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Benefícios culturais e comerciais

3. O DOMÍNIO PÚBLICO

3.2. Conceituação

3.2.3. Benefícios culturais e comerciais

Conforme apontado no subtópico 2.1.2, existe forte questionamento na doutrina, especialmente na linha utilitarista e cultural, se os direitos de autor (e de PI em geral) cumprem o seu fim declarado, de estímulo à inovação e criatividade. Já se apontaram, brevemente, algumas propostas alternativas ao sistema dominante vigente, como a recompensa por meio de prêmios.

Esse argumento encontra reforço ainda na desconstrução do conceito de autor romântico individualista, que será mais largamente trabalhada adiante no tópico 4.2. Afinal, a produção criativa depende de muito mais atores do que um único criador, reconhecido como o “gênio criativo”, o que é notável em uma abordagem histórica, mas também em

272 HUANG 2009, 186. Como ex., ver LANGE 2003, 478–79. Vale notar próprio Lessig diz que o CC não é

exatamente um domínio público, mas sim um “domínio público efetivo”, em LESSIG 2013, 74–75.

273 F

HIMA 2019, 8.

274 B

RANCO 2011, 202 e 267.

275 BRANCO 2011, 270. Sobre essas medidas tecnológicas de proteção e as distorções que causam no equilíbrio

obras coletivas muito relevantes nos dias de hoje, como as audiovisuais ou programas de computador. Isso é visível na participação de muitas pessoas na cadeia de produção e divulgação de uma obra, que é quase necessária para algumas categorias artísticas.

Mais importante ainda é a percepção de que a criação não se dá a partir do nada, e sim através da incorporação, adaptação e modificação de conhecimentos anteriores, muitas vezes resgatados de forma inconsciente. A criação e a produção de conhecimentos são processos, e não atos isolados, construídos em meio a um diálogo permanente com uma rede de influências. O papel da livre utilização do domínio público é evidente nesse contexto276. Essa noção pode ser mais bem compreendida com a metáfora de Newton ao afirmar que, se foi capaz de ver longe, era porque estava no ombro de gigantes277.

Quanto mais esse metafórica elevação for limitada apenas aos que já têm recursos, maior prejuízo haverá para uma economia criativa com ampla possibilidade de participação, incluindo a facilidade de entrada e capacidade de crescimento. A diminuição do valor privado e econômico de obras em domínio público de forma alguma implica uma diminuição de seu valor social278.

Nesse sentido, um reforço do domínio público e dos espaços de utilização livre aparece como uma possibilidade de buscar não só um ambiente cultural mais fértil como também uma maior eficiência no objetivo de estimular a criatividade e inovação por meio dos direitos de autor na era digital. Afinal, devolvendo à sociedade o que ela originalmente propiciou ao criador, “o principal efeito da entrada de determinada obra no domínio público

é a possibilidade de sua utilização independentemente de autorização do autor ou do titular dos direitos autorais”279.

Esse reforço se dá particularmente na criação de normas claras e precisas sobre o tema e no aparecimento de mecanismos que garantam a ampla utilização das obras em domínio público (ou dos usuários que tenham direito à utilização livre), auxiliando na solução de vários problemas de difícil análise judicial no Direito de Autor280. Esse

276 LITMAN 1990, 1007–12. 277 G

RAU-KUNTZ 2011, 8; HUANG 2009, 189–91.

278 D.B.B

ARBOSA 2011a, 5–6.

279 BRANCO 2011, 58.

movimento estimula um ciclo virtuoso de produção e distribuição de novas obras, diminuindo custos de transação e levando a um efeito de ganhos em rede e de transbordamento (spillover) em prol da inovação, aprendizagem e cultura de um país281.

