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Criação “tendencialmente infinita” de obras

No documento Pedro de Perdigão Lana O DOMÍNIO DO PÚBLICO (páginas 114-117)

5. A TUTELA DAS OBRAS AUTONOMAMENTE GERADAS POR INTELIGÊNCIA

5.3. Incompatibilidades com o Direito de Autor?

5.3.1. Criação “tendencialmente infinita” de obras

O que consideramos ser o elemento central de risco (e, por outro lado, de potencial) das OAGIAs é a possibilidade de se criar uma quantidade gigantesca de obras originais, em um período relativamente pequeno de tempo. Para fins de análise, podemos considerá-las até “tendencialmente infinitas”502, no sentido de exaurir a possibilidade de expressões disponíveis de certos tipos de obras.

Isso tem, inegavelmente, efeitos profundos na economia criativa. Uma inundação de obras geradas artificialmente pode não ser tão problemática para as criações consideradas obras-primas, como livros, esculturas, músicas e pinturas que ultrapassam barreiras históricas. Quando vamos ao nível mais comercial de obras cuja utilidade é mais imediata, a exemplo de trilhas sonoras de jogos, reportagens jornalísticas curtas e imagens ou

concorrencial da União Europeia. A afirmação pela desnecessidade de reforma, inclusive, contraria totalmente as conclusões do estudo da JIIP e Technopolis, que é também o mais completo dos que embasaram a avaliação: R.FISHER ET AL. 2018. Apontando a importância de elaborar políticas públicas de PI com base no desastre que foi o direito especial do fabricante, ver BOYLE 2008, 207–29.

499 A

SCENSÃO 2008b, 104–5; DIAS PEREIRA 2008, 428–29.

500 I

GLESIAS,SHAMUILIA,&ANDERBERG 2019, 9.

501 Para uma lista das críticas, ver H

UGENHOLTZ 2017. A proposta também não foi bem aceita nos EUA, cf. YU 2018.

animações feitas para apresentações empresariais, o preço baixo passa a ser um fator muito mais preponderante. Uma grande gama de artistas tem nessas atividades a sua remuneração diária, e o aparecimento de um agente artificial capaz de produzir as mesmas obras em qualidades similares mas em quantidades muito maiores pode representar um desequilíbrio brutal no mercado profissional, impedindo a entrada de novos profissionais ou mesmo expulsando muitos dos já existentes503.

Se por um lado isso favorece os usuários, que ganham uma maior variedade de opções para as suas próprias atividades, por outro é um risco para os criadores intelectuais por questões concorrenciais. Além do problema de desemprego, que já é uma preocupação característica das novas tecnologias de inteligência artificial em outras áreas504, os eventuais titulares das OAGIAs ganham uma ferramenta poderosa para promover concentrações de mercado, existindo um investimento inicial alto mas um custo de manutenção (ao que tudo indica) baixo para continuar produzindo obras e aumentando a oferta, sem ser acompanhado por um aumento proporcional de demanda. Em palavras mais diretas, a criatividade artificial pode acabar sufocando a criatividade humana505.

Não só isso, mas a maior tendência a uma quantia infinita de obras também levanta a dúvida sobre a “apropriação” do espaço comum/domínio público das ideias. Em outras palavras, um número muito grande de obras produzidas pode exaurir a quantidade de expressões possíveis de uma certa ideia em um certo meio. Embora isso pareça algo ridículo para áreas como a pintura ou o cinema, há outros campos cujas formas de expressão são por natureza finitas, limitadas a determinadas combinações de padrões, como alguns tipos de músicas, compilações ou maneiras de organizar uma base de dados.

Embora isso ainda não esteja ocorrendo, alguns eventos recentes são indicativos de possíveis tendências. Focaremos no caso do advogado Damien Riehl, com ajuda de seu colega Noah Rubin, ambos programadores e músicos. Eles afirmaram ter conseguido expressar, por meio de uma linguagem computacional registrada em um disco rígido, todas as combinações musicais possíveis dentro de um padrão que, apesar de limitado, era uma

503 Z

ATARAIN 2017.

