• Nenhum resultado encontrado

4.3 Os diferentes níveis de experiência do elenco e suas implicações no trabalho

4.4.2 A memória

A eliminação de personagens ocorre ao longo de todo o processo. Quando a estrutura já está definida, a equipe tem um foco que permite uma objetividade maior das criações. Se o grupo sabe que

o espetáculo vai falar da vida de dez amigos nos anos oitenta, é natural que as improvisações e sugestões se direcionem para isso. Nessa etapa, portanto, os cortes são em menor número.

Mas nem sempre o corte é a solução. Pode ocorrer de os atores terem dificuldades na criação de determinada cena, apesar de todos os estímulos necessários. Nesse momento, com a peça já estruturada, o dramaturgo tende a assumir a escrita da cena. Um exemplo disso, em Geração 80, foi a viagem para Iacanga.

Teco deveria viajar para o Festival de Águas Claras, momento em que conheceríamos um pouco mais do universo da personagem, sua relação com a música, o álcool e as drogas. Algumas improvisações foram tentadas sem que se chegasse a um resultado satisfatório. A determinada altura do processo, com a necessidade de se concluir uma etapa do trabalho, a dramaturga assumiu a escrita da cena e a compôs inteiramente, lançando mão de uma oposição entre o comportamento rebelde de Teco com sua mãe conservadora, e o comportamento “quadrado” de Nino com seu pai “prafrentex”:

CENA 3 – IACANGA

Pais e filhos - Teco e Nino em família

No mês seguinte ao baile, NINO e TECO, cada um em sua casa, conferem os itens da mochila para a viagem a Iacanga. A MÃE do TECO é uma mulher simples, do interior. O PAI de NINO é hippie, zen, parece que tá fumado.

TECO (LATAS) Feijoada, salsicha, patê de presunto.

NINO Pão integral, suco de espinafre, semente de girassol.

TECO As passagens tão com o Nino.

NINO As passagens tão com o Teco.

TECO (GARRAFA) Cachaça.

NINO RG, escova de dentes, pasta, lenço, sabonete, toalha. Bandaid. Ai!

(DESESPERO) Cadê o mertiolate?!

TECO Tio Patinhas, Playboy.

NINO “O lobo da estepe”, “A erva do diabo”.

TECO Maconha.

NINO Camomila.

TECO Manhê! Cadê a minha calça preta?

MÃE (ENTRANDO) Tá molhada!

NINO Paiê! Cadê a minha bata amarelinha?

PAI (ENTRANDO) Não sei...

NINO Ô, pai! Você tá usando ela!

PAI Aqui em casa é tudo comunitário, já falei!

MÃE Pra onde ocê vai, Teco?

TECO Iacanga.

MÃE (ESPANTO)Iacanga? Cê vai pra praia? Com um tempo desse? Então eu vou pegar o guarda chuva e a sua blusa de gola olímpica. O que cê vai fazer lá?

PAI (VIBRA)Festival de Águas Claras? Uau! Tomar banho de lama, nadar

pelado, azarar as menininhas...

NINO Eu vou lá curtir as músicas, pai!

TECO pega o violão e canta um trecho de “Serra do Luar” [música de Walter Franco].

MÃE (MEXE NAS COISAS DELE) Essa música de novo? Cê num cansa? O dia

inteiro enfurnado nesse quarto tocando! Fala com a sua mãe, menino! Vocês reclamam que não têm comunicação com a gente, eu tô querendo conversar...

MÃE e PAI (PEGANDO OS PACOTINHOS) O que é isso?

TECO É... remédio, mãe. Pra dor de barriga...

NINO É... maconha, pai...

MÃE (CHEIRA) Isso num é remédio! Você anda cheirando conha?

TECO Não, mãe! E maconha não se cheira, se fuma.

PAI (CHEIRA, BRAVO) Isso é camomila, Nino! Você anda tomando chazinho?

Isso vai te fazer mal!

NINO (QUASE CHORANDO) Eu num transo maconha, pai. Me

deixa zonzo...

PAI Já falei que fumar maconha não deixa zonzo, deixa em alfa!

