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Abordando o tema – os ensaios

2.2 O processo colaborativo e o dramaturgo junto da cena algumas possibilidades de

2.2.3 Abordando o tema – os ensaios

Mesmo com a pesquisa inicial em andamento, pode-se começar o período de ensaios. Em geral os grupos recorrem a improvisações, começando a surgir cenas, sementes de texto, de interpretação e encenação, esboços de personagens. Outras equipes, dentre elas o Grupo Galpão e o Teatro da Vertigem, partem igualmente para a elaboração de workshops – propostas de cena mais definidas, até com certo conceito e acabamento formal. Estas cenas se constituem quase como embriões do espetáculo e não têm a provisoriedade da improvisação. São, na verdade, uma improvisação retrabalhada, pois tiveram mais tempo para sua elaboração.

É no período de ensaios que será construído o espetáculo como um todo – texto, interpretação, encenação, cenografia – e não em etapas sucessivas, como ocorre nas montagens

convencionais. Nessa etapa específica, no processo colaborativo, a palavra ensaio adquire seu valor de experimentação, tentativa, busca, estudo – mais do que de treinamento, que melhor se adequa à etapa próxima ao final da montagem, quando muitos dos aspectos já estão definidos e a repetição vai garantindo uma fixação.

Durante essa etapa, o dramaturgo poderá analisar e sugerir os encaminhamentos da cena, trabalhar os aspectos referentes ao texto ao longo do processo. Da mesma maneira fazem o diretor, os intérpretes e os demais criadores em suas áreas específicas.

Luis Alberto de Abreu em seu texto Processo colaborativo: relato e reflexões sobre um processo de criação sugere que, após a fase de pesquisa tornada comum a todo o grupo, o dramaturgo deva se encarregar de propor “uma estruturação básica de ações e personagens” (Abreu, 2003, p. 38). A essa estruturação Abreu dá o nome de canovaccio, à maneira do roteiro que, na Commedia Dell’Arte, indicava as ações do espetáculo, entradas e saídas de atores, números cômicos. 41

A partir de uma idéia do que pretende, o dramaturgo descreve detalhadamente cada cena, dando o máximo de indicações internas e externas para as personagens, suas ações e as circunstâncias da cena, sem, no entanto, escrever os diálogos – que ficarão a cargo da improvisação dos atores. O canovaccio funciona, assim, como um estímulo ao jogo oferecendo, entre outras vantagens, a oportunidade para que o grupo comece a entrar em contato com personagens e situações que poderão vir a constituir o espetáculo. Um roteiro de ações bem desenvolvido cria uma série de estímulos ao grupo que, em vez de elaborar sua personagem ou a cena a partir de um texto já pronto, pode explorar e experimentar vários caminhos, apropriando-se da criação logo nas etapas iniciais, como será exemplificado nessa dissertação quando do estudo de Um trem chamado desejo.

Nada impede, porém, que esse roteiro possa ser elaborado pelo dramaturgo numa etapa posterior, depois de uma série de ensaios, depois de algumas de suas idéias e dos outros criadores terem sido experimentadas. Quando isso ocorre, Abreu esclarece que o canovaccio

não se constitui em mera ‘costura’ das propostas do coletivo, nem uma visão particular do dramaturgo. É a resultante de todo o trabalho preparatório organizado em propostas de cenas. No canovaccio as improvisações, propostas de cena, imagens e conceitos do espetáculo, todo o trabalho anterior já aparece estruturado. (Abreu, 2003, p. 38)

Conforme ele vai sendo experimentado pela equipe, é possível que surjam outras idéias que levem à reformulação dos planos. Assim como as opiniões do dramaturgo podem mudar o rumo da interpretação e da encenação. Tudo vai depender das discussões e argumentações.

41 Canovaccio consta no Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. O verbete, apresentado como expressão

estrangeira, apresenta a pronúncia correta- canovátxio – e descreve: “Na commedia dell’arte, argumento ou esquema de ação cênica, com base nos quais os atores improvisavam”.

Assim como na criação coletiva, a discussão é uma prática fundamental no processo colaborativo. Apesar de específicas, as áreas não são estanques. Portanto, é necessária a interferência mútua para assegurar a construção da cena. Nada deve ser decidido à revelia e o voto democrático deve ser igualmente evitado. O ideal é que a discussão leve ao consenso e esse consenso é alcançado quando se tem em mente o objetivo pretendido, o projeto. Mas isso é mais fácil na teoria que na prática. Além de saber trabalhar em conjunto, é preciso ter uma boa dose de paciência e determinação, pois o excesso de timidez ou de polidez, muitas vezes, pode levar à omissão – e não há processo colaborativo sem a participação eficiente de todos. Antonio Araújo afirma que,

diferente de um tipo de teatro mais convencional, em que os limites desses papéis são rígidos, e as interferências criativas de um colaborador com outro, em geral são vistas como um sinal de desrespeito ou invasão, no processo colaborativo tais demarcações territoriais passam a ser mais tênues, frágeis, imprecisas, com um artista “invadindo” a área do outro artista, modificando-a, confrontando-a, sugerindo soluções e interpolações. Nesse sentido, uma “promiscuidade” criativa não só é bem bem-vinda a essa prática, como é, o tempo inteiro, estimulada. (Araújo, 2003, p.105).

Mais uma vez a experiência com o jogo teatral se mostra importante. Nele, o apego a um papel ou a uma cena é desestimulado. Trocam-se papéis, elabora-se uma cena que, em seguida, será improvisada por outro time, ouvem-se e elaboram-se críticas e sugestões o tempo todo, socializa-se o material trazido ou criado durante o processo, com vistas ao trabalho como um todo. 42

Da mesma forma, no processo colaborativo uma sugestão de texto, uma personagem, um gesto passam a fazer parte do arsenal do espetáculo, podendo ser questionados, modificados, apropriados por outrem – desde que com critério e com vistas ao resultado final.

Dificilmente a formação do artista nos moldes convencionais proporciona o desprendimento necessário a um tipo de trabalho em que a interferência mútua na criação é fundamental. O jogo, como um dos elementos na formação do artista de teatro, pode talvez facilitar ou tornar menos dolorosa a tarefa de abrir mão de algumas posturas possessivas em relação à própria obra.

Um outro aspecto desenvolvido nos jogos improvisacionais – e aqui fala-se especificamente das propostas de Viola Spolin – é o exercício da avaliação. Os jogadores dividem-se, basicamente, em dois grupos que se revezam: atuantes e platéia. Esta última, de modo um pouco diverso do espectador tradicional de teatro, tem a incumbência de assistir de maneira crítica à cena para depois tecer

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Sobre experiências envolvendo jogo teatral e criação de textos ficcionais recomenda-se a leitura da tese Palavras em jogo.

Textos literários e Teatro-Educação, de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo, e A criação literária e o jogo teatral, dissertação de

comentários visando ao aperfeiçoamento do trabalho. Ao analisar a cena do colega, a platéia também aprende e torna-se capaz de assimilar os comentários ao seu próprio trabalho quando for a sua vez de jogar.

Este exercício de análise e avaliação das cenas apresentadas pelo grupo é fundamental no processo colaborativo. Todos os componentes experimentam o duplo papel de criadores e de críticos, cada um lançando mão de instrumentos e recursos próprios de sua função. O olhar do dramaturgo será, então, diferente do olhar dos demais, embora todos estejam visando ao mesmo espetáculo.