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5. A TUTELA DAS OBRAS AUTONOMAMENTE GERADAS POR INTELIGÊNCIA

5.2. Inteligência Artificial

5.2.1. Conceito

Esse subcapítulo não busca aprofundar as discussões sobre o que é a Inteligência Artificial, por esta não ser mais uma temática desconhecida mesmo para os estudiosos do direito e, principalmente, não ser o objeto da discussão. Serão selecionadas e abordadas, para além da necessária conceituação geral, apenas as questões diretamente relacionadas com o Direito de Autor.

Não há uma definição consensual de Inteligência Artificial. Isso, curiosamente, parece ser um consenso entre as fontes consultadas, decorrendo em grande parte do fato de “inteligência” ser um conceito vago, com grandes variações mesmo nos estudos sobre humanos (psicologia, biologia, neurociência, entre outros). Necessariamente, é preciso fazer uma escolha discricionária que arrisque excluir elementos relevantes ou ser demasiadamente inclusiva. Parece-nos adequado utilizar as definições atualizadas de entidades centrais do campo da PI. Isso leva a buscar definições de três instituições, respectivamente na esfera nacional, regional e internacional: Portugal, União Europeia e OMPI.

Na Estratégia Nacional para Inteligência Artificial, parte do programa INCoDe.2030, Portugal utiliza uma definição bastante próxima à originalmente avançada por McCarthy e seus colegas em 1955473, no sentido de que se trata da “área científica e o

conjunto de tecnologias que utilizam programas e dispositivos físicos para imitar as facetas avançadas da inteligência humana”474.

472 W

RITER 2019.

473 M

CCARTHY ET AL. 1955.

474 Traduzido da seção “What’s AI?” em: https://www.incode2030.gov.pt/en/ai-portugal-2030. Curiosamente,

A OMPI não se afasta muito desta conceituação. Sua definição é um pouco mais restritiva, dando exemplos das tecnologias mais comumente relacionadas ao termo:

A IA é geralmente considerada uma disciplina da ciência da computação que visa desenvolver máquinas e sistemas que possam realizar tarefas que são vistas como exigindo inteligência humana. O aprendizado de máquina e o aprendizado profundo são dois subconjuntos da IA. Nos últimos anos, com o desenvolvimento de novas técnicas e hardware de redes neurais, a IA é geralmente percebida como sinônimo de "aprendizagem supervisionada profunda de máquinas"475.

Algumas dessas tecnologias são especialmente importantes para esse trabalho, razão pela qual as definiremos conforme o glossário de um aprofundado relatório de 2019 da OMPI sobre o tema:

Aprendizado de máquina (machine learning): um processo de IA que utiliza algoritmos e modelos estatísticos para permitir que os computadores tomem decisões sem ter que programá-lo explicitamente para realizar a tarefa. Os algoritmos de aprendizado de máquina constroem um modelo sobre amostras de dados usados como dados de treinamento para identificar e extrair padrões dos dados e, portanto, adquirir seu próprio conhecimento

Aprendizado profundo (deep learning): uma abordagem de aprendizagem de máquina que tenta entender o mundo em termos de uma hierarquia de conceitos. A maioria dos modelos de aprendizagem profunda é implementada aumentando o número de camadas em uma rede neural.

Aprendizado supervisionado (supervised learning): a forma mais amplamente adotada de aprendizagem de máquinas. Na aprendizagem supervisionada, o agrupamento esperado das informações em determinadas categorias (saída) é fornecido ao computador através de exemplos de dados (entrada) que foram categorizados manualmente corretamente e formam o conjunto de dados de treinamento. Com base nestes exemplos de entrada-saída, o sistema de IA pode categorizar dados novos e não vistos nas categorias pré-definidas.

Aprendizado não supervisionado (unsupervised learning): um tipo de algoritmo de aprendizagem de máquina que encontra e analisa padrões ocultos ou pontos comuns em dados que não foram rotulados ou classificados. Ao contrário da aprendizagem supervisionada, o sistema não foi fornecido com um conjunto predefinido de aulas, mas sim identifica padrões e cria etiquetas/grupos nos quais classifica os dados.

Rede neural (neural network): um processo de aprendizagem inspirado nas estruturas neurais do cérebro. A rede é uma estrutura conectada de muitas funções (neurônios) que trabalham em conjunto para processar múltiplas entradas de dados. A rede é geralmente organizada em camadas sucessivas de funções, cada

475 Traduzido da seção “What is Artificial Intelligence” em https://www.wipo.int/about- ip/en/artificial_intelligence/faq.html.

camada usando a saída da anterior como entrada476

A União Europeia, por fim, é a mais detalhada em sua definição, motivo pelo qual merece ser adotada nesse texto. Uma primeira conceituação foi avançada na Comunicação de uma IA para Europa (COM(2018) 237 final), sendo então aprimorada pelo Grupo Independente de Peritos de Alto Nível sobre Inteligência Artificial:

Os sistemas de inteligência artificial (IA) são sistemas de software (e eventualmente também de hardware) concebidos por seres humanos, que, tendo recebido um objetivo complexo, atuam na dimensão física ou digital percecionando o seu ambiente mediante a aquisição de dados, interpretando os dados estruturados ou não estruturados recolhidos, raciocinando sobre o conhecimento ou processando as informações resultantes desses dados e decidindo as melhores ações a adotar para atingir o objetivo estabelecido. Os sistemas de IA podem utilizar regras simbólicas ou aprender um modelo numérico, bem como adaptar o seu comportamento mediante uma análise do modo como o ambiente foi afetado pelas suas ações anteriores.

