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O olhar do dramaturgo sobre a cena

2.2 O processo colaborativo e o dramaturgo junto da cena algumas possibilidades de

2.2.4 O olhar do dramaturgo sobre a cena

O espetáculo como um todo vai sendo elaborado paulatinamente a partir das cenas apresentadas pelos atores. Seu desenvolvimento vai depender da avaliação dessas cenas, com o objetivo de reelaborá-las - processo que vai sendo repetido até a forma que possa ser considerada final, por mais que essa finalização seja relativa. O mesmo verifica-se em relação à dramaturgia. Pergunta-se, então: o que olhar numa proposta cênica? E como olhar? A partir de que parâmetros? Como analisar um material em processo? Como identificar, em elementos ainda primários, a potencialidade para se tornar cena?

Se essa obra vai sendo construída a partir da análise e reelaboração do material levantado em sala de ensaio, pode-se pensar que o olhar de cada um dos participantes se conduz de maneira semelhante ao olhar de um crítico, podendo dispor dos mesmos recursos utilizados atualmente por ele. Fernando Bonassi, por exemplo, estando ausente do período inicial dos trabalhos de Apocalipse

1,11, tomou conhecimento do que havia sido produzido por meio das gravações de ensaios.

Mesmo quando não se dispõem de gravações, ao avaliar uma cena, é possível interrompê-la, repeti-la, fazê-la avançar ou retroceder, paralisar ou pular trechos, tirar-lhe o som, editar se necessário for para uma maior compreensão do todo ou do fragmento 43.

No livro Cómo analizar un film, Francesco Casetti e Federico di Chio dão pistas que podem muito bem ser utilizadas na avaliação de cenas no processo colaborativo. Os autores afirmam que toda atividade crítica se estrutura com base na tríade comentário – análise – interpretação. As três

etapas ocorrem de maneira simultânea e colaboram com a avaliação propriamente dita. Porém, esse olhar crítico dos componentes do grupo, em vez de resultar num comentário analítico escrito (crítica ou estudo) vai resultar numa proposta para o avanço do processo.

43 Todos esses procedimentos dos quais um crítico pode lançar mão eram, até pouco tempo, privilégio do cinema.

Atualmente o critico teatral pode também contar com gravações em vídeo ou em técnicas digitais que facilitam e tornam ainda mais acurados seus comentários e pesquisas. Sobre instrumentos de análise de espetáculos, recomenda-se a leitura da obra A análise dos espetáculos, de Patrice Pavis.

Interessa aqui uma abordagem do ponto de vista dramatúrgico. Como deve ser, então, o olhar do dramaturgo sobre a cena? Em que medida comentário, análise e interpretação de uma proposta podem ocorrer e serem úteis para a elaboração do texto?

Começando pelo item comentário, Casetti e De Chio observam que ele se refere a informações gerais a respeito da obra: o autor e sua relação com outros autores; noções que estão à volta ou contextualizam o objeto, considerações históricas e culturais, mobilização de saberes externos à obra e que a contextualizam no espaço e no tempo. São, portanto, pressupostos anteriores ao contato com o objeto e que o situam sob diversos ângulos para o crítico (Casetti e De Chio, 1991).

No caso do processo colaborativo, quando o dramaturgo assiste a uma cena elaborada e apresentada pelos atores, ele se torna um crítico do processo. Sendo assim, deve levar em conta uma série de informações externas à cena: o que ele conhece da linguagem, dos métodos e técnicas, da equipe, do estágio em que se encontra o trabalho. Seu conhecimento das fontes pesquisadas, das referências ou encaminhamentos que foram dados para que se desenvolvesse o trabalho, o que já foi feito até aquele momento em termos de propostas apresentadas, a cena dentro do contexto maior do tema e da peça como um todo – principalmente quando o processo já está adiantado. Dessa forma, cada cena é situada sob diversos ângulos e dificilmente criticada per se.

Ao situar a cena, o dramaturgo se remete ao que já foi feito, ao que precisa ser feito em termos de progresso da cena e do conjunto, podendo, então, identificar avanços, estagnações, necessidades de mudança. Nesse momento ele pode decidir sobre o encaminhamento em sua área: fixação de soluções, cortes, desenvolvimentos, trocas, aglutinações, aprofundamento da pesquisa, aproveitamento de materiais descartados anteriormente, e um sem número de propostas.

