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A experiência com os workshops

Em 1986 o Galpão se apresentou no Festival de Inverno da UFMG em São João Del Rey, com o espetáculo Arlequim, servidor de tantos amores, baseado em Goldoni, e aproveitou para participar de uma oficina de um mês, coordenada pelo encenador paulista Ulysses Cruz. Na oportunidade o grupo tomou contato com um processo de criação cênica denominado workshop, em que segundo Chico Pelúcio, “o ator tem uma idéia, traduz essa idéia numa cena que ele concebe e monta em dois dias e, a partir dessa cena, é que se decide se funciona, se não funciona, se é teatro, se não é, se atende ao que se quer ou não”. 52

Pode-se dizer que o workshop caracteriza-se por um híbrido de improvisação - dado o prazo relativamente curto para a elaboração da cena - e formalização: roteiro, luz, figurino, cenário, marcação cênica, por exemplo. Cacá Brandão descreve a experiência da oficina:

Todos têm de dirigir um workshop, trabalhar como atores e até produzir cenário e iluminação. De três em três dias, apresentava-se um trabalho, que era avaliado por uma crítica oral e escrita, feita por cada um dos alunos, na qual se proibiam chavões tais como ‘legal’, ‘bonito’, ‘gostei’ ou ‘não gostei’, ‘bateu’, ‘é uma proposta’, etc. Exigindo discernimento crítico e objetividade para se analisar o que se fazia, os alunos foram obrigados a ultrapassar o nível do gosto pessoal e explicitar aquilo que fundamentava suas opiniões. Reunidos em círculo, todos os aspectos são minuciosamente analisados, da adaptação à concepção cênica proposta, até o trabalho dos atores, o figurino, os elementos do cenário, a iluminação e a trilha sonora. Na última fase do trabalho, Ulisses elege algumas cenas para retrabalhar (Brandão, 1999, p. 49).

51 Idem.

Vale a pena descrever esse procedimento e destacá-lo, pois ele veio a ser adotado pelo Galpão em várias de suas futuras montagens, fosse como exercício para os atores, criação de peças, fosse como busca de solução para problemas cênicos. Todo um espetáculo pode nascer de uma proposta realizada via workshop - como foram os casos de Romeu e Julieta e Um trem chamado desejo, entre outros.

O workshop guarda certas semelhanças com o jogo improvisacional no tocante a seu caráter processual e não definitivo; à rapidez com que deve ser definido e executado, à dificuldade de racionalização daí advinda, e também no tocante à crítica oferecida pela “platéia ativa”, estimulando um aperfeiçoamento da cena 53. Chico Pelúcio detalha a diferença entre a elaboração de uma cena em

criação coletiva e numa experiência de workshop, que pode evidenciar a semelhança com o modelo improvisacional :

No caso do Ó procê vê (...) o processo de criação era no sentido de que você estava ali montando uma cena para ser definitiva: eu estava dirigindo, o outro estava dirigindo que era para entrar no espetáculo como definitivo. O workshop já tem outra característica, ele tem uma pessoa que propõe e é sempre no caráter de experimento, para ver se serve ou não. E tem de ser feito num tempo curto. Não é definitivo, é o esboço de alguma coisa que vem a servir a um espetáculo inteiro. Dali pode surgir alguma coisa. No workshop você não está montando para virar uma cena definitiva - ele tem sempre este caráter aberto e de experimentação, onde vale tudo. Portanto não tem que acertar, ele tem de ser claro, tem de ser rápido, e tem de sugerir alguma coisa. Tem essa diferença, sim - e que eu acho que é melhor, porque quando você fala assim: “Olha, é definitivo”, sem querer, a liberdade ela é um pouco cerceada, você começa a pensar demais, a pesar demais. E no workshop você fala: “Faz o que vier na cabeça, em uma semana. Você dirige, propõe para o grupo, faz essa cena, essa proposta, essa encenação e vamos ver no que é que vai dar”. É possível experimentar tudo, existe uma possibilidade muito maior de saírem loucuras sadias do que essa perspectiva de montar uma cena definitiva. (...) O risco é mais permitido. 54

Foi um período de novas descobertas para o grupo que, aos poucos, caminhava rumo à profissionalização. A experiência coletiva permaneceria, porém em novos moldes. E a influência de Ulysses Cruz transcendeu o nível técnico e influenciou o próprio destino do grupo: foi ele quem apresentou Gabriel Villela aos atores do Galpão. Desse contato nasceriam, anos depois, duas montagens que projetaram a equipe dentro e fora do país.

