duas personagens: Carol e Marcão - que não faziam parte da improvisação original. Marcão viria a ser o dono do bar, e em torno dele viriam a circular a esposa, um grafiteiro, uma cabrocha e um poeta decadente – todos interessados em saber quem havia matado Odete Roitman 105.

No fim de fevereiro, as pesquisas históricas que haviam sido designadas, foram sendo apresentadas ao grupo. Cada ator ficou responsável por um ano específico e fez também um levantamento por escrito dos principais fatos e aspectos culturais. Este material servia como referência para o trabalho de atores, diretora e dramaturga, e como fonte permanente de consulta. Entre outros assuntos, constavam naquele levantamento os atentados ocorridos no governo Figueiredo, o movimento sindical, os comícios pelas eleições diretas para Presidente, os debates Lula X Collor, a inflação crescente, o congelamento de preços; filmes, shows e espetáculos em cartaz; as amizades coloridas, as “produções independentes” (mulheres que resolviam ter filhos sozinhas, sem um vínculo estável com o pai da criança), as drogas e a aids.