Convém assinalar que o olhar do dramaturgo pode levá-lo a selecionar trechos, não se baseando, muitas vezes, em critérios funcionais ou técnicos. Uma boa parte das escolhas leva em conta a intuição, o prazer e uma percepção de adequação de determinado trecho apresentado ao âmbito geral da peça – fato que pode não ter uma explicação lógica no momento, mas que, futuramente, no conjunto, vai se mostrar eficiente.

Se o comentário trabalha no entorno do objeto e suas circunstâncias, a análise, por sua vez, vai representar um mergulho no objeto, em suas relações internas. Toda obra possui uma determinada unidade, composta pelo conjunto de elementos nela presentes. É isso que deve ser analisado. A unidade, porém, é complexa e pode ser necessário fragmentá-la, segmentá-la, dividi-la em partes para que a análise ocorra da melhor maneira. O processo de análise visa, então, a identificar quais são essas partes e como elas se relacionam, identificando uma espécie de sintaxe interna da obra. O analista segmenta para, depois, obter uma visão mais abrangente do objeto (Casetti e de Chio, 1991).

No processo colaborativo, como ainda não há um todo a ser analisado, e sim uma progressão de cenas que vão sendo elaboradas ao longo dos ensaios, a análise é feita de maneira inversa: tem-se somente alguns segmentos, a princípio independentes. Praticamente às cegas, vai-se intuindo um encaixe das cenas apresentadas na tentativa de formar um todo coerente – é como um quebra-cabeça do qual se vai recebendo as peças aos poucos e não se tem a tampa da caixa para indicar a imagem final. Essa imagem vai sendo elaborada aos poucos, sempre com a certeza de que haveria um sem número de possibilidades de outras configurações/imagens finais. E essa coerência, essa unidade pretendida, normalmente tem como norteadora a proposta inicial do grupo - geralmente o tema eleito pela equipe, sempre amparado pelas pesquisas e discussões. É importante que se tenha em mente esse objetivo geral que possa guiar a análise - tema, proposta formal – um fator que fica de fundo na hora do trabalho analítico.

A proposta de cena, ela sim, pode ser decomposta pelo dramaturgo, analisada em suas diferentes partes, recomposta e compreendida num processo de fragmentação do que já é um fragmento. A cena é analisada como um todo, num primeiro momento, e depois pode ser decomposta e analisada em vários aspectos entre os quais ação, fábula, unidade, personagens, situação, conflito, núcleo dramático, pertinência quanto ao tema, relevância no contexto geral.

Patrice Pavis, na obra em que trata da análise de espetáculos - teatro, mímica, dança, dança- teatro, cinema -, faz um comentário que pode ser útil à análise da cena pela equipe, pois num primeiro momento, uma cena apresentada num ensaio é como um espetáculo a ser analisado:

Para a análise do espetáculo, trata-se de determinar se é preciso olhar mais ou escutar mais, se estamos submersos pelos signos visuais ou se devemos utilizar nossa imaginação só pela escuta do texto, em suma, se assistimos a um drama ou se escutamos um relato. (grifos do autor) (Pavis, 2003, p. 188)

Acrescente-se a isso a identificação de categorias teatrais e características estéticas - absurdo, burlesco, patético. Questões relativas a gênero e forma: comédia, happening, psicodrama ou drama. Princípios estruturais como conclusão, coerência, ritmo, ruptura, podem igualmente ser analisados, bem como a encenação e seus elementos, a interpretação e até mesmo a reação do público.

Enfim, dessas análise e compreensão efetuadas pelo dramaturgo, ele retira elementos que, segundo sua opinião, podem ser úteis para a construção do texto escrito. Lembre-se também que esse texto só é geral a partir da união dos diversos blocos criados ao longo do trabalho, isto é, o texto, bem como a encenação, também nascem decompostos e vão se unificando ao longo do processo.

À medida que o processo avança, essa análise é feita de maneira mais acurada, pois se vai tendo uma melhor idéia do todo. O que no princípio era apenas um tema, vai se delineando melhor

como uma história ou como uma série de situações ou personagens, fruto da análise e reelaboração das propostas. Ou seja, vão sendo dados mais elementos para a análise do dramaturgo. Lembrando que o material sugerido pelo dramaturgo é também analisado pela equipe, seja do ponto de vista da encenação, seja do ponto de vista de quem vai interpretar o texto proposto, e pela equipe técnica.

Ao longo do processo colaborativo são feitas análises do trabalho por toda a equipe. Essa prática de análise e compreensão dos detalhes tende a ocorrer em graus cada vez mais elaborados, progredindo até a forma final do espetáculo.

