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Nos ordenamentos nacionais, em especial o português

4. AUTORIA

4.4. O requisito de autoria humana

4.4.3. Nos ordenamentos nacionais, em especial o português

Nos âmbitos nacionais para além da União Europeia, vemos até em alguns países de common law indícios de que a autoria deve ser humana. Por vezes, com construções

390 Este processo, de n. C-453/15, na verdade tratava de questão fiscal, constando apenas esse comentário

passageiro sobre PI.

391 Case C-05/08 Infopaq International, ECLI:EU:C:2009:465., julgado em 16/07/2009.

392 Michaux, ao contrário, entende que “escolhas livres e criativas” não são o mesmo que escolhas conscientes,

e seriam possíveis para máquinas. MICHAUX 2018, 410.

393 Esse entendimento é largamente majoritário dentre os estudiosos de OAGIAs, vide os exemplos de

RAMALHO 2017a, 8; IGLESIAS,SHAMUILIA,&ANDERBERG 2019, 14; DICKENSON,MORGAN,&CLARK 2017; GUADAMUZ 2017, 11–12; COCK BUNING 2018, 528.

jurisprudenciais, como nos EUA395 e Costa Rica396 e, em outras, por determinação legal, como a Austrália397, a Sérvia398, o México399, o Brasil400 e a Comunidade Andina401 (que engloba Bolívia, Colômbia, Equador e Peru).

Em Portugal, há pouca margem para conclusões de uma autoria não-humana. Apesar da legislação não ser explícita, a interpretação doutrinária dada ao conceito de criação e criador intelectual remete ao espírito humano, e a jurisprudência parece seguir esse entendimento402. Uma verticalização na doutrina contemporânea que analise as obras geradas por computadores/inteligências artificiais ajuda a evidenciar essa informação e a introduzir o último capítulo desta investigação.

Em um dos primeiros artigos a abordar especificamente e detalhadamente os direitos de autor nas obras geradas por computador em Portugal, José Alberto Vieira defende que o ordenamento nacional (por meio dos artigos 1º e 2º, ambos no n.1, do CDADC) seguiu a CBerna ao tornar imprescindível para que exista obra protegida a autoria fosse humana, proveniente da atividade emotiva, psicológica e espiritual. Vê, nas exceções dos art. 27º, n. 1 e 11º da lei justamente a confirmação do princípio do criador no direito português. Em outras palavras, não haveria nem obra, nem autoria. Afirma, citando Brainbrige, que a atribuição do direito ao utilizador poderia ser conveniente, mas seria irrealista porque ele apenas fornece a informação com a qual o sistema informática trabalha, e que a atribuição aos programadores e engenheiros seria insatisfatória, já que eles não têm controle alguma

395 Burrow-Giles Lithographic Co. v. Sarony, 111 U.S. 53, 58 (1884).

Apesar de esse requisito ter sido reiterado em alguns casos, percebe-se que certos precedentes judiciais permitem alguma ambiguidade. Vide trecho do caso Urantia Foundation v. Maahera (114 F.3d 955), decidido pelo Nono Circuito em 1997: “The copyright laws, of course, do not expressly require “human” authorship,

and considerable controversy has arisen in recent years over the copyrightability of computer-generated works”. Esse julgamento daria a entender que a solução mais adequada para o ordenamento estadunidense seria

aquela avançada pelo Reino Unido. Para mais detalhes, ver comentários de CHRISTINA RHEE 1998.

396 Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia, Sentencia 0364-98, j. Nidia Durán Jiménez. 397 Copyright Act de 1968: Section 32, (1) e (4)

398 Закон о ауторском и сродним правима de 2004, art. 9 (1) 399 Ley Federal del Derecho de Autor de 1995, art. 12

400 Lei de Direitos Autorais de 1998, art. 11. 401 Decisíon 351 de la Comunidad Andina, art. 3

402 Ver ementa acórdão de 21/05/1992 do TRL, rel. Lopes Pinto: “III - Mas somente a obra resultante de um

esforço criador da inteligência e imaginação, do espírito humano, é protegida pelos ‘direitos de autor’”. No

mesmo sentido, posteriormente, cf. acórdão de 08/07/2004 do TRP, rel. Dias Cabral, acórdão de 16/01/2007 do TRL rel. Pimentel Marcos, e, no STJ, duas curtas menções nos acórdãos de 05/07/2012 (rel. Gabriel Catarino) e de 14/03/2019 (rel. Oliveira Abreu).

sobre o uso do programa. Por fim, lembra que o conceito legal de obra protegida não é caracterizado pelo valor econômico do bem, que não deverá ser abarcado como um critério para proteção403.

