• Nenhum resultado encontrado

A definição do texto e suas versões

Ainda em 14 de dezembro, depois do grupo avaliar a apresentação na Mostra da ELT, a dramaturga anotou no Diário:

Agora começa uma nova etapa da dramaturgia. As personagens já estão conhecidas. Sua vida e os principais fatos também já são conhecidos do grupo. (...) A tarefa agora é aprofundar a escritura do texto. Isso não implica em manter rigidamente o que foi feito até agora, tampouco mudar completamente. A opção mais provável é que se mantenha a linha que foi predeterminada para a apresentação do dia 8 e, dentro dela, encaixar partes das outras trajetórias que não foram contempladas ainda. Essa visão geral da peça nos dá a oportunidade de buscar a unidade para o espetáculo. (...)

Manteve-se a estrutura do dia 8, porém com os descartes resultantes da avaliação do grupo, desenvolvendo-se transições mais precisas entre as cenas e algumas situações que não estavam previstas, mas que eram exigidas pelo contexto. As trajetórias de Carol e Marcão, Valdo e Tânia, Edu e Teco estavam mais elaboradas que as outras. Procurou-se, então, lapidar aquelas e aprofundar as demais.

A sensação é de que havia o enredo básico e seria preciso complementá-lo. Para suprir algumas lacunas e facilitar a questão cronológica adotada no espetáculo, se fazia necessária a criação de narrativas, como foi anotado no Diário em 1º de janeiro:

Logo na primeira cena já existe a ampliação das expectativas das personagens em relação à formatura. Na formatura era necessário que estabelecêssemos e deixássemos claro à platéia qual sistema iríamos utilizar para a encenação. Para isso, lancei mão da narrativa, colocando as personagens falando diretamente com a platéia sobre como eram na década de 80, estabelecendo, assim, um código que irá permear a peça até o final.

Outro desafio dessa primeira versão foi a síntese. Se fossem elaboradas todas as cenas planejadas, dando conta de todas as personagens, o espetáculo teria em torno de 25 cenas. Com o trabalho de síntese, criou-se uma série de mecanismos em que uma cena se encaixa na outra, as personagens se inter-relacionam em cenas misturadas, dando a impressão, por vezes, de que a vida de toda a turma é praticamente integrada, tudo se relaciona. O Diário continua:

Elaborei 16 cenas, de um total de provavelmente 17 ou 18, no caso de haver a cena do réveillon. Não escrevi a cena do réveillon nem a cena do reencontro, primeiro por não saber se a passagem da década de 80 para 90 vai ser trabalhada como foi no Conchita - lá ela tinha a função de fechamento da peça. A cena do reencontro, creio que seja interessante surgir em decorrência de toda a peça, com sugestões do elenco, já que foi a partir do encontro improvisado muitos meses atrás, que a idéia do grupo de formatura e de toda a peça surgiu.

Em 1º de janeiro de 2002 foi entregue a primeira versão. O texto foi lido e discutido pela diretora, o que resultou num segundo tratamento dramatúrgico.

De posse da segunda versão, a diretora sugeriu que o grupo não lesse a peça toda de uma vez. Teve a idéia de que os atores, da mesma forma que ocorre com as personagens, conhecessem apenas o tempo presente. Ninguém iria saber sobre o momento seguinte, o ano seguinte - a cena seria conhecida no dia em que fosse trabalhada.

Começava, então, uma nova etapa, a dos ensaios com o texto. A pedido da diretora, ninguém mais deveria se dirigir aos atores diretamente. Os comentários seriam feitos durante as rodas de avaliação ou para ela, Solange, que julgaria sua pertinência. Essa medida visava a trazer segurança para os atores e evitar que ficassem confusos em relação à cena.

Considerando importante a recomendação, a dramaturga solicitou que a diretora lhe determinasse tarefas específicas em que poderia ser útil. Existe uma fragilidade muito grande em relação ao limite no processo colaborativo. O Diário de Dramaturgia de 1º de janeiro anota:

Me peguei muitas vezes dando opiniões em questões que eram da direção. E, ultimamente, perto da apresentação, deixei também de falar muitas coisas, pois senti a sobrecarga de informações e de solicitações em cima da Solange. Percebi que, a certa altura, estava deixando de prestar atenção na dramaturgia e me concentrando/dando palpites nas questões da encenação.

Existe algum critério que possa determinar até que ponto um criador pode interferir na área do outro? Em Geração 80 talvez se tenha chegado a um consenso: a interferência ocorre enquanto o material está sendo criado, nas improvisações. A partir do momento em que começa a formalização propriamente dita, cada criador deve se concentrar na sua área específica.

Ao ser entregue a segunda versão do texto, ficou combinado que a dramaturga compareceria somente a alguns ensaios esporádicos. Ela acompanharia o conteúdo de cada ensaio por telefone e estaria presente quando da leitura da cenas, para eventuais esclarecimentos e opiniões. As anotações do Diário seriam escritas por Neusa, que os transmitiria via internet.

