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O criador intelectual e o titular de direitos como autores

4. AUTORIA

4.1. O criador intelectual e o titular de direitos como autores

A definição de quem pode ser autor e o que caracteriza essa qualidade ainda são tópicos pouco esclarecidos, tanto nos sistemas internacionais quanto nacionais de direitos de autor. Wachowicz e Gonçalves, ao analisarem a CBerna em conjunto com o guia da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) sobre essas normas internacionais, apontam que não há nesta Convenção uma definição de autor, e sim uma presunção fundamental de que basta que o nome do criador venha indicado na obra para que ele seja reconhecido como autor, com possibilidade de se provar o contrário324.

Há de se perceber que essa é, conforme apontado por Dias Pereira, uma visão funcional da autoria, e não uma visão ontológica. Essa última se alicerça em um princípio dogmático de quem pode ser o autor, também conhecido como “princípio do criador” ou “princípio da autoria humana”, cujo maior exemplo é encontrado na legislação alemã (§7 do UrhG325). O doutrinador argumenta que ela também está visivelmente presente, ainda que comportando desvios, na legislação portuguesa326.

Essa separação contrapõe o criador intelectual (autor verdadeiro, pessoa natural) e o titular originário de direitos (comumente uma pessoa coletiva), que em algumas legislações são identificados na categoria única de “autor”327. Em certas categorias de obras, como nos programas de computador, essa atribuição originária é globalmente facilitada, mas é nos sistemas de copyright, fortemente influenciados pelo instituto do work-for-hire, que há um regime que favorece a titularidade primeva das pessoas coletivas, com uma identificação

323 VIEIRA 2001, 116–18. 324 W

ACHOWICZ &GONÇALVES 2019, 28–29.

325 Detalhando a visão do princípio do criador, ver S

Á E MELLO 2016, 47–48.

326 REMÉDIO MARQUES &SERENS 2008, 225. 327 DIAS PEREIRA 2008, 436.

muito mais profunda entre o conceito de autor e de titular328.

Essa identificação também atinge em menor medidas sistemas do droit d’auteur como a própria lei portuguesa. O CDADC segue a presunção da CBerna relativa ao nome na obra em seu Artigo 27º, n. 2, mas já no n. 1, reiterando o que fixa o artigo 11º sobre titularidade, afirma que o “salvo disposição em contrário, autor é o criador intelectual da

obra”. É ambíguo, portanto, se os dispositivos que tratam o titular como autor são meras

exceções à regra, ou se aqueles são também autores em sentido jurídico.

Uma interpretação da lei significaria uma unidade entre autoria e titularidade de direitos, pois nos casos legalmente determinados seria possível que o criador intelectual não fosse o autor. Tal regime de titularidade originária para outros que não o criador intelectual é reforçada nas Proteções Jurídicas de Programas de Computador (PJPC, DL n. 252/94) e de Base de Dados (PJBD, DL n. 122/2000), criando uma presunção que facilita a apropriação pela empresa ou empregador, respectivamente, no artigo 3º, n. 2 e 3 e no artigo 5º, n. 2 e 3. Por outro lado, os artigos específicos que tratam sobre atribuição originária (como os artigos 14º, n. 3, 19º, n. 1 e, principalmente, 32º, n. 2 do CDADC) são mais cuidadosos e fixam que o direito de autor é atribuído à entidade coletiva, sem expressamente nomeá-la como autora. Em razão disso, coube à doutrina e à jurisprudência tomar para si o papel de promover uma distinção entre o criador intelectual e o titular originário329 .

Adotamos a posição de Dias Pereira de que existe um princípio de autoria (humana) supranacional na tradição romano-germânica, com diversas leis o mencionando expressamente. Não achamos, no entanto, que seja um princípio ontológico motivado pelo direito natural, e sim apenas que é um princípio estruturante da maior parte dos regramentos internacionais e nacionais de direitos de autor, como veremos no ponto 4.4. Uma fuga desse

328 V

ICENTE 2020, 46–47; TRABUCO 2006, 52. Como dissemos antes, parece haver uma diferenciação ao menos no nível doutrinário.

329 Mencionando expressamente que autor é o criador intelectual (autor no sentido da paternidade intelectual),

e não o titular, ver, extensivamente DIAS PEREIRA 2001a, 55:274–302; 2008, 436–39; CARVALHO 1994. Caminham no mesmo sentido VIEIRA 2001, 134–37; REMÉDIO MARQUES &SERENS 2008, 226–29., embora os conimbricenses apontem que exista um sentido legal mais abrangente.

Parecem seguir esse caminho, mas sem maior clareza nesse ponto, reconhecendo também que o sentido legal do termo é mais abrangente, AKESTER 2019, 64 e 85; TRABUCO 2006, 50–51.

Do outro lado, expressamente no sentido que o autor se refere tanto ao titular originário quanto ao criador intelectual (e por vezes até o titular secundário), ver SÁ E MELLO 2016, 52–53. Essa parece ser a posição majoritária da doutrina, com outros teóricos, ainda que criticamente, indicando que a preocupação maior da lei parece ser funcional, com a titularidade dos direitos de autor. Cf. ASCENSÃO 2012b, 105; MENEZES LEITÃO

princípio exigiria um dispositivo expresso e claro nesse sentido, pois, na forma que vemos, o Direito de Autor global (e principalmente o Europeu) é primariamente antropocêntrico330. Os desvios a ele devem ser sempre interpretados como exceções necessariamente previstas em leis, sendo regras de caráter pragmático.

Essa disputa em relação à visão ontológica é central para o Direito de Autor como um todo, porque é um aspecto importante no qual não se alcançaram elevados níveis de harmonização. No âmbito internacional, a CBerna e os outros tratados de Direitos de Autor administrados pela OMPI não ajudam a esclarecer essa questão (os outros tratados, inclusive, sequer abordam a questão da autoria).

Na União Europeia, a Directiva 2004/48/CE repete a presunção da CBerna em seu art. 5º, estendendo-a aos autores de direitos conexos. As Diretivas que tratam sobre autoria (96/9/CE e 2009/24/CE) fazem uma diferenciação entre pessoa natural como autor, e pessoas coletivas como possíveis titulares.

A Diretiva 2006/115/CE parece ser um pouco mais aberta, apontando de maneira genérica que será autor o “realizador principal” de obra cinematográfica, dispositivo repetido nas Diretivas 2006/116/CE e 93/83/CEE. Mas, como previsto no texto comunitário e como comprovam as legislações austríaca e alemã, essas atribuições originárias devem ser consideradas como uma exceção ao núcleo do conceito de autor, que permanece apenas com as pessoas naturais331.