Ascensão tem uma longa história como um desbravador lusitano na crítica às transformações dos direitos de autor na sociedade informacional, em particular quanto à atenuação da bitola de criatividade (para se tutelar obras eminentemente técnicas) e ao afastamento da figura do autor e das preocupações culturais do centro do sistema, em prol de valores comerciais404. A própria noção de proteger por direitos de autor obras geradas por computador lhe soava despropositada, sendo o ponto máximo da distorção do sistema autoralista405. Há em seus textos uma forte defesa no sentido de que investimentos na economia criativa podem e devem ser protegidos, mas que é profundamente anômalo que essa função seja cumprida pelos direitos de autor, existindo a possibilidade alternativa de se recorrer aos conexos ou, mais adequadamente, aos direitos sui generis406.

Alberto de Sá e Mello reformula essa perspectiva ao criticar a defesa de um axioma da criação humana na doutrina portuguesa, pois o julga insuficiente para uma boa resposta, diante do percurso tratado por doutrina e jurisprudência de conferir proteção às obras não intelectuais. Concentra-se principalmente na percepção que o que falta nas obras geradas por computador não é simplesmente a autoria analisada avulsamente (que não se confunde com a “imputação de autoria”), e sim uma obra intelectual, pois aquela é condição da criação destas. Por outro lado, reconhece que a tendência dominante dos legisladores é seguir a posição já mais consolidada no copyright, e por isso“obras informáticas não intelectuais já passaram a ser legalmente consideradas como se fossem. Isso leva a uma progressiva superação da noção naturalista e filosófica de autoria, encaminhando o conceito para que seja apenas uma ficção legal cuja principal função é a atribuição de titularidade originária. As obras geradas por computador não seriam propriamente “obras sem autor”, mas sim obras sem autoria humana. Enquanto a criação intelectual permanece sendo um ato ligado ao

403 V

IEIRA 2001, 128–37. Minha concordância com esse último ponto me leva a divergir do caminho trilhado e conclusão alcançada por WACHOWICZ &GONÇALVES 2019, 74–76.

404 Dentre muitos textos, consideramos que essa crítica é avançada de maneira mais direta em ASCENSÃO

2008b. e ASCENSÃO 2006., com a questão da influência da União Europeia nessa transformação estando detalhada em ASCENSÃO 2008d.

405 ASCENSÃO 2008a, 21; 2006, 6. 406 ASCENSÃO 2008b, 92–93.

espírito humano, pareceria possível (embora criticável) atribuir uma tutela jusautoral se existisse uma previsão legal expressa voltada para as OAGIAs, com base na bitola da “individualidade expressiva” revelada no bem tutelado407.

Em linhas gerais, a doutrina converge para as respostas descritas acima. Dário Moura Vicente concorda com a posição de Vieira, indicando que sempre deveria haver um humano na origem da obra criada para que exista alguma proteção pelo Direito de Autor408. Tito Rendas e Nuno Sousa e Silva afirmam que não há proteção por faltar o autor nas obras criadas por computador sem intervenção humana409. Luís Menezes Leitão concorda com Ascensão e Sá e Mello410. Maria Victoria Rocha também pontua que a criação tutelada deve ser humana e, a partir de um resultado desejado pelo autor, há proteção411. Patricia Akester o faz não explicitamente, ao reiterar repetidas vezes a ligação necessária dos direitos de autor com o espírito humano, nos comentários ao art. 2º do CDADC412, assim como afirma Remédio Marques413.

Inobstante, para conclusão desse capítulo, cabe evidenciar a posição de Alexandre Dias Pereira, cuja abordagem da questão é mais pragmática e propositiva, em consideração ao interesse de proteger o valor comercial das obras geradas automaticamente. Essa pragmatismo não é acrítico, observando-se, no que tange a “propriedade tecnodigital”, a sugestão por uma transformação das fronteiras ao Direito de Autor sem que sua essência seja distorcida414. Nesse sentido, o doutrinador lembra da grande barreira que existe contra as OAGIAs no princípio dogmático da criação humana, mas que isso poderia encontrar uma solução em direitos de propriedade intelectual sui generis, como o do fabricante das bases de dados, pois esses não estariam submetidos ao princípio do criador415. Mais recentemente, reafirmou a excepcionalidade da atribuição originária do Direito de Autor português para pessoas que não o criador, sugerindo que um direito conexo como o dos editores existente

407 SÁ E MELLO 2016, 50–61. 408 V

ICENTE 2012, 252.

409 R

ENDAS &SILVA 2019, 98.

410 MENEZES LEITÃO 2018, 61 e 335. 411 ROCHA 2008, 784. 412 A KESTER 2019, 41–47. 413 R EMÉDIO MARQUES 2017, 199.

414 DIAS PEREIRA 2001a, 55:787. 415 DIAS PEREIRA 2001a, 55:405–8.

no Reino Unido poderia ser uma solução aceitável416. Ana Ramalho também defende essa última alternativa, aliada à posição do domínio público417, e era esse entendimento que adotamos ao escrever no final de 2018 sobre o tema418.