Na medida em que o texto era lido e trabalhado, os atores iam se apropriando dele, experimentado-o no concreto da cena. Em decorrência disso, sugestões de alteração ocorriam com freqüência. Elas eram mostradas à dramaturga, discutidas e quando necessário, efetuavam-se modificações. Foram feitos cortes, mudanças no linguajar, esclarecimentos.

Citações muito específicas ou pouco claras, que poderiam causar ruído na comunicação com o público, foram eliminadas ou alteradas. Uma das cenas em que isso ocorreu foi aquela em que Marcão e Carol se reencontram. Ele está tentando convencê-la a se casar e, como último argumento, chama Valdo e Tânia. Quando o outro casal irrompia a cena, Carol triangulava com a platéia: “Eu tava me sentindo como num filme do Woody Allen”, numa referência ao filme Noivo neurótico, noiva nervosa. A atriz não se sentia à vontade para a frase, que acabava soando como preciosa e deslocada na cena; o comentário era irrelevante no contexto e, finalmente, não era necessária uma justificativa cinematográfica para a entrada dos dois amigos. A citação foi cortada.

Num outro momento, a personagem Cássia pedia ajuda a Vinícius para conquistar Edu. Considerou-se importante identificar qual Vinícius – o de Moraes, pois boa parte da platéia, sendo jovem, poderia não estar familiarizada com o nome do poeta.

Outras citações foram mantidas, a despeito de um possível não entendimento do público. Quando Marcão escreve para Carol dizendo “agora [a Inglaterra] fica brincando de guerra com os argentinos”, ele está fazendo uma referência à guerra das Malvinas. Ou quando, na saída do baile de formatura, ele pede à namorada para colocar o cachimbo na Brasília, está se referindo à peça retirada do carro quando se estacionava, para evitar que o carro fosse roubado. Detalhes como esses foram mantidos, em nome de uma ambientação da cena. Espectadores mais velhos ou que soubessem do que se tratava, entenderam e se divertiram. Os que desconheciam o assunto, não foram prejudicados no entendimento da cena como um todo.

Numa situação próxima, o professor José da Costa Filho, mais uma vez se referindo ao espetáculo Cacilda!, comenta:

É certo, entretanto, que o espectador que não tem informações prévias sobre o trabalho teatral de Flávio de Carvalho não lerá a cena pelo viés dessa referência artística. Mas penso que não importa, na verdade, que ela seja ou não decodificada. O que importa é que o receptor experimente também ele um jogo paradoxal em que a presença joga com a divisão de si mesma (em termos de profusão de referências díspares, de imagens, vultos, sombras e reflexos) como movimento infinito e sem ponto seguro de chegada.” (Costa Filho, 2003, p. 345)

Sem a pretensão de comparar Geração 80 a Cacilda!, no espetáculo andreense, espera-se que aquelas e outras citações, tenham se constituído, para quem não as decifrou totalmente, em pequenas e estimulantes interrogações em meio a outros pontos perfeitamente claros da década, como Diretas Já, por exemplo.

4.8 A configuração do texto e o resultado final

A configuração final da dramaturgia resultou em 18 cenas, e nos últimos minutos antes da estréia, o grupo ainda fazia alterações de cena e de texto, fato bastante comum em espetáculos colaborativos.

Buscou-se uma unidade para a narrativa por meio da ligação entre as duas cenas iniciais – nas quais o grupo é apresentado e promete se reencontrar dali vinte anos - e a cena final, do

reencontro. As demais cenas traçam um panorama da trajetória do grupo, seja em cenas individuais - a personagem e sua família – ou grupais. Tematicamente o espetáculo se divide em dois blocos. O primeiro, abordando a adolescência, vai até a cena em que Valdo e Tânia anunciam a gravidez. A passagem para a vida adulta e suas complicações começa na gravidez de Maria Bia e segue até o final.

Logo no início, as personagens são apresentadas na cena que antecede a formatura (1981). Cada um em sua casa, todos se arrumam para a festa, enquanto narram para o espelho seus pensamentos e ansiedade. Eventualmente, o solilóquio é atravessado por um diálogo imaginário entre as personagens. A transição para a formatura se dá com o desejo de que todos permaneçam amigos para sempre.

Os amores, as brigas, os planos de reencontro têm lugar na cena dois. Nesse momento, pretende-se que fique estabelecido um código fundamental para a platéia: as narrativas diretas ao público tratam de lembranças e comentários, feitos somente pelos protagonistas. No final, Teco faz uma reflexão que será retomada na última cena, fazendo o elo entre os dois encontros do grupo.

A transição para a próxima cena dá-se por meio da canção Vamos fugir, de Gilberto Gil, tocada por Teco. Em seguida, a cena de Iacanga, comentada anteriormente. Assim que os amigos vão embora e a mãe fica sozinha, a cena é invadida pelo grupo da cena seguinte, que prepara uma festa de garagem na casa de Marcão.

Bebedeira, cenas de ciúme, festa de despedida de Carol que parte pra Londres – sonho de muitos brasileiros daquele período - são trabalhados por meio de diálogos e narrativas. No final da festa, Carol e Marcão tentam transar, mas não conseguem – trecho que pôde set lido neste trabalho, no item sobre o papel do público.