Enquanto disciplina científica, a IA inclui diversas abordagens e técnicas, tais como a aprendizagem automática (de que a aprendizagem profunda e a aprendizagem por reforço são exemplos específicos), o raciocínio automático (que inclui o planeamento, a programação, a representação do conhecimento e o raciocínio, a pesquisa e a otimização) e a robótica (que inclui o controlo, a perceção, os sensores e atuadores, bem como a integração de todas as outras técnicas em sistemas ciberfísicos)477.

Adicionamos a estas definições uma última, que não é institucional. A razão desta quarta definição é que o termo “Inteligência Artificial” pode ser usado como substantivo, para se referir às máquinas/robôs, ou seja, o conjunto do suporte físico e dos programas incorporados. As três definições acima não são capazes de abranger adequadamente essa utilização linguística, mas Daniel Fagella, buscando uma conceituação mais informada, chegou à seguinte conclusão (adotada pela AIPPI478):

A inteligência artificial é uma entidade (ou conjunto coletivo de entidades cooperativas), capaz de receber informações do ambiente, interpretar e aprender com tais informações e exibir comportamentos e ações correlatas e flexíveis que ajudam a entidade a alcançar uma determinada meta ou objetivo durante um período de tempo.479

476 Traduzido de WIPO 2019, 146–47.

477 GPANIA 2019, 47. O caminho para chegar nesse conceito encontra-se detalhado em AIHLEG 2019. 478 AIPPI 2019, 2.

Isso faz com que não consideremos o uso como substantivo equivocado. Portanto, essa última definição será também utilizada nesta dissertação como sinônimo de “sistemas de IA”, “tecnologias de IA” ou “aplicações de IA”.

Após o esclarecimento sobre as palavras mais fundamentais, outro tópico exige uma conceituação mais bem delimitada para os objetivos que buscamos aqui. Trata-se da diferença entre IA forte e IA fraca. Já apontamos isso em artigo anterior480, indicando dois tipos de contraposições, que continuamos considerando hoje como as mais importantes, e mais ainda quando o intuito é analisar o Direito de Autor.

A primeira é a diferença entre um ser humano artificial (IA forte), com uma consciência e uma mente tal qual uma pessoa natural, e um ente que apenas simule essa capacidade mental, por mais parecido que seja ao mundo exterior (IA fraca). O exemplo mais famoso dessa discussão é a hipótese filosófica do “quarto chinês” de John Searle, colocado em papel pela primeira vez em 1980 no artigo “Minds, brains, and programs”. Nele, buscou-se demonstrar que computadores não poderiam inerentemente duplicar a mente humana por sua própria natureza essencialmente sintática, sem intencionalidade, enquanto várias características humanas dependem da capacidade semântica. Isso independeria do estado de evolução e capacidade de processamento da máquina, pois seria parte de sua própria natureza481.

O segundo tipo de contraposição trabalha com a ideia de uma IA estreita/restrita (narrow) e uma IA geral (general). Aqui revisamos nosso posicionamento anterior, pois apesar de “forte” e “fraca” serem adjetivos amplamente utilizados, são imprecisos e causam confusão com o pensamento de Searle. Uma IA estreita seria aquela voltada para a realização de uma ou poucas atividades específicas, conforme já avançavam Kurzweil e outros futuristas pelo menos desde a década de 80482, enquanto a IA geral seria capaz de realizar a maioria, ou mesmo todas, das atividades que um ser humano normal consegue fazer483.

480 L

ANA &FRANCO 2018, 36.

481 S

EARLE 2002.

482 KURZWEIL 1985. Essa separação só foi feita de forma mais clara por este autor em 2006, em seu famoso

livro “The Singularity is near”, incluindo também na análise as Superinteligências Artificiais, com capacidades exponencialmente maiores que as humanas. Como essas últimas ainda são mera hipótese e as dificuldades que elas apresentariam seriam de outra natureza, não serão abarcadas nessa dissertação

483 O Grupo Independente de Peritos de Alto Nível da Comissão Europeia segue essa mesma definição. Cf. AI

No caso da IA forte na concepção de Searle, o problema para os direitos de autor seria menor. Os juristas modernos do Direito de Autor reconheceram suas limitações no campo da Estética e evitaram resolver questões demasiadamente difíceis, como a pergunta sobre o que é e o que não é arte. Para efeitos práticos, um robô com consciência, intencionalidade e uma mente humana poderia ser reconhecido como autor, assim que passasse a receber o status completo de personalidade humana em outras searas do direito484. O problema a ser resolvido, portanto, será sempre em relação às IAs fracas.

Já na diferenciação de Kurzweil, os problemas de direitos de autor se estendem tanto para a IA geral quanto a IA estreita. Não é necessário que a IA seja geral para ser autônoma nos termos relevantes para o Direito de Autor, mas IAs estreitas demasiadamente simples dificilmente passarão de meras ferramentas. O âmbito de excelência para nossa análise parece ser, então, as IAs gerais fracas. Também estão incluídas IAs estreitas fracas, desde que bem avançadas e tendo como atividade especializadas a produção de obras passíveis de proteção pelos direitos de autor. O que mais importa, ao fim, é o grau de autonomia em relação ao ser humano, como se verá a seguir.

No documento Pedro de Perdigão Lana O DOMÍNIO DO PÚBLICO (páginas 107-111)