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3.4 Processo colaborativo em Um trem chamado desejo

3.4.2 A questão da autoria

Viu-se que uma das diferenças fundamentais entre a criação coletiva e o processo colaborativo é a especificidade das funções, mesmo que elas interfiram mutuamente. Na medida em que um colaborador responde artisticamente pela sua área, isso significa que a “assinatura” da função será sua. Atores irão colaborar com a cenografia – via workshop, via pesquisa, críticas, sugestões e soluções – mas sem um “compromisso” com a área. Seu compromisso efetivo é com a interpretação, é por ela que ele vai responder, embora interfira também em outros campos. Como foi dito, ao cenógrafo cabe ver e ouvir a equipe e, com os seus conhecimentos, trazer sínteses e soluções, criando a cenografia e assinando como responsável.

Da mesma forma a dramaturgia, pois dramaturgo não é quem escreve o texto teatral somente. Segundo Abreu, dramaturgo

é quem organiza as ações, coloca em ação os personagens em relação ao enredo, em relação ao resultado que isso vai ter com o público. Todo esse material que foi dado pelo diretor, pelos atores, pelo cenógrafo e por todo mundo que participou desse processo colaborativo, todas essas criações o dramaturgo vai colocar no seu cadinho e extrair dali a quintessência, a melhor geometria possível para o diretor, para os atores e técnicos trabalharem e para ele continuar o próprio trabalho também.90

Abreu avalia que o fato de processar também criações alheias não diminui a importância do dramaturgo, ao contrário, pois o material criativo é muito maior. Criar, sugerir, adequar, abrir mão, encontrar outros caminhos quando novos elementos surgem são algumas das tarefas diárias da dramaturgia em processo colaborativo. E, quando o dramaturgo não souber como resolver uma questão, nada impede que o diretor ou o ator a encontre, pois o que importa é o trabalho como um todo e não a defesa de postos. Isso, porém, não faz do diretor e do ator, dramaturgos. 91 Abreu

conclui:

O processo colaborativo é um processo onde dramaturgo só é dramaturgo no final, quando ele conseguiu fazer uma boa relação, porque tudo que vem é muito novo, o que vem é muito diferente do que ele já viu. Se ele está criando em casa, ele tem o tempo de estabelecer como ele quer o enredo, o que ele quer atingir no público - ele faz tudo isso na cabeça. No processo colaborativo ele projeta tudo isso também, mas, nessa projeção dele, entram uma série de interferências que ele não pode descartar como em casa, sozinho, ele descarta. Ele vai ter de se debruçar sobre a criação alheia e integrá-la ao próprio trabalho. 92

No Trem, o dramaturgo trabalhou, na etapa final, com a dramaturgia da cena. Muito desse trabalho interferiu na encenação. Os atores apresentavam diariamente soluções cênicas – muitos elementos encontrados no espetáculo estavam presentes no workshop inicial. Isso, porém, não fez de Abreu ou do elenco, diretores. Ou seja, todos os envolvidos, de uma certa forma, têm sua “autoria” contaminada pelas colaborações alheias. Então, que critérios determinam a assinatura do trabalho pelo seu responsável?

Ao se refletir sobre a questão da autoria, é importante identificar pelo menos dois dos componentes envolvidos. Um de ordem ética e outro de ordem artística. Fique claro que, no processo colaborativo, o fato de um artista assinar como responsável por determinada área, não implica em que ele seja considerado autor único. Assinar como dramaturgo um trabalho colaborativo supõe que toda a equipe criou e sugeriu, em diversos níveis e intensidades, e que houve um encarregado de refletir mais detidamente sobre a dramaturgia e desenvolvê-la, de acordo com os seus conhecimentos específicos, a

90 Entrevista concedida à autora em 9 de janeiro de 2002.

91 Há casos, porém, em que existe de fato a co-autoria dramatúrgica. Isso ocorre, por exemplo, em montagens curriculares

onde o ator, com devido preparo dramatúrgico, se incumbe de desenvolver cenas, mas sob coordenação. Em se tratando de processo colaborativo com especificação de funções, colaboração não é sinônimo de co-autoria.

partir das idéias do conjunto. Esse componente artístico é importante na medida em que o outro, seja ator, seja diretor ou iluminador, pode se sentir à vontade para opinar em relação às outras áreas, justamente por haver um “especialista” em cada função.

Claro está, e isso já foi comentado diversas vezes, que as opiniões e sugestões no trabalho alheio devem vir embasadas e justificadas, sempre. O que existe é uma abertura para que o ator, por exemplo, fale da dramaturgia sob o ponto de vista do seu próprio trabalho: como o texto está sendo percebido, emitido, apropriado, transformado por ele? A dramaturgia é comentada, via de regra, sob o ponto de vista da interpretação. E assim ocorre com todas as outras relações. Isso significa que não existiram vinte e tantos dramaturgos no Trem, opinando sobre dramaturgia. Existiu, sim, um dramaturgo, Luís Alberto de Abreu, que, ouvindo atores, diretor, cenógrafo, diretor musical, e outros criadores, sintetizou, discutiu, estruturou, elaborou e, conseqüentemente, assinou a dramaturgia.