No ano seguinte, cena seis, algumas personagens se comunicam por cartas ou se expressam nos diários, criando um outro tipo de interlocução. Quando Tânia encerra sua carta para a amiga Carol anunciando a gravidez, ouve-se o grito desesperado de sua mãe, sabendo da notícia na mesma hora e iniciando a cena sete.

Ainda em 1982, Tânia e Valdo contam à família da moça sobre a gravidez inesperada. Os conflitos se instalam devido às posições políticas de genro e sogro, mas tudo acaba bem. Diferente de Maria Bia que, no ano seguinte, engravida de Nando e, sendo rechaçada pelo namorado – noivo de outra – é aconselhada a abortar. Nesta cena, a relação do casal é toda tecida de diálogos interpessoais. Quando o rapaz vai embora, deixando Maria Bia sozinha, sentada na calçada, a cena é invadida pelos amigos que se dirigem a ela diretamente, para dar apoio. Carol, mesmo estando em Londres, “fala” a carta que mandou para a amiga.

Na cena nove, Cássia, agora interessada em Nino, prepara com ele uma viagem à Barra do Sahi. Marcão e Teco aparecem, de “penetras”, mas acabam desistindo da viagem. Sozinhos, os dois amigos conversam e fica-se sabendo do envolvimento do rapaz com cocaína e com o tráfico.

A canção Vai passar, de Chico Buarque, abre a cena das Diretas já (1984). O diálogo dramático da cena anterior dá lugar à narrativa que cada personagem faz de sua situação naquele momento. Micro-cenas entre Maria Bia e Nando, Edu e Teco, e Valdo e Tânia, situam o espectador quanto àquelas relações. No mesmo ano, Carol visita o Brasil e transa com o ex-namorado. Na tentativa de fazê-la ficar, Marcão propõe casamento e chama para a cena os amigos Valdo e Tânia para interceder por ele. Sem sucesso, Marcão sai com Carol, deixando os outros dois para terminar a cena.

Em 1987 Nando continua a fim de Maria Bia e interrompe um teste que a moça faz para o grupo do Cacá Rosset. Logo em seguida, Edu reencontra a amiga e a convida para uma festa. As festas de garagem deram lugar às festas de porão. O clima até certo ponto ingênuo daquelas, é substituído pelo ambiente de consumo de drogas, de depressão. Edu observa Teco e sua entrega à cocaína.

Observa Cássia e Nino, mas não consegue dialogar com eles – que preferem monologar sua revolta e tristeza.

No ano seguinte, 1988, Carol volta e encontra Marcão casado e estabelecido, proprietário de uma lanchonete na periferia. A situação é toda trabalhada em diálogos interpessoais, ao contrário da cena seguinte, em que Edu abre o exame de HIV, absolutamente mudo.

Em 1989, no período de eleição para Presidência, três casais conversam, em três cenas que permanecem paralelas do começo ao fim, mas que se intercalam conforme o tema. Tânia e Valdo discutem a relação, Nando e Bia se reencontram numa padaria, Cássia e Nino se vêem no supermercado. Filhos, a doença de Teco e as eleições percorrem o diálogo dos três.

A morte de Teco é representada na penúltima cena, que, em termos de texto, comporta apenas a narrativa da mãe. O reencontro vem, em seguida, decorrente da cena anterior – o grupo está relembrando o funeral do amigo, última vez em que a maioria se reencontrou. Daí até o brinde final, as personagens dialogam entre si, no tempo presente, dando a entender que o espetáculo não passou de uma lembrança de cada um deles.

Como pôde ser visto, optou-se pela mistura de diálogos dramáticos entre as personagens e narrativas dirigidas ao público. Alguns fatos da década de 80 permearam as cenas sem que se constituísse, no entanto, um pano de fundo propriamente dito. Em certos casos eram apenas citados alguns acontecimentos que não chegavam a condicionar determinada situação vivida pelas personagens.

A contingência mais significativa foi o advento da aids. Alterou a trajetória de uma personagem (Edu) e causou a morte de outra (Teco). Outro fato, esse da década seguinte, que alterou a trama, foi o calote sofrido pelo sindicalismo nacional. Valdo foi demitido da Volkswagen, investiu o dinheiro da indenização numa campanha frustrada para vereador e acabou indo trabalhar de sócio na oficina mecânica do sogro.

No mais, pretendia-se que as histórias daquelas personagens pudessem encontrar ressonância em qualquer outro jovem, de qualquer outra época.

O público lotou os teatros em todas as apresentações do espetáculo no ABC. Muitos espectadores chegaram a assistir mais de dez vezes. Outros tantos, contemporâneos das personagens, diziam se identificar com as situações apresentadas – identificação que contou com o auxílio da trilha sonora, vocabulário, figurinos e maquiagem.

Uma das apresentações fora da região ocorreu no 17º FESTIVALE (Festival de Teatro de São José dos Campos), rendendo a crítica mais alentada que o espetáculo obteve e que será comentada a seguir.