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2.2 O processo colaborativo e o dramaturgo junto da cena algumas possibilidades de

2.2.7 A dramaturgia da cena

Depois de muito trabalho, espera-se que haja um texto praticamente pronto, atuações já estudadas, indicações de luz, cenário, trilha sonora, definições de encenação, e os ensaios abarcam a montagem quase do começo ao fim. A dramaturgia da cena consiste na lapidação do espetáculo como um todo e tem por base, agora, o conceito de texto cênico e não mais o de um texto escrito pelo dramaturgo.

A idéia de texto cênico decorre da evolução do conceito de encenação ao longo da história. Se durante um período ela foi definida como a eficiente tradução cênica de um texto previamente escrito, no início do século 20 essa definição começou a mudar, paralelamente à deposição do texto e do autor como soberanos da cena. Edward Gordon Craig, Vsévolod Meyerhold e Antonin Artaud foram alguns dos primeiros encenadores que ousaram propor a equivalência entre o texto escrito e os demais elementos constituintes do espetáculo. Depois deles, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski, Ariane Mnouchkine, Peter Brook, Bob Wilson e muitos outros vêm, cada um a seu modo, propondo novas articulações e novos paradigmas, no decorrer do tempo.47

Sílvia Fernandes, no último capítulo de seu livro Memória e invenção: Gerald Thomas em cena, aborda as transformações por que passou o conceito de encenação no teatro contemporâneo. Ao comentar as idéias de André Veinstein, um dos mais importantes estudiosos do teatro, a autora registra a encenação “como o conjunto de materiais que compõem uma escritura no palco e também como a função que organiza esses materiais”. Desse modo, ela é “ao mesmo tempo, o ato de encenar e o resultado desse ato”, verbo e substantivo (Fernandes, 1996, p. 273).

Enquanto resultado, a encenação conjuga uma série de elementos, advindos de diversas fontes produtoras de sentido, que passa a formar um todo comunicável, ou seja, um texto legível na totalidade do espetáculo. A partir dessa linha de pensamento, Sílvia Fernandes percorre alguns teóricos contemporâneos que refletiram sobre a questão do texto cênico, entre eles Patrice Pavis e Anne Ubersfeld.

Inicialmente, Pavis faz uma distinção entre texto dramático, representação e encenação. O primeiro deles é “o texto lingüístico lido ou ouvido durante as representações” e só faz sentido enquanto registro escrito que “preexiste à encenação”. A representação é “tudo o que é visível e audível em cena, mas ainda não foi recebido e decodificado pelo espectador”. É um objeto empírico pelo fato de ainda não ter sido exibido e, portanto, não ter completado o processo de comunicação. Esse processo terá sua conclusão quando da encenação. Para Pavis, ela é um “sistema estrutural que só existe uma vez reconstituído pelo espectador, que faz sua leitura com base nos sistemas significantes produzidos em cena.” Prevendo a participação do público como leitor da cena, o teórico francês encara o espetáculo como um texto redigido a partir de vários regimes de enunciação (Fernandes, 1996, p. 273-274).

47 A esse respeito, consultar A linguagem da encenação teatral 1880-1980. Nela, Jean-Jaques Roubine traça o panorama de um

século da encenação européia, tratando do nascimento do teatro moderno, dos períodos de reinado do texto e do dramaturgo, bem como de sua deposição. Trata também das transformações do espaço cênico, dos elementos constituintes do espetáculo – cenário, figurino, luz, música – e do trabalho do ator.

Anne Ubersfeld prefere o termo “representação como texto” e o define como a combinação de diversos textos – luz, cenário, figurino, objetos, voz - “uma pluralidade de enunciados articulados que não funcionam a partir da fusão de códigos, mas de sua convivência paralela ou dialética, concorrente ou divergente.” (Idem, p. 274).

Perto do final de uma montagem em processo colaborativo, quando da conjunção de todos os elementos constituintes do espetáculo, aproxima-se uma “redação” final do texto cênico. Essa redação pede uma nova dramaturgia, a dramaturgia da cena. Ela é, pois, o processo pelo qual os criadores, olhando o espetáculo como um todo, fazem as alterações necessárias rumo à finalização, à articulação final do espetáculo. Sendo assim, o dramaturgo deixa de olhar somente o texto que escreveu e passa a analisá-lo em sua conjunção com a luz, o cenário, o gesto, a voz, o ritmo, as marcações em geral. Na verdade essa prática já ocorreu nas etapas anteriores do processo, na medida em que o texto escrito ia sendo experimentado na concretude da cena. Naquela espécie de micro-espetáculo, o dramaturgo e os demais criadores podiam perceber o resultado da integração texto e cena, e alterar um e outro conforme a necessidade. O que ocorre nessa etapa final é que ao texto escrito, à cena e à interpretação dos atores vêm se integrar outros significantes, ampliando as possibilidades de leitura, causando atritos, redundâncias e um sem número de efeitos. Então os micro-espetáculos, ao se juntarem, formam um todo que supera a soma das partes. Constitui-se quase numa outra obra, com características próprias, que precisa ser comentada, analisada e interpretada por si mesma.

Quando observa o texto escrito na conjunção com os demais componentes do espetáculo, o dramaturgo pode notar, por exemplo, que determinado gesto ou marcação “dizem” mais sobre a situação do que palavras, e decidir por cortá-las. Ou o diretor pode avaliar que a transição entre uma cena e outra está pedindo uma narrativa, um diálogo, um comentário a ser dito pelo ator. As diferentes áreas mais uma vez interferem mutuamente, com vistas ao espetáculo como um todo, aparando arestas, cobrindo falhas - ajustando o encaixe entre as peças do quebra-cabeça e revelando, finalmente, uma imagem.

Um outro participante do processo que pode ajudar nessa dramaturgia da cena é o público, ele vem completar a obra, merecendo também o status de autor. No processo colaborativo, a participação da platéia como colaboradora pode fechar o círculo criativo.