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A prática da avaliação e o exercício do desapego

4.2 O processo de criação de um novo espetáculo

4.2.3 A prática da avaliação e o exercício do desapego

Depois de apresentadas as cenas - seja na prática improvisacional, seja na experimentação de sugestões da dramaturgia - a colaboração de cada um ocorria numa outra esfera: críticas e sugestões ao trabalho uns dos outros. Naquele momento, a interferência se fazia sentir de maneira bastante concreta. Atores e direção comentavam a dramaturgia, a dramaturga comentava interpretação e direção, comentavam-se soluções musicais e cenográficas, e assim por diante. Eram momentos em que se podiam lançar as diretrizes para o desenvolvimento do trabalho. A atriz Neusa Dessordi credita à avaliação muito da concepção de suas personagens:

Aquelas rodas eram fundamentais. Muita coisa surgiu para a [personagem] Cássia nesses bate- papos da roda. Porque a Cássia não é só fruto da improvisação. Ela é fruto também do relacionamento com outros personagens e das coisas que eram trazidas nas discussões: “olha, a Cássia poderia fazer isso, aquilo. E se a Cássia fosse por esse outro lado?” Eram sugestões valiosas. Isso todo mundo vai colocando. E isso, é claro, depois, o ator vai filtrando. Ele, mais a diretora, mais a dramaturga vão filtrando. 106

As críticas são feitas e é preciso tomar cuidado para que o ego não seja colocado à frente do trabalho. Muitas vezes, por causa da maneira menos delicada de se falar, ou pela suscetibilidade de quem escuta, os comentários podem ser tomados pelo lado pessoal e retardar o processo. Neusa comenta essa dificuldade de ouvir:

É claro, muitas vezes a gente não quer ouvir uma crítica, essa é que é a história. Acontece que o nosso trabalho está sendo colocado à prova o tempo todo e as críticas vêm mesmo, e são fundamentais. Existe aí também a questão da maturidade da pessoa. Do ator que está lá sacar - e

isso vai da personalidade de cada um – de que maneira ele pode dizer e processar o que ouviu. Cada um chega de um modo diferente. E vai aí do ego. Tem sempre o que chega e acha que pode dizer tudo, falar daquele jeito e tudo bem. Outros já têm a percepção, já sabem que se falarem de determinada maneira com aquela pessoa, ela não vai reagir de maneira legal. 107

O tempo e a convivência tendem a fazer os ajustes necessários. Há quem se torne mais afável nos comentários, há quem aprenda a comentar ou a falar menos, dando chance aos demais. E há quem aprenda a reagir de maneira adequada. Mas, em se tratando de convivência em grupo, existem mesmo maneiras infalivelmente adequadas?

Em busca de uma resposta pode-se recorrer, novamente e sempre, a Viola Spolin. A experiência da equipe com o jogo teatral pode favorecer, e muito, a prática da avaliação. Viola recomenda que, na hora de se avaliar, deve-se procurar focar a improvisação e o objetivo geral do trabalho - o que está sendo avaliado é a cena apresentada. Isso direciona tanto o pronunciamento de quem avalia quanto a interpretação de quem escuta. O treino constante permite que, ao se posicionar criticamente em relação à cena, o jogador da platéia se coloque cada vez mais objetivamente, identificando problemas e propondo soluções – sem a interferência do ego. Da mesma maneira, quem escuta adquire mais facilidade de se distanciar do trabalho e de vê-lo como objeto analisado e não como uma parte de si mesmo.

Isso pode parecer utópico - talvez não exista um grupo sequer em que o ego de alguns componentes não esteja sempre à frente do trabalho, principalmente nos casos de composição a partir de experiências pessoais. Como não se sentir pessoalmente criticado se o que está na cena é a sua própria vida? Mas por que não acreditar que a constância da prática avaliativa criteriosa e distanciada possa levar a uma tranqüilidade maior nesse sentido?

A prática da avaliação está estreitamente ligada a um dos temas abordados no Capítulo II deste trabalho: o olhar. Quando se assiste a uma cena improvisada na primeira fase dos ensaios, o olhar é diferente daquele que pousa sobre uma cena já desenvolvida, numa fase posterior.

