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A pessoa humana é titular de direito conexo ou sui generis

No documento Pedro de Perdigão Lana O DOMÍNIO DO PÚBLICO (páginas 138-141)

5. A TUTELA DAS OBRAS AUTONOMAMENTE GERADAS POR INTELIGÊNCIA

5.5. Posição sobre as principais propostas de solução quanto à autoria

5.5.3. O autor (ou titular) é o desenvolvedor ou o utilizador

5.5.3.2. A pessoa humana é titular de direito conexo ou sui generis

Parece muito difícil coadunar a proposta anterior com a noção de autoria atual da tradição continental, por mais que ela tenha se modificado e se aproximado de uma objetivação nas últimas décadas. Ainda, desejando-se levar a sério a dominância do viés econômico da Teoria Utilitarista, o intuito de proteção do investimento para criação das OAGIAs nos direcionará, na tradição continental, para as figuras dos direitos conexos e “conexos dos conexos” (ou sui generis)596.

Esta se mostra como uma tutela mais adequada que a opção anterior para proteger o objeto da presente investigação, prezando tanto pela coerência interna do sistema quanto pelas mudanças de paradigma das últimas décadas, por não estar diretamente vinculada a quesitos como a originalidade e pertencer mais ao domínio empresarial que às artes e letras. A influência britânica no direito comunitário, que poderia empurrar o argumento para a opção da pessoa humana como autora, foi quase que suprimida pelo Brexit, significando que as regras jusautorais do Reino Unido e da União Europeia podem agora assumir dimensões

594 Também repudiando a solução do joint authorship para as OAGIAs no copyright dos EUA, com

argumentos similares, ver SAMUELSON 1986, 1221–24. Por outro lado, Ginsburg faz uma defesa dessa possibilidade principalmente para as IAs criativas parcialmente autônomas, em GINSBURG &BUDIARDJO 2019, 421–39 e 446–49.

595 D

EVARAPALLI 2018.

596 Para uma diferenciação da implementação entre ambas na prática, a partir do contexto australiano, cf.

bastante diferentes597.

Nessa opção se posiciona Jacopo Ciani598, e, demonstrando preferência pela opção

sui generis, Cock Buning, Celine Dee e José Alberto Vieira599.

A história mostrou que novos tipos de obras podem ser incluídos sem deteriorar a noção de autoria já relativamente consolidada, inclusive pela CBerna. Mas existem alguns critérios de razoável clareza para essa inclusão, e temos vários casos no passado que mostram que, ao se fugir deles, outras formas de proteção seriam mais adequadas, como a concorrência desleal, o instituto do enriquecimento sem causa ou novos direitos sui generis. Admitir que exceções ao princípio geral de autoria sejam tomadas como regra transformaria a identificação de algum valor comercial no único critério de proteção, o que significaria, em última instância, admitir, mesmo somente no nível teórico, que a tutela jusautoral poderia ser determinada por quanta pressão os lobbies de grupos de interesse conseguem exercer600.

Acatar a crítica ao ideal do autor romântico não significa afirmar que esse conjunto de ideias não teria influenciado basilarmente os sistemas de direitos de autor modernos (vide subtópico 5.3.3). É verdade que isso foi atenuado nas sucessivas reformas da sociedade informacional, e os conceitos de “autoria” e de “obras intelectuais” foram esticados até seus limites, mas disso não se decorre logicamente que estaríamos agora autorizados a romper essas últimas fronteiras. Ver o Direito de Autor como um Direito de Cultura permite até uma análise utilitarista sem que isso se resuma a termos economicistas e empresarialistas, preservando o núcleo do princípio da autoria601.

Como dissemos acima, a diversificação das tutelas e regimes é proveitosa para evitar distorções nos direitos de autor já constituídos e permitir que eles permaneçam, coerentemente, com um alto nível de proteção. Essa diferenciação não é meramente didática ou classificatória, mas cumpre um papel fundamental sobre uma perspectiva sistemática para definir o regime aplicável e avaliar se cada tipo direito é consistente com os seus objetivos602.

597 COCK BUNING 2018, 521. 598 CIANI 2019.

599 C

OCK BUNING 2018, 534; DEE 2018, 36; VIEIRA 2001, 142–43.

600 R

ICKETSON 1992, 35–36.