Assim, autores de diferentes nacionalidades já apontaram os diferentes tipos de benefícios do domínio público para a sociedade como um todo. Uma das análises mais conhecidas é a de Pamela Samuelson, que elenca oito efeitos positivos: construção cumulativa de novos conhecimentos; imitação competitiva; criações a partir de outras obras; zero ou baixo custo de acesso à informação; acesso público ao patrimônio cultural; melhorias na educação; ganhos em autonomia e autoexpressão; aprimoramentos em certas funções governamentais; e melhorias para a democracia deliberativa282. Esta análise é complementada por Sergio Branco, ao argumentar sobre: (i) a preferência de alguns autores por outras motivações que não as imediatamente financeiras; (ii) o desenvolvimento de modelos produtivos de cooperação; (iii) o reconhecimento do uso público de obras como método de criação; (iv) a existência de um interesse geral que se sobrepõe aos privados na acessibilidade pública de algumas obras283.

Para além dos aspectos que são ganhos sociais e culturais, é possível falar ainda de ganhos econômicos e comerciais diretos da utilização do domínio público para a economia criativa284, reiteradamente demonstrado por pesquisa empíricas e pela análise econômica do direito285. Ao se falar no tema, rapidamente vêm à mente situações comuns como as adaptações de obras de domínio público na indústria cinematográfica286 (ou audiobooks e

podcasts) e a elaboração de traduções que concorrem entre si pela qualidade técnica e

fidelidade287.

De forma genérica, é possível mostrar também como qualquer empresa que trabalha com material artístico pode se beneficiar largamente das obras em domínio público, e como isso gera um efeito econômico positivo em rede. Um estudo desenvolvido no Reino Unido

281 L EMLEY 2015b, 491–92; ERICKSON 2016, 70. 282 SAMUELSON 2006, 826–27. 283 BRANCO 2011, 247. 284 D USOLLIER 2010, 14–15.

285 Com extensa revisão bibliográfica teorética e empírica, cf. E

RICKSON 2016.

286 EUIPO 2017.

em 2015 no Reino Unido mostrou que empresas que trabalham com obras audiovisuais e imagens em domínio público identificavam várias vantagens econômicas nessa escolha, que não se reduziam à economia de recursos com direitos de autor. Foram, contudo, apontadas dificuldades para conseguir encontrar material de qualidade, e se certificar com elevado grau de certeza que o conteúdo estava em domínio público, especialmente para trabalhos digitais com distribuição mundial. Museus, livrarias e arquivos apareciam como entes parceiros para suprir o desconhecimento das empresas no campo da PI288.

Além desses exemplos mais evidentes, temos alguns benefícios comerciais que ocorrem de maneira mais indireta, como o uso de programas de computador abertos por pequenas empresas com poucos recursos. Mas não só elas, pois existem grandes conglomerados empresariais de tecnologia que ganham com a maior disponibilidade de dados (p. ex., as próprias desenvolvedoras de IA), ou as que lucram com a difusão de material como livros ou vídeos, a exemplo da Google289. Um bom modelo de negócios pode tornar muito menos relevante a exploração econômica da propriedade intelectual290. A disponibilização de conteúdos abertos de qualidade para atrair grandes públicos, obtendo remuneração por meio do recurso a ads (publicidade digital), é outro modelo muito comum contemporaneamente – como mostram os youtubers ou influencers das redes sociais.

As possibilidades são muitas e por vezes fogem do óbvio. Merges notou que o domínio público não depende apenas do poder público para se expandir. Muitas iniciativas privadas, que podem ser sem fins lucrativos ou profundamente comerciais, se utilizam das possibilidades do domínio público para planejar e efetivar estratégias concorrenciais, publicitárias e de aproveitamento do engajamento dos seus consumidores291. De nossa parte, consideramos essas ações não só louváveis como necessárias, mas por si só insuficientes para alcançar um domínio público verdadeiramente sólido e seguro292. Diante da omissão do legislador, contudo, a coordenação privada pode ser a única opção de preservar o espaço comum das ideias293.

288 ERICKSON ET AL. 2015, 24–37. 289 DUSOLLIER 2015, 103. 290 S AMUELSON 2003, 169. 291 M ERGES 2004. 292 BOYLE 2008, 203–4. 293 LESSIG 2013.