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4.3 Os diferentes níveis de experiência do elenco e suas implicações no trabalho

4.4.1 A ciranda do elenco

Motivada por quaisquer fatores, a ciranda do elenco criava instabilidade em relação a personagens tidas como fixas na estrutura da montagem. Os dez protagonistas começavam a se delinear e, conseqüentemente, suas relações interpessoais se aprofundavam. Quando um dos intérpretes saía, sua personagem passava por transformações que alteravam o trabalho como um todo.

Foi o que se deu com a personagem Teco. Ela surgiu logo nas primeiras improvisações do ator Roger: um rapaz aidético no leito de morte recebia a visita de um amigo que não conseguia expressar seus sentimentos. Podia-se notar, na composição do ator, uma dose de revolta da personagem. Os amigos e a mãe tinham reações correspondentes a essa revolta.

Com a saída de Roger do projeto, Teco foi para as mãos de Diógenes que, até aquele momento, desenvolvera a personagem Nino, um “bicho-grilo”. Talvez por influência de Nino, o Teco de Diógenes adquiriu um jeito alienado, provocando outro tipo de reações e relações. Pois bem, Diógenes teve de sair temporariamente do grupo, passando Teco para as mãos do Ricardo, que também saiu logo depois. Ou seja, até ali, Teco já fora elaborado por três atores.

Com a perspectiva de um ensaio aberto no projeto Reflexos de Cena, e como Teco estava sem um ator que o interpretasse, Sidnei Matrone Júnior foi convidado para representar o papel naquela ocasião específica 123. O resultado foi que Teco ganhou do ator Júnior uma leveza e um exagero tão

marcantes, que esses traços permaneceram na versão final dada à personagem, que de Sidnei passou para Pitty Santana, seu intérprete até o presente momento.

Pitty era um ator iniciante quando entrou no Teatro da Conspiração, depois de Geração 80 contar com muitos meses de ensaio. E, embora Teco, sua personagem, já tivesse sido construída por tantas mãos, Pitty trouxe para ele música, sensibilidade e fragilidade capazes de interferir na trajetória de todas as outras personagens.

123 Projeto realizado pelo SESC Consolação, Reflexos de Cena consistia na apresentação de trabalhos em processo de

elaboração. Depois de exibido o trecho (normalmente dois grupos por noite), era feita uma palestra sobre um tema pertinente aos dois trabalhos e, em seguida, abria-se para debate com o público.

Há casos, porém, de personagens que são desenvolvidas do começo ao fim pelo mesmo intérprete e isso também interfere na dramaturgia, como será visto adiante. Em Geração 80 Fábio Farias criou Valdo, o sindicalista, logo nas primeiras improvisações e a personagem delineou-se aos poucos, casando, tendo filhos, perdendo o emprego ao longo do processo de improvisações. Da mesma maneira Tânia, Cássia e Edu, interpretados por Alessandra Moreira, Neusa Dessordi e Marcelo Monthesi, respectivamente. Nesses casos, as propostas da direção e da dramaturgia visavam ao aprofundamento das personagens por meio de novos conflitos e situações, que acabariam compondo a trajetória de cada um ao longo de vinte anos.

Do ponto de vista dramatúrgico, em Geração 80, a rotatividade de atores num mesmo papel gerou muitos questionamentos. Até que ponto a flutuação124 dos atores interfere na dramaturgia, seja

do dramaturgo propriamente dito, seja da equipe? O dramaturgo escreve para o ator? Levando-se em conta que são os atores que, nesse processo atual, desenvolveram as personagens, o dramaturgo consegue desvincular a imagem, e mesmo a “competência”, do ator da de sua personagem? Mesmo porque, algumas vezes, o ator pode desenvolver determinada personagem que, no futuro, será interpretada por outro. Existe um ponto do processo em que a personagem se desenvolve por si mesma, independente do ator que a criou ou que a desenvolveu? 125 Numa tentativa de refletir sobre

estas questões, em relação especificamente a Geração 80, pode-se dizer que a interferência da ciranda ocorreu em diversos níveis.

