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3. O DOMÍNIO PÚBLICO

3.2. Conceituação

3.2.4. Limitações excepcionais e críticas

3.2.4.2. Críticas

Embora a doutrina internacional em sua maioria aponte a miríade de benefícios supracitada, a linha majoritária das legislações no mundo e das opiniões das instituições globais de PI não percebe o domínio público de maneira tão favorável.

Em parte, isso se dá pela influência de um lobby, já mencionada. Entretanto, a questão não se resume a isso, sendo ingênuo pensar que tudo se deve a uma conspiração das indústrias ou à imposição do poderia econômico. Os proponentes da visão maximalista dos direitos intelectuais realmente acreditam de plena boa-fé que eles são necessários para incentivar inovação e criatividade, e que estão baseados nas evidências - sem perceber a baixíssima probabilidade de que a melhor resposta regulatória para as mudanças causadas por novas tecnologias e novos contextos seja sempre um aumento da propriedade intelectual305.

É importante reconhecer que, apesar de serem escassas as comprovações definitivas, há bons indícios de que são observáveis benefícios econômicos e sociais diretamente provenientes da PI em certos setores da economia criativa e da indústria da

302 A

SCENSÃO 2012b, 263.

303 B

RANCO 2011, 142; DIAS PEREIRA 2008, 602.

304 Que já demonstrou receios com mudanças que pudessem afetar o artigo 39º, vide AEL 2016, 10. 305 BOYLE 2008, 198–201.

inovação. Essa visão reconhece que o domínio público tem uma importante função, mas que ela é subsidiária aos estímulos resultantes dos bens intelectuais e não pode ser considerada como locomotiva da criatividade/inovação. Não raramente, levantam a crítica jusnaturalista que, mesmo nos casos em que não há comprovação definitiva dos ganhos em inovação e criatividade, ainda persistiria uma motivação ética e filosófica para compensar os criadores/inventores, fundamentando-a nas Teorias de Justificação de Direito Natural306.

Alguns críticos são bastante incisivos sobre os riscos e falta de reais benefícios do domínio público para o sistema dos direitos de autor. O argumento aqui parece se centrar no fato de que uma defesa muito ardorosa do domínio público levaria à erosão dos direitos dos autores e de um possível desaparecimento de toda a indústria cultural e de entretenimento que existe em torno deles307. Há uma ligação entre esses argumentos e uma transposição rígida das análises econômicas pró-propriedade privada da “tragédia dos baldios” de Garret Hardin, sob o argumento que a apropriação privada de espaços e bens públicos gera um melhor e mais eficiente aproveitamento deles308.

Essa perspectiva de caráter acentuadamente negativo encontra raízes e respaldo em algumas visões (já ultrapassadas) no desenvolvimento do droit d’auteur na França.

Se contrapondo às ideias de Condorcet (que bebia da fonte do pensamento liberal estadunidense e buscava um equilíbrio entre a PI e o interesse social309), diversos escritores influentes como Balzac, Lamartine e Victor Hugo eram extremamente críticos da postura do governo francês em relação a uma proteção dos direitos de autor, que consideravam muito frágil quando comparada à proteção de outras propriedades. Advogavam pela rejeição total do domínio público, que consideravam uma forma de explorar injustamente os criadores intelectuais. Esta rejeição chegou a ser inclusive acatada em certa medida pela Cour de

Cassation em 28/05/1875, ao decidir que, em um conflito entre o domínio público e autores,

306 M

ERGES 2012; EPSTEIN 2010. Boyle e Lemley, apesar da suas críticas constantes e ferrenhas à PI, reiteram em quase todos seus textos citados nessa dissertação que não advogam pelo fim da PI, pois isso seria uma posição aventurosa e sem suficiente evidência.

307 Detalhando a posição dos defensores de um aumento do prazo do proteção, em especial que apontavam

riscos de subutilização (pois obras em domínio público seriam menos divulgadas) ou de superutilização (o que levaria à desvalorização das obras protegidas), BUCCAFUSCO &HEALD 2013, 12–17.