Tomando o caso de Geração 80, os primeiros ensaios, além de suscitarem avaliações a respeito do próprio espetáculo, despertavam comentários também sobre o processo em si. Em 14 de fevereiro, por exemplo, pedia-se ao ator que não se prendesse, num primeiro momento, às informações factuais. A elaboração da cena não precisaria, necessariamente, partir de conhecimento histórico profundo do tema por parte dos atores. Naquele momento inicial, era mais importante prestar atenção às imagens e sensações que pudessem atingir ou tocar o espectador, que se importar com a verossimilhança, a “verdade dos fatos”.

Estreitamente ligada a essa recomendação, uma outra, feita no mesmo dia 14, bastante característica do processo colaborativo: o refletir deve servir ao agir. Uma cena ultra elaborada mentalmente, se não for experimentada na ação, não existe. Notava-se, muitas vezes, que os atores preocupavam-se tanto em elaborar minuciosamente a cena e dar a ela o máximo de detalhes específicos dos anos oitenta que, na hora de apresentar, a cena não acontecia. A equipe passara o tempo todo discutindo, planejando, ou descartando possibilidades por parecerem óbvias ou prosaicas. O que levou a uma outra reflexão, ainda do dia 14: os atores não deveriam ter medo do óbvio, do cotidiano, do simples.

Paralelamente aos comentários em relação ao material criado, reflexões e recomendações sobre o processo não faltavam na prática avaliativa. Uma anotação de 7 de março tratava de um mito, comum em outros processos e na própria arte, mas infundado no processo colaborativo: o mito da originalidade. O Diário registra que “não deve haver pudor em reutilizar material/descobertas alheios nas cenas. O material descoberto é do grupo e não propriedade particular. Ao contrário, tudo deve se converter em arsenal de trabalho.” Essa recomendação, aliada à anterior sobre o óbvio e o simples, garantem ao ator uma imensa liberdade. O dia-a-dia dos ensaios é um grande baú em que se vão juntando personagens, situações, palavras, músicas, idéias que podem ser aproveitadas como bem se entender, sem pudores, e com criatividade cada vez maior.

A resistência em reutilizar material já trabalhado, principalmente quando alheio, pode ser um entrave num processo coletivo. Isso se deve ao fato de que há uma espécie de culto à originalidade, ao “completamente novo”, à genialidade quando, muitas vezes, o necessário é justamente o simples, o repetido, o aprofundado. Buscar nuances no já visto, burilar, cavoucar, revolver, aglutinar. Verbos miúdos quando comparados a surpreender, inovar, mas igualmente importantes. No processo colaborativo a necessidade de repetição não deve esvaziar a personagem, ao contrário, deve ser uma oportunidade de reelaboração e enriquecimento.

Mas, se há dificuldade em reaproveitar material alheio, pode haver igual resistência em ceder o material criado. Por isso, mais uma vez, e sempre, é preciso abordar o tema do desapego. O material descoberto é do grupo e não propriedade particular. E se um ator quer, acima de qualquer coisa, desenvolver uma personagem que criou, ele conquista esse direito na cena, na pesquisa, no trabalho, e não porque foi seu “inventor”. Neusa Dessordi comenta o processo de construção:

Como posso colocar este personagem de forma que ele fique interessante? Como vai ser esse personagem e como eu vou torná-lo interessante, para que ele desperte o interesse no meu colega de cena e no público? (...) E tem aquela coisa do ator brigar pelo seu personagem, né? (...) Todo mundo queria ser personagem principal. O personagem e o ator! Eu acho que isso todo mundo buscou, um personagem colorido, que tivesse nuances, não um personagem raso. De ter um

personagem que, por mais calhorda que ele fosse, ele tinha uma humanidade, tinha o seu outro lado. E isso despertava o interesse em todo mudo. Por mais burguesinha e superficial, a outra tinha uma humanidade ali que cada ator foi buscar. Cada ator foi brigar pelo seu personagem. 108

É natural que o ator se apegue à sua criação. É natural, depois de séculos de trabalho solitário, que o dramaturgo sinta resistência em ter seu texto criticado, questionado, alterado pelo grupo. Somente aos poucos e a muito custo tal mentalidade pode ser modificada, e há quem nunca se adapte a esse tipo de processo.

Compor um papel e “perdê-lo” em seguida exige uma boa dose de desprendimento. Supõe-se que cada caracterização guarda consigo conteúdos do intérprete que a elaborou - principalmente em se tratando do processo colaborativo, pois no trabalho com base em texto fixado a personagem se apresenta minimamente desenhada pelo dramaturgo. Sendo assim, pode tornar-se mais difícil para o ator dispor de sua criação para que seja apropriada e modificada por outrem.