Ocorre, porém, e aí entra o componente ético, que, ao falar sobre Um trem..., é esperado que o dramaturgo comente que a criação do texto se deu em processo colaborativo. 93

Se um outro grupo se interessar em remontar Um trem chamado desejo a partir do texto, Abreu é quem primeiro deverá ser consultado. Perante os órgãos de direitos autorais basta a autorização do dramaturgo, porque o registro do texto é feito em seu nome. Mas se trata de um texto criado para uma companhia específica, em processo colaborativo e, como ainda não há uma legislação – a prática e os estudos a respeito estão apenas começando – o que se espera é uma atitude de ordem ética, a consulta ao grupo.

3.4.3 A configuração do texto e o resultado final

A versão final escrita de Um trem... está dividida em duas partes 94. A primeira tem oito cenas e

a intervenção de oito números musicais que, ora comentam a situação vivida pelas personagens, ora fazem parte do show apresentado pela Companhia. O primeiro momento, que constitui dois terços do espetáculo, utiliza-se, em sua maior parte, de diálogos dramáticos e se concentra na apresentação dos artistas, seus dramas, o fracasso junto ao público, as tentativas de salvar o trabalho e, ao final, na esperança de sobrevivência trazida pelo cinema.

93 É importante que se reflita, cada vez mais, sobre os processos criativos tanto quanto se reflete sobre as obras. A partir do

momento em que o espectador sabe que determinado espetáculo foi criado em processo colaborativo, e sabe em que implica esse processo, ele saberá discernir as diversas autorias finais daquelas que ocorreram durante o período de elaboração do trabalho. Esse esclarecimento se dá a partir da divulgação pela mídia, dos trabalhos acadêmicos, da disseminação das práticas colaborativas na sala de aula e nos grupos em geral.

A segunda parte, com quatro cenas, constitui uma virada. Trata-se da apresentação do filme e da frustração do grupo, seguida pela interrupção da exibição por causa de uma pane no projetor, e pela dramatização da história pelos atores. Nesse bloco lança-se mão da narrativa direta ao público - que se julga ser o publico que foi assistir ao filme - além dos diálogos dramáticos entre as personagens. Vale dizer que, nesse momento, ocorrem diálogos tanto entre as personagens do filme, quanto entre as da Companhia, constituindo-se, assim, dois níveis de relações interpessoais, às vezes ocorrendo ao mesmo tempo, imiscuindo-se.

Ao representar os conflitos vividos pelas personagens da tela, o Alcantil representa a si mesmo e seus casos de adultério, frustração, traição. Isso acaba funcionando como uma catarse para o grupo que, liberado por meio da metáfora, pode voltar aos trilhos do teatro, provando ser essa uma arte insuperável, pois conta com a presença viva do ator. A antiga companhia vira Companhia de Cine- Teatro Alcantil das Alterosas e nova intervenção musical marca o final do espetáculo, na homenagem à arte do ator.

O espetáculo foi elaborado para um espaço à italiana. O palco construído dentro do palco possibilita dois níveis de leitura – o primeiro, da história que está sendo contada (da Companhia e suas agruras) e o segundo, da história que os atores contam dentro da história (o espetáculo fracassado, o enredo do filme). Sempre que há narrativa direta à platéia, ela ocorre no segundo nível. Conseqüentemente, isso faz com que o público também represente um papel: o do público do século passado, que foi ao cinema e não pôde ver o final do filme. Talvez isso passe despercebido para a maioria dos espectadores, porém se constitui num requinte que, ao ser identificado, proporciona uma modificação na qualidade da recepção.

Os jogos de luz por trás do cenário, revelando os bastidores da montagem através de transparências, destacam o que não pode ser comentado publicamente pelas personagens: seus pensamentos, sonhos e perversidades. Do mesmo modo, quando o cenário é virado e o público assiste ao espetáculo que a companhia representa, é como se estivesse acompanhando tudo das coxias. Nesse momento, além de fruir o show, pode fruir também do que acontece por trás das cortinas, nos bastidores – a agitação e a adrenalina, o filho que chora e a mãe que o amamenta, as picuinhas, as pequenas sabotagens, a melancolia, o assombro ao constatar que o público foi embora. Sendo assim, se Um trem chamado desejo é um texto que pretende fazer uma homenagem ao teatro e à arte do ator, o espetáculo também faz isso a seu modo, com todos os recursos de que dispõe.

A imprensa escrita, de um modo geral, acolheu o trabalho de forma positiva. À parte as análises críticas, interessam aqui os comentários a respeito da dramaturgia escrita e, especialmente, do processo em que foi elaborada.

3.4.4 A imprensa e o processo colaborativo na dramaturgia de Um trem