Com a substituição de um ator, o dramaturgo pode ver a personagem ganhar elementos inusitados, que só um novo ponto de vista pode trazer. Tais elementos são prontamente acrescentados ao perfil anterior e podem modificar toda uma configuração já estabelecida, seja particular, seja na relação com outras personagens. Mas o dramaturgo pode, por outro lado, ver a personagem perder características importantes ao passar para algum ator que venha trazer outro “jeito” de fazer o trabalho, ou que tenha dificuldades para interpretá-lo. Quando isso ocorre, o dramaturgo (e a equipe) pode sugerir ao novo ator a retomada de alguns pontos. Caso a orientação não surta efeito e a personagem continue tomando um rumo julgado inadequado, o responsável pelo texto pode continuar escrevendo para a personagem “anterior”, idealizada, quase como num trabalho de gabinete, contando que o processo de ensaios venha a reencaminhar a trajetória.

No primeiro caso, do ator que acrescenta novas características, fica difícil desvincular as figuras de ator/personagem, pois num processo em que o texto se desenvolve pari passu com a encenação, existe uma espécie de retro-alimentação entre ator e dramaturgo. As propostas de um interferem nas do

124 Termo usado aqui como equivalente a “rotatividade”.

outro e isso gera alterações e evoluções no trabalho. Por vezes, cenas inteiras surgem das improvisações ou workshops dos atores – caso em que a personagem parece se desenvolver por si mesma. No segundo caso, do ator com dificuldades, quando personagem e ator parecem caminhar em direções diferentes, ao dramaturgo cabe saber separar um do outro e trabalhar especificamente sobre a personagem, lançando mão das sugestões da equipe, do seu conhecimento de dramaturgia, e da estrutura fixada para o espetáculo. Há que se alcançar um desenho consistente da personagem, independente de o ator conseguir ou não cumpri-lo de acordo com as expectativas do grupo. Trechos inteiros chegam a ser escritos somente pelo dramaturgo quando não se consegue chegar a um resultado na cena.

Em geral, deve-se fugir da tentação de “adequar” o papel às possibilidades de seu intérprete naquele momento, mesmo sabendo que a personagem poderia render bem mais. Isso é muito comum, mesmo em montagens convencionais: por algum motivo o ator não consegue um desempenho “x”, então promove-se uma “facilitação” de seu trabalho por meio de cortes ou simplificações no texto e, num caso extremo, pode-se optar, simplesmente, pela eliminação da personagem.

Em Geração 80, ocorreram alguns desses casos. A personagem Marcão, que foi criada por Ricardo Coelho, nasceu com um perfil musical e descontraído. Esse perfil se manteve quando passou para as mãos de Cássio Castelan, que acrescentou a ele a camaradagem e a paixão por Carol. De suas improvisações com Renata Bonadio (Carol), surgiram cenas inteiras, já estruturadas, que foram apenas retrabalhadas dramaturgicamente.

Marcelo Monthesi criou aquela cena, já citada, no terceiro ensaio e ela permaneceu praticamente inalterada até a finalização do espetáculo - Edu e a abertura do exame de HIV, nenhuma palavra durante a eternidade de alguns minutos.

Por outro lado, a personagem Nino surgiu com Didjo Rotta, numa mistura de guru com bicho-grilo. Ao ser assumida por Emerson Santana, a personagem não saía muito do lugar, estava monótona e, às vezes, “dançava conforme a música”. Surgiu, então, a idéia de que se assumisse essa dificuldade do ator e a personagem passasse literalmente a seguir “no vai da valsa”, ou seja, a cada novo modismo, Nino se modificaria. Sendo assim, ele foi hippie, new wave, punk, yuppie e, finalmente, pastor evangélico, tornando-se uma das personagens preferidas do espetáculo. Outros casos foram resolvidos com o corte sumário das personagens.