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Outras teorias, em particular a Culturalista

2. TEORIAS DE JUSTIFICAÇÃO E EQUILÍBRIO DE INTERESSES

2.2. Teorias de Justificação do Direito de Autor

2.2.3. Outras teorias, em particular a Culturalista

Além das três principais, existem diversas outras teorias para tentar justificar a existência dos direitos de autor, mas elas geralmente acabam se encaixando como um subtipo, parte ou mistura das outras teorias principais119. Há quem defenda que, ao menos contextualmente, a PI é injustificada, argumentando por caminhos morais, econômicos ou mesmo tecnológicos120. Não parece muito profícuo nos aprofundar nelas. Porém, duas merecem mais comentários.

A primeira é a de raiz socialista/marxista, pela sua adoção no sistema soviético. Tem em sua base a legislação russa que foi elaborada seguindo os padrões originais da

115 W.F ISHER 2001, 11–14. 116 LEMLEY 2015a, 1331–35. 117 L EMLEY 2015a, 1338–44. 118 D

IAS PEREIRA 2008, 118–20; 2019a, 57; REMÉDIO MARQUES 2008, 57.

119 H

ETTINGER 1989, 47; DU BOIS 2018, 19–21.

120 Como Tom Palmer (criticando sob uma análise econômica e sob um viés moral) e John Burlow (no contexto

CBerna, o que permitiria dizer que há uma boa proximidade com a tradição continental, embora já se tenha apontado o pensamento de Locke aplicado para a PI é radicalmente diferente de uma justificação laboral por meio de Marx121. Ainda assim, como mostra Samuel Trosow, um resgate das ideias marxistas poderia ser feito para desenvolver uma Teoria Crítica da Justificação, se contrapondo às posições comercialistas122, especialmente sob a percepção de que a crítica à propriedade e à forma-mercadoria de Marx abarcam também aquelas de natureza imaterial123.

A segunda é a Teoria Culturalista/Cultural, que era anteriormente nominada por Fisher de Teoria do Bem-Estar Social, e assume outros nomes a depender do marco teórico, como a Teoria do Interesse Público Relevante, de Eduardo Leite124.

Ela se assemelha à Teoria Utilitarista na busca de um ganho social, enquanto se aproxima da Teoria da Personalidade ao entender que existe uma natureza humana e que se deve buscar o crescimento humano como um valor em si. O resultado, em nossa visão, é uma teoria formalmente utilitária, mas como uma dependência muito menor de mecanismos econômicos e com valores humanistas embuídos125. A grande diferença, aqui, é que essa busca pelo florescimento humano se dá tendo como base não o indivíduo, e sim as condições sociais que permitem esse crescimento. Exemplos são as oportunidades de engajamento artístico e cívico, sentimentos de pertencimento e elevados níveis de justiça distributiva, buscando o fortalecimento de um ambiente cultural diverso, complexo, educativo e democrático. As propostas dessa Teoria não se restringem aos direitos de PI e propõem uma mudança sistemática profunda126.

Embora os autores da Teoria Cultural convirjam um pouco mais sobre quais são os valores humanos não-individuais que devem ser preservados e estimulados, os mesmos problemas de definição de conceitos que existem na Teoria da Personalidade se refletem aqui, agravados pela dificuldade em se definir o que é cultura. Como essa perspectiva é mais

121 M OSSOFF 2012. 122 T ROSOW 2003, 234–41. 123 HILLANI 2018, 19. 124 LEITE 2004, 186.

125 Isso não significa que explicações econômicas não sejam também relevantes e vastamente utilizadas na

Teoria Culturalista, vide as contribuições da economia política e economia comportamental. Cf.

http://ccb.ff6.mwp.accessdomain.com/Maps/IPTheories.html

conectada a um papel estatal mais interventivo, existem críticas que apontam um paternalismo legal exagerado, com os riscos da ineficiência estatal e da violação dos espaços individuais127.

Essas críticas de viés anti-intervencionista são mais impactantes em países com maior tradição libertária e liberal, como os EUA. Em Portugal, a própria CRP demanda um Estado ativo e garantidor de necessidades sociais. Mais que isso, as próprias Constituições portuguesas (que já são em si um fenômeno cultural, conforme Haberle128) já tinham desde o início uma preocupação nesse sentido, mais acentuada a partir de 1933129. No texto constitucional de 1976, Jorge Miranda identificou diversos direitos culturais:

– no artigo 42º, ao garantir a liberdade de criação cultural e os direitos de autor; – no artigo 58º, alínea c), ao incumbir o Estado de promover a formação cultural dos trabalhadores;

– no artigo 70º, sobre juventude; – no artigo 72º, nº 2, sobre terceira idade; – nos artigos 73º, nº 1, e 78º, nº 1 e nº 2, alínea a), ao declarar o direito de todos à fruição e criação cultural;

– no artigo 74º, nº 2, alínea d), ao incumbir o Estado de garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados da criação artística;