MÃE Como é que você sabe que maconha se fuma, hein, Teco? Com quem você

tá andando? Com quem você vai nessa Iaquenga?

TECO Iacanga! Com o Digão e o Nino...

MÃE O Nino? Aquele menino hippie? Só podia ser ele, tá te dando mau exemplo!

Você num vai com ele de jeito nenhum!

TECO Agora num dá mais! Ele já comprou as passagens!

As casas se juntam.

NINO Eu? Comprei passagens? Mas num era você que ia comprar?

PAI (DESPREZO) Passagens? Vocês vão pra Iacanga de ônibus?

TECO Desde o começo eu queria ir de carona...

PAI Isso! Cai na vida, meu filho! Aventura! Eu vou com vocês.

NINO Pai! Você quer me matar de vergonha?

PAI Vocês tão precisando de um guru! Vamos. Sem lenço e sem documento.

(VAI SAINDO COM TECO)

TECO e PAI É só alegria! Uuuh!

MÃE Teco, leva a blusa do agasalho! (TECO JÁ SAIU. OFERECE PRA NINO)

Tó, Nino, leva você...

NINO (PEGA) Obrigado, dona Eulália.

MÃE Tó, leva o guarda chuva também... (NINO VAI SAINDO) Vai com Deus.

E cuidado... com o seu pai.

Mesmo apresentando ao grupo o texto pronto, pode-se dizer que a dramaturga o elaborou sozinha? Em relação a esta cena específica, e a muitas outras, não. A dinâmica, o paralelismo, o contraste, a integração dos ambientes no final, foram achados estruturais da dramaturgia. Muitos elementos, porém, remontavam a uma série de ensaios anteriores. Dona Eulália, a mãe, foi aquela personagem criada por Neusa logo nas primeiras improvisações – mulher simples, do interior, viúva que sustentava o filho único como costureira. Seu jeito de falar, a preocupação com o que o filho andava fazendo foram recuperados quando da escrita da cena. Teco já tocava essa música nas tentativas anteriores de composição da situação. O Nino que achava que era hippie por influência do pai, surgiu quando a personagem ainda era feito por Didjo. Ou seja, a dramaturga pôde sugerir essa

solução porque o perfil de pelo menos três personagens já estava traçado e a situação estava prevista na estrutura: alguma personagem deveria ir pro Festival.

Portanto, no processo colaborativo e similares, como o espetáculo vai sendo desenvolvido em um sistema de construção, acumulação e seleção, todo material vai ficando depositado nos “arquivos” do espetáculo. O que é selecionado e se mantém em evolução, convive com o que já foi trabalhado e descartado e que, agora, dá subsídios e subtexto à cena ou fica no “banco de dados”. A esse respeito, já comentou Rubens Rewald em seu Caos/Dramaturgia. O trecho citado a seguir refere-se à elaboração do espetáculo O narraador:

Outro detalhe que merece destaque nesta quarta versão é a última fala de Luzia : “Eu preciso de você, Ana.”. Esta frase não estava na terceira versão, mas estava nas anteriores. Aparentemente, poderia se pensar que o processo é irreversível, isto é, as transformações sofridas pelo texto são no sentido de uma evolução, o que não permitiria um retrocesso a algum elemento de versões anteriores descartado. No entanto, a história do processo é mais forte do que o seu estágio atual, e qualquer elemento que já esteve presente, mesmo que eliminado posteriormente, pertence à sua memória, sendo passível, portanto, de ser reaproveitado, tanto pelo dramaturgo, quanto pelos atores ou diretor. (Rewald, [1998], p. 42)

Em Geração 80, o material improvisado por Neusa, Pitty, Emerson e Marcelo ficaram registrados, seja nas anotações manuscritas, seja na lembrança ou em alguma cena. Quando foi necessária a reformulação, todo um volume de informações pôde ser recuperado e retrabalhado, pois, como conclui Rewald no mesmo texto “quanto mais se domina a memória do processo, mais efetiva é a proposição de seus novos movimentos.” (Rewald, [1998], p. 42).