308 REILLY 2014. 309 BOYLE 2008, 31–35.

dever-se-ia sempre favorecer esses últimos310. Como já se viu, essas defesas foram largamente derrotadas, não conseguindo demonstrar suas vantagens.

Inobstante, conforme lembrado no início desse subtópico, a maior parte das críticas contemporâneas não atacam os benefícios oriundos das obras que já estão em domínio público, focando-se antes em evitar sua expansão. Mesmo nessa forma atenuada, temos de delas discordar por continuarem vendo uma contraposição excludente entre direitos de autor e o domínio público, o que é uma tese com grande influência entre os regulares e as empresas, mas com pouquíssimo respaldo na Academia311. Nos textos críticos ao domínio público, não encontramos um embasamento forte o suficiente para demonstrar razoavelmente os argumentos levantados. Pelo contrário, os estudos empíricos em geral corroboram que domínio público, particularmente quando concebido positivamente, é parte essencial do corpo de estímulos criativos do Direito de Autor312.

Mesmo a “tragédia dos baldios” não se encaixa bem para a propriedade intelectual, sendo mais comum se observar uma “tragédia dos anti-baldios”, com vários titulares de direitos exclusivos sobre o mesmo bem causando insegurança jurídica e elevados custos de transação, que tornam inviável a sua exploração313.

Dessa forma, a mais importante crítica parece ser a de que ganhos para o domínio público não necessariamente se refletem em um maior acesso de obras para a população em geral ou benefícios para o interesse público. Mesmo antes do aprofundamento da mercantilização do Direito de Autor, Luiz Francisco Rebello já notava como uma defesa do domínio público era consistentemente avançada por empresas da industrial cultural, em nome do público, mas para benefício próprio314. Isso seria uma romantização demasiadamente libertária desse instituto315, que poderia prejudicar outras formas benéficas de apropriação coletiva de bens intelectuais, como a dos conhecimentos tradicionais de povos originários316.

310 P

EELER 1999, 450–52.

311 GUADAMUZ 2014, 9.

312 EUIPO 2017; BUCCAFUSCO &HEALD 2013; ERICKSON ET AL. 2015; LEMLEY 2015a. 313 D.B.B

ARBOSA 2011a, 16.

314 R

EBELLO 1973, 595.

315 CHANDER &SUNDER 2004.

Afinal, ele é uma solução apenas para as barreiras decorrentes dos direitos de autor, e não uma regulação de todas as condições de acesso e uso317. Persistem ainda dificuldades materiais, como a existência de poucos exemplares em coleções privadas e não acessíveis ao público318, a falta de condições econômicas ou o fosso digital entre países ou grupos socioeconômicos. Podem ainda ser outros limites jurídicos, como direitos de privacidade, propriedade ou contratuais, como o único exemplar de uma obra estar em um acervo privado fechado ou a necessidade de se pagar entradas em museus. Mesmo no âmbito da PI podem ser encontradas potenciais limitações, como a utilização de direito de marcas para impedir o uso de imagens em domínio público, ou o uso abusivo de dispositivos tecnológicos de proteção319. Ou, no campo da concorrência desleal, a impossibilidade de se utilizar imagens ou símbolos no domínio público para compor a identidade visual de sua empresa, produto ou serviço de modo que cause confusão no consumidor320.

Avanços do domínio público que não sejam acompanhados de outras políticas públicas podem ser, então, pouco frutíferos 321. Caso contrário, há real risco de que sejam favorecidos apenas aqueles que já têm facilidade de busca e acesso às obras322, o que é agravado em um cenário dominado pelas Big Tech e empresas de telecomunicação em oligopólio, com poucos agentes exercendo forte controle sobre o fluxo e disponibilidade total de informações.

317 D.B.B

ARBOSA 2011a, 24; SAMUELSON 2006, 828; DUSOLLIER 2010, 8.

318 SAMUELSON 2003, 149.

319 Sobre o potencial de conflito com todos esses outros direitos, ver D

USOLLIER 2010, 43–51.

320 B

RANCO 2011, 206–7.

321 Vide a existência de pagamento de valores elevados para se obter cópias de obras em domínio público dos

arquivos públicos da cidade do Rio de Janeiro, descrita em BRANCO 2011, 266.