Em seu primeiro trabalho com o grupo, em 1992, Gabriel lançou mão da experiência com os

53 Foi comentada no Capítulo I a importância dos jogos teatrais nos métodos coletivos de construção do espetáculo. Para

detalhamento do conceito de platéia ativa recomenda-se, mais uma vez, a consulta à obra Improvisação para o teatro, de Viola Spolin. Em linhas gerais, nas sessões de trabalho com jogos teatrais o grupo é dividido em blocos de jogadores e platéia, que se revezam sistematicamente. Isso proporciona aos jogadores, mesmo iniciantes, o sentido de compartilhar uma experiência com quem está assistindo. Após cada jogo apresentado ocorre uma avaliação por parte do orientador, dos jogadores e da platéia que, diferente do público tradicional de teatro, emite sua opinião, sugere e interfere no trabalho.

workshops. Solicitou da equipe cinco cenas, tendo o automóvel Veraneio como elemento cenográfico.

Chico Pelúcio conta que montaram cinco textos de cinco autores diferentes, “cada um de nós dirigiu um, Gabriel assistiu aos cinco e, no final, disse: ‘vamos mesclar Guimarães Rosa com Shakespeare”, o que resultou em Romeu e Julieta (Saadi & Guedes, 2002, p. 101) 55.

Ao longo dos ensaios solicitou ainda workshops de bonecos, de brincadeiras infantis, na intenção de descobrir soluções para alguns impasses que iam surgindo na composição do espetáculo. É Chico Pelúcio, mais uma vez, quem descreve: “Gabriel morava em São Paulo e nos deixava como tarefa trabalhar certas cenas, aí um de nós assumia e dirigia. Quando voltava, a gente apresentava e decidia - serve, não serve, adapta ou coisa parecida” (Ibid., p. 101).

O fato de solicitar cenas e sugestões dos atores não significava, contudo, que o processo de trabalho de Gabriel Vilella pudesse ser definido como coletivo ou colaborativo – lembre-se que ele foi dos encenadores que mais caracterizaram os anos oitenta, a “década do encenador”. O projeto, o controle total, permaneceram em suas mãos – tanto que os workshops solicitados no meio da montagem visavam a concretizar suas idéias ou “intuições”. Em vários trechos do diário, o dramaturgista Cacá Brandão cita ou descreve falas e atitudes de Villela que confirmam a totalidade abarcada pelo seu comando. Num deles, do dia 29 de maio de 1992, pode-se ler:

Gabriel registra que a coisa mais abominável no teatro é a interferência do ator no trabalho do outro. Para ele, a definição dos papéis deve ser clara e cada um permanecer no seu departamento, concentrado: “ator não mete bico no trabalho do outro senão é sem sentido chamar um encenador para conceber o espetáculo. O trabalho de cada um de vocês é elaborar o que lhes foi colocado no caminho da interpretação.” (Brandão, 2003, p. 37)

No trecho seguinte a essa citação, o dramaturgista anota a maneira positiva com que ele e os componentes do Galpão encaravam esse “método mais verticalizado” proposto pelo diretor. A autoridade externa contrastava com a “anarquia” e a “trajetória indisciplinada” atribuídas ao grupo ou, pelo menos, a alguns de seus componentes.

A rua da amargura teve um processo conduzido ainda mais “verticalmente” por Villela. Em

1994, depois de ter perdido Wanda Fernandes num acidente de automóvel, o grupo sentiu que deveria

55 Os workshops giraram em torno de “teatro rebolado ou de revista; Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; O

grande teatro do mundo, de Calderon de la Barca; Romeu e Julieta, de W. Shakespeare e Primeiras estórias, de João Guimarães

retomar o trabalho para “tentar retomar o prumo”, segundo palavras de Eduardo Moreira. É ele quem registra que,

Com a morte de Wanda, o Galpão perde uma de suas bases mais sólidas, e não tenho dúvida que esse processo de montagem será absolutamente atípico e que dependerá muito da condução de Gabriel. (...) Para um grupo acostumado a participar ativamente do processo de criação dos espetáculos, com atores que sempre imprimem sua assinatura na elaboração das cenas, creio que esse processo trará uma característica bem particular (...). (Moreira, 2003, p. 15)

Gabriel Villela conduziu todas as etapas do trabalho, como Eduardo havia previsto. Mas com a próxima montagem, o grupo pretendia retomar o controle criativo. Em Um Molière imaginário mais uma vez lançou-se mão dos workshops e improvisações a partir de uma primeira versão do texto apresentada pelo dramaturgista Cacá Brandão – que tomara como referência O doente imaginário, de Molière, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. A direção ficou a cargo de Eduardo Moreira que teve uma série de dificuldades para a realização do trabalho. Seu papel era constantemente questionado pelo elenco, assim como o texto. Brandão registra, nos diários da montagem, a dificuldade dos atores de se desprender de um padrão interpretativo adquirido ao longo dos anos. Conflitos de todo tipo iam surgindo, crises, até que, próximo à etapa final, um esforço conjunto garantiu a estréia do espetáculo no Festival de Teatro de Curitiba.

Paralelamente, o grupo, que havia assentado suas bases de atuação “orientados por uma visão coletiva e alternativa que se fortalecia nos anos oitenta”, começou a refletir a respeito de uma forma de inserção ainda mais radical na comunidade artística mineira (Pelúcio, 2004, p. 3).