O volume de material elaborado nos ensaios é imenso e, conseqüentemente, o descarte também o é. Isso pode, muitas vezes, causar no ator uma sensação do tipo “para quê vou trabalhar tanto se nem sei se o material vai ser aproveitado?”. Ou então o dramaturgo pode pensar “por que vou investir nisso, se é só para procurar uma pista e não para virar cena?”.

Neusa Dessordi levou cerca de quatro ensaios elaborando um workshop com Marcelo Monthesi. O objetivo da cena era fazer um resumo da década de 80 por meio de uma narrativa utilizando objetos. Os dois apresentaram, a cena foi descartada. A esse respeito, Neusa comenta:

Isso é um barato. E isso é evidente no trabalho de todo mundo. Por que a gente tinha mais ou menos uma coisa de fazer uma peça de umas cinco horas. Então a gente acabou tendo material para tudo isso, pra horas e horas de espetáculo, e aí tinha aquele momento de você ter de cortar. Deixar o quê? O essencial. Mas, é claro, muitas vezes isso não é convincente. A gente quer ver tudo ali. Esse exemplo do resumo da década, ele é um barato. Porque a gente ficou umas duas ou três semanas, o Marcelo e eu. (...) Mas, apesar de ela não ter ficado, de certa forma ela ficou. Não ficou enquanto cena, mas todo mundo lembra dela e ela faz parte do trabalho! Isso é evidente. Ela está lá. É como um trabalho de pesquisa, uma monografia. Nós pegamos diversos materiais, muitos livros e

temos que anotar no final, quais nós usamos. Tem aqueles que a gente cita muito, mas tem aqueles também que nós só folheamos, lemos, mas não citamos no trabalho. Esse livro também tem que constar na bibliografia porque fez parte da pesquisa. É mais ou menos assim. A cena foi cortada, mas ela existiu, foi vista e nós sentimos o seu reflexo em outras cenas, mesmo que indiretamente. Quando o [personagem] Nando compara o Lula com um sapo barbudo, por exemplo, essa história brotou da nossa cena. 126

Cada trabalho vai dando oportunidade aos criadores para que se habituem ao funcionamento do processo. O Teatro da Conspiração, no momento em que essa pesquisa está sendo feita, prepara-se para seu quarto espetáculo, Frei Tito, também em processo colaborativo. Assumindo mais uma vez a direção, Solange Dias comenta que o grupo evoluiu bastante. Hoje não se pensa muito se aquilo que está sendo produzido vai permanecer ou não no espetáculo. Segundo a diretora, muita coisa já foi descartada.

Mas quem disse que, de alguma maneira, aquilo que já foi feito não está incorporado de alguma maneira? Não está incorporado enquanto cena, não está incorporado enquanto texto, mas que está no ator e está do dramaturgo, quando vai escrever a cena. E a gente nem tem consciência disso. Existe um monte de coisa que nós tivemos de passar e a gente fica triste por ter perdido. Não perdemos. Alguma coisa modifica, a gente amadurece. A gente fala que é jogar fora, mas o que a gente joga fora é o que havia de material, uma cena, um texto, uma fala, mas ficou no personagem aquela cena que foi feita, mas não entrou na peça. De alguma forma ele carrega. Acho que hoje o grupo faz isso tranqüilamente. 127

Numa montagem nos moldes convencionais, o que importa é o resultado. A memória do processo refere-se ao trabalho de levar o texto à cena: o estudo de mesa, as leituras, o decorar o papel e as marcações, a adequação do figurino, e tudo mais. Por mais aprofundado que seja o estudo do texto ou da personagem, nada impede que o ator possa fazer esse estudo sozinho.

No processo colaborativo, ao contrário, o resultado é a própria memória do processo concretizada em forma de cena. Tudo que nele existe é estreitamente dependente do processo que o gerou. A definição das personagens e suas relações, a trama, as trajetórias, o texto, as soluções cênicas.

Numa montagem convencional, se um ator sai depois da estréia, um outro vem, estuda, ensaia algumas vezes e a temporada continua, com a configuração anterior do espetáculo. E no processo colaborativo? O que acontece quando um ator sai e um outro precisa substituí-lo em plena temporada? Como atuar sem ter a memória do processo?