504 KORINEK &STIGLITZ 2017. 505 MICHAUX 2018, 416.

constante em parte relevante das músicas mais ouvidas no mundo506. Em seguida, as liberaram no domínio público com apoio das licenças adequadas. Seu objetivo era questionar o caminho litigioso que o Direito de Autor estava tomando, especialmente a noção da infração por cópia inconsciente507, abrindo uma eventual linha de defesa para músicos que estivessem sendo injustamente processados508.

Contudo, essa proposta acabou se mostrando mais como um exercício de pensamento teórico e uma crítica chamativa à cultura litigiosa de direitos de autor da indústria musical. Para além das questões técnicas, com vários comentários apontando que o plano de Rubin e Riehl abarcava um espectro muito menor de combinações do que parecia inicialmente, teóricos como Andres Guadamuz e Lawrence Lessig se mostraram bastante céticos com a iniciativa, pontuando que as melodias não podem ser reduzidas à matemática por trás delas e que o resultado real poderia levar a uma quantia de infrações de obras pré- existentes que tornaria a empreitada, na forma planejada, inviável509.

Se o exemplo acima de mostrou falho nos seus propósitos, por que ele deveria gerar preocupação em relação às criações tendencialmente infinitas? Justamente porque o programa de Rubin e Riehl não era do campo da inteligência artificial, tendo natureza muito mais simples, e, além da limitação computacional da parte do software, existia uma grande barreira em relação ao hardware. A ideia que ambos tiveram poderia ser aprimorada exponencialmente por uma grande empresa de tecnologia, abarcando uma quantia muito maior de possibilidades e criando maneiras do programa reconhecer melodias já existentes, a partir de gigantescas bases de dados musicais como o Deezer ou o Spotify, e só fixar aquelas ainda não protegidas.

Todo esse subtópico deve ser lido sob a ótica de que a novidade objetiva não é, via de regra, um critério aceito para incidência da tutela jusautoral. A posição minoritária de

506 Para um exemplo similar, igualmente de crítica artística aos direitos de autor, ver o caso da suposta empresa

russa Qentis que teria registrado todas as combinações possíveis até 400 palavras, dentro de certos alfabetos. ZATARAIN 2017, 91–93.

507 Comparando o entendimento vigente sobre infrações feitas de forma inconsciente nos EUA, Reino Unido e

França, concluindo que ela é aceita pelos tribunais nos três casos, ver SUVAPAN & SIRICHIT 2019. Especificamente em relação ao plágio inconsciente na música, ver SHIGA 2016.

508 Para uma explicação mais detalhada, inclusive dos aspectos legais, indica-se a entrevista conduzida por

Adam Neely com Rubin e Riehl: https://www.youtube.com/watch?v=sJtm0MoOgiU

509 Lessig fez um breve comentário em matéria do The Atlantic sobre o caso na reportagem de MADRIGAL

Ascensão, de que não seria possível proteger a chamada “coincidência fortuita na criação” (a criação independente de obras totalmente ou parcialmente idênticas), não vingou perante a bitola mínima de originalidade no paradigma da sociedade informacional510.

Mas há um problema a mais no contexto da OAGIAs: enquanto o instituto da cópia inconsciente torna muito difícil provar que a coincidência foi de fato fortuita, para as máquinas é muito mais simples a demonstração, bastando mostrar que a obra copiada não estava na bases de dados que alimentaram a IA. O risco, que admitos ser por enquanto meramente hipotético, está na exclusão de artistas humanos da economia criativa, por medo de serem considerados infratores, enquanto as máquinas poderão ocupar esse espaço sem tantos receios.

No documento Pedro de Perdigão Lana O DOMÍNIO DO PÚBLICO (páginas 114-117)