– no artigo 78º, nº 2, alínea a), 2ª parte, ao incumbir o Estado de corrigir as assimetrias existentes no país quanto aos meios e instrumentos de acção cultural - no artigo 78º, nº 2, alínea b), ao incumbir o Estado de apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva nas suas múltiplas formas e expressões e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade;

– no artigo 78º, nº 2, alínea e), 2ª parte, ao incumbir o Estado de assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro;

– no artigo 90º, ao impor a coordenação dos planos de desenvolvimento económico e social com a política cultural.130

Destacou, dentre esses, alguns direitos de liberdade cultural (especialmente criação, divulgação, fruição e iniciativa) e de direito ao acesso aos bens de cultura. Os direitos de autor estão expressamente previstos no artigo 42º, n. 2, que firma ser livre a criação

127 Chamamos de paternalismo legal quando leis são utilizadas como forma de interferir na vida ou ato de uma

pessoa, contra sua vontade, sob o argumento de que aquilo é necessário para seu próprio bem ou que ele não tem realmente uma vontade livre naquela situação. Para uma definição mais detalhada do conceito de paternalismo legal, sugere-se a leitura de FEINBERG 1971. Mais recentemente, o tema foi bastante avançado por DWORKIN 2013.

128 H

ÄBERLE 2016, 22–25.

129 MIRANDA 2006, 8–10. 130 MIRANDA 2006, 16.

cultural131. Peter Haberle também identificou em Portugal essa notória aproximação entre a Constituição e a cultura, mencionando o país como caso paradigmático132.

Neste caminho, José de Oliveira Ascensão aponta que, apesar de sua transformação comercial, o Direito de Autor ainda é (e deve ser) um Direito de Cultura por excelência, apesar de ambos não se confundirem, e sim terem uma correlação importante, com o primeiro não devendo se tornar um obstáculo ao segundo133. Na jurisprudência, encontramos o acórdão do TRE de 10/07/2007, rel. António João Latas, afirmando que o CDADC, ao se referir à criação intelectual, “inscreve a obra protegida no campo da cultura e não, apenas,

no universo das transacções económicas”. Declarações similares são encontradas em

acórdãos mais recentes, como o do TRL de 09/01/2018, rel. Carla Câmara. Por fim, parece possível ver esforços por todo o mundo objetivando que essas regras voltem a ter finalidades de promoção cultural134.

Resumidamente, o cenário constitucional e doutrinário português é altamente favorável para o desenvolvimento da Teoria Culturalista, apesar de ser duvidoso se o mesmo pode ser dito da União Europeia135.

131 Há discussão doutrinária sobre a abrangência dos dispositivos sobre os direitos de autor, mas o TC já se

pronunciou extensivamente no acórdão n. 577/11 de 29/11/2011, rel. José Borges Soeiro: “A tutela da

propriedade intelectual apresenta-se, no plano da nossa Constituição, como uma tutela multifacetada. Com efeito, a propriedade intelectual é, antes de mais, propriedade privada, abrangida, portanto, no núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, nos termos do artigo 62º, nº 1, da Constituição (...) Mas a tutela dos direitos de autor não se consome na protecção que o Estado concede à propriedade. A Constituição estabelece, no capítulo II do Título respeitante aos direitos, liberdades e garantias, sob a epígrafe “direitos, liberdades e garantias pessoais”, que a liberdade de criação cultural inclui a protecção legal dos direitos de autor. (...) Trata-se da manifestação do direito ao desenvolvimento da personalidade, autonomizado, pela revisão constitucional de 1997, no artigo 26º, nº 1. A propósito da natureza complexa da propriedade intelectual, Gomes Canotilho fala num direito de troncalidade autoral com várias irradiações: como direito unitário, como direito de personalidade, como direito humano, como direito de propriedade, como direito privado, como direito de liberdade e como direito exclusivo (...)”. A questão já havia sido abordada sem tanto

aprofundamentos pelo mesmo Tribunal, p. ex. acórdãos de n. 491/2002 (julgado em 26/11/2002) e 273/2004 (julgado em 20/4/2004), sendo reafirmada depois múltiplas vezes, consoante o acórdão mais recente de n. 435/2016 (julgado em 13/07/2016). 132 H ÄBERLE 2016, 12–16. 133 A SCENSÃO 1994. 134 ASCENSÃO 2012a.

135 Embora a preocupação com a cultura europeia seja sempre declarada, na prática o tema é secundarizado

quando conflita com o mercado comum. A cultura passa, no Direito de Autor, a ser interpretada como aquilo que as indústrias culturais produzem, mesmo que seja um material de baixa qualidade com finalidade quase que estritamente comercial. Ver ASCENSÃO 2008d, 21–23; 2008b, 91.

Por outro lado, a base para se argumentar a obrigação das instituições comunitárias com a cultura europeia é sólida e antiga. O Estatuto do Conselho da Europa de 1949 (mais antiga organização político-jurídica europeia