Completando a tríade, Casetti e De Chio definem a interpretação como o momento em que se procura identificar o que o objeto significa, em que se aplica uma interferência, um juízo de valor (Casetti e De Chio, 1991).

No processo colaborativo, ao selecionar os elementos que poderão ser aproveitados para a construção do texto, ou cortando o que considera dispensável, o dramaturgo está avaliando a pertinência do material, sua coerência dentro do caminho percorrido até ali e dentro do todo. Está emitindo um juízo de valor, interferindo concretamente no material apresentado.

Recomenda-se, no entanto, que essa interpretação não se limite ao aqui-agora da cena, mas trabalhe com algo que poderia se chamar análise da potência ou crítica em perspectiva, isto é, que se avalie também o que está implícito, o que pode vir a ser produzido, o que ainda não existe. O dramaturgo, assim como os demais criadores, antevêem, na constante provisoriedade do produto apresentado, as possibilidades futuras tanto para a cena quanto para o conjunto da peça.

Analisando o fragmento apresentado, o dramaturgo deve contrapô-lo à visão do todo que já tem ou que ainda está formulando. Nesse sentido, ele avalia não só o concreto, mas também o que pode se concretizar. Avalia até mesmo se há necessidade de texto verbal ou se a interpretação e os achados cênicos já comunicam suficientemente determinada idéia.

É preciso lembrar, sempre, que o texto sugerido pelo dramaturgo, ao voltar concretizado em forma de cena, traz consigo elementos de outras fontes: gestos, interpretações, acentos, imagens. O que o dramaturgo havia imaginado, estabelece relação com o que está sendo visto e esse choque pode ser decepcionante ou, como ocorre em grande parte dos casos, trazer elementos que contribuam para o enriquecimento do texto. A cena concreta tem uma força que é inegável. Por isso o dramaturgo tem de estar atento para não fechar a interpretação para outras opções e garantir o constante aperfeiçoamento do trabalho.

Daniel Besnehard44 tem uma opinião semelhante a respeito. Apesar de dramaturgista, ao

comentar sua função, fala da importância e da qualidade do olhar:

Eu acredito que o dramaturgismo ‘de palco’ [da cena] seja um exercício de olhar. Mas um olhar que predispõe a uma crítica afetuosa. O dramaturgista está no interior de um processo onde o trabalho ainda está em gestação, evoluindo, tomando forma, então não se pode ter numa posição que não seja também construtiva. Esse exercício de um olhar crítico antecipado é muito importante. Quando um crítico vê um espetáculo, ele não faz concessões, ele julga. O dramaturgista julga também, mas não da mesma maneira, ele tenta ser compreensivo, tenta fazer evoluir da melhor forma o que ele considera ser o melhor. (Besnehard, 1986, p. 50)

Essa colocação serve igualmente para o dramaturgo em processo colaborativo. Seu olhar e sua crítica são diferentes daqueles do crítico profissional, principalmente porque o trabalho ainda está sendo construído. A avaliação estética dá lugar a uma avaliação criativa, de processo, que sugere, propõe, ajuda a solucionar problemas, embora com mais autonomia que o colega dramaturgista.

Luís Alberto de Abreu adverte, porém, que, até certa altura do processo, somente os criadores envolvidos podem se dar o direito de criticar. Segundo ele, pessoas afastadas do processo, por ignorarem o dia-a-dia dos ensaios, os objetivos e os esforços para alcançá-los, tendem “naturalmente a analisar o que vêem como resultados e não como ‘algo em perspectiva’, como imagens, formas e cenas em progresso, sujeitas, muitas vezes, a radicais transformações.” (Abreu, 2003, p. 40). É recomendável, portanto, que o olhar externo ao processo se dê somente quando o trabalho estiver próximo da finalização, momento em que os criadores se encontram mais seguros para receber as críticas alheias.

Comentário, análise e interpretação ocorrem ao mesmo tempo quando se assiste a uma cena. Julgamentos e escolhas são feitos, descartes e aprimoramentos são propostos com base numa série de informações e condições. Feita a crítica, o dramaturgo propõe um encaminhamento a ser discutido com a equipe que, via de regra, também passou pelo mesmo processo de análise. A partir daí, em geral solitariamente, o dramaturgo reelabora o material apresentado. Essa proposta, por sua vez, será experimentada concretamente e, de novo, submetida ao olhar crítico, até que o processo seja finalizado.