601 DIAS PEREIRA 2008, 160–61. 602 MOSCON 2019, 331.

A questão de atribuição permanece sob os mesmos argumentos apontados antes, embora aqui o desenvolvedor, que usualmente é quem fez o maior investimento (e será usualmente uma empresa), tenha uma melhor justificativa para ser titular, assim como ocorre em alguns direitos específicos de editor. Podemos encontrar um paralelo no direito geral de editores positivado no art. 15º da recente Diretiva MUD603, que parece ser um direito conexo ainda na margem dos clássicos (por se referir normalmente a uma obra protegida e não a um tipo de obra nova, embora possa abarcar até conteúdos não intelectuais e não protegidos pelo Direito de Autor604).

Deve-se observar que a criação de um direito conexo ou sui generis exige a positivação do novo instituto, pois eles estão restritos a uma lista taxativa (numerus clausus), embora nem sempre sejam adequadamente classificados pela lei. Se não estiver listado, o investimento terá que ser protegido genericamente pela concorrência desleal ou regras similares605. Exemplificando os efeitos concretos dessa taxatividade, Portugal não protege, como fazem outros países, fotografias ou escritos não originais. Eles também não estão submetidos ao princípio da ausência de formalidades para validade da proteção606, o que é especialmente interessante para solucionar a questão da criação tendencialmente infinita de obras607.

No âmbito da União Europeia, a criação de tais direitos precisaria ser feita em nível comunitário, pois os julgamentos dos casos Svensson (C-466/12, em 13/02/2014), C More (C-279/13, em 26/03/2015) e Reprobel (C-572/13, em 12/11/2015) pelo TJUE indicam que os estados-membros não podem criar nacionalmente novos direitos conexos ou novas categorias de titulares para eles608. Fugiria da competência legislativa de Portugal criar algum dos direitos sugeridos nessa alternativa de maneira independente.

O último ponto favorável para o caminho dos direitos conexos ou sui generis é a

603 Também sugere essa solução DÍAZ-NOCI 2020. 604 G

EIGER,BULAYENKO,&FROSIO 2016, 17.

605 B

ENTLY &SHERMAN 2018, 118.

606 SILVA 2016, 378–79 e 403.

607 Consoante sugestão de MCCUTCHEON 2013a, 601.

608 Por essa razão, direitos sui generis similares ao direito conexo de editor, criados na Alemanha em 2013

(Seções 87f, 87g e 87h do UrhG) ou pela Espanha em 2015 (na realidade, um direito de remuneração equitativa, previsto no art. 32 Ley de Propriedad Intelectual), parecem desrespeitar os precedentes comunitários supracitados. Cf. ROSATI 2016.

sua maior maleabilidade, pensando regimes específicos para OAGIAs609. Assim como se criaram limites e exceções bastante diferenciadas para o utilizador da base de dados, poderiam ser formuladas exceções de utilização adequadas a esse tipo de obra, como uma exceção ampla de mineração de textos e dados, gerando um ciclo virtuoso de aprimoramentos de inteligências artificiais. Quanto à maior liberdade para definir a duração da tutela, considerando o ciclo de vida útil nas OAGIAs (criáveis facilmente em grandes quantidades) e o tipo de ligação que o titular teria com uma obra essencialmente não- intelectual, o prazo de dois anos previsto no direito conexo do editor da Diretiva MUD parece aceitável, embora seja de se preferir a proposta similar sui generis avançada pela Alemanha no 87g, n. 2 do UrhG que fixa a duração em apenas 1 ano.

É uma questão intrigante se o direito sui generis do fabricante da base de dados poderia abarcar as OAGIAs, por serem informações, em tese, tuteláveis simultaneamente por direitos de autor. O TJCE/TJUE firmou que a concepção de bases de dados é bastante abrangente, assim como as definições de reutilização ou extração. Principalmente, estabeleceu uma bitola alargada de proteção na qual os dados devem simplesmente ter um valor informativo independente, o que poderia abarcar as OAGIA ou partes dela610. Todavia, se estivermos falando da proteção de apenas uma obra criada pela máquina, seria duvidoso e necessário observar caso-a-caso para afirmar que partes delas se qualificariam como sendo independentemente informativas. Mais importante, o Tribunal decidiu, nos casos Fixtures, que o investimento considerado para análise é apenas o referente à busca, coleta e colocação dos dados na base, não abarcando os investimentos para criação do conteúdo611, o que parece excluir investimentos para criar obras geradas por IA612.

No documento Pedro de Perdigão Lana O DOMÍNIO DO PÚBLICO (páginas 138-141)