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2. TEORIAS DE JUSTIFICAÇÃO E EQUILÍBRIO DE INTERESSES

2.2. Teorias de Justificação do Direito de Autor

2.2.2. Teoria Utilitarista

A Teoria Utilitarista é a perspectiva dominante hoje na justificação da PI no mundo99. O principal conceito dessa linha é a maximização da utilidade, ou seja, a busca do maior bem para o maior número de pessoas. Essas ideias foram sistematizadas nas palavras de Jeremy Bentham e aprofundados por Stuart Mill, embora as sementes das ideias utilitaristas sejam anteriores aos dois filósofos. No campo da propriedade intelectual, ainda há raízes na arguição de Adam Smith em defesa dos benefícios provenientes de monopólios limitados100.

Esse pensamento gira em torno de uma tensão e um paradoxo: para que a sociedade possa se beneficiar, especialmente a longo prazo, é necessário que os titulares (criadores e investidores) também possam, limitadamente, excluir outros da exploração livre de suas obras/invenções. Mas essa exclusão não pode ser forte o suficiente a ponto de mais prejudicar do que beneficiar a sociedade101.

Esse desenvolvimento filosófico mais abstrato passa a ser traduzido em parâmetros mais concretos por meio de vários mecanismos, principalmente os métodos e modelos da

98 W.FISHER 2001, 22.

99 Os instrumentos internacionais e as reformas nacionais ou regionais mais recentes fazem quase sempre

menção à perspectiva utilitarista-econômica em sua justificação, sendo muito visível essa posição na legislação comunitária vigente e nos tratados no âmbito da OMPI e da OMC. Cf., de forma geral, WIPO 2008.

100 Conforme indicado e citado por MENELL 2003, 131–32. 101 HETTINGER 1989, 48.

análise econômica do direito. Argumenta-se nesse viés que a PI serve como uma solução para falhas de mercado102, e o bem da sociedade passa a ser avaliado por parâmetros econômicos. O primeiro é a maximização da riqueza, que se foca no aumento geral da capacidade de consumidores pagaram por bens, serviços e condições. O segundo é o critério de eficiência Pareto (ou, menos rigidamente, de Kaldor-Hicks), quando a realocação de recursos é capaz de fazer com que a pessoa que ganhou recursos possa teoricamente compensar a que perdeu e ainda assim terminar em um estado melhor103. A ampla adoção dessa visão por todo o mundo, acompanhando a transformação comercial da tutela jusautoral, pode ser resumida nas palavras de Stephen Breyer:

E eu acho que em um campo como o da propriedade intelectual você não pode entender a estrutura e desenvolvê-la sem conhecer os fatos sobre a indústria e as particularidades da produção, e você não pode entender a relevância desses fatos sem algum tipo de teoria econômica104

Essa é uma Teoria muito associada aos sistemas de copyright105. No sistema

britânico, complementou e serviu como contrapeso aos argumentos lockeanos, mas é na formação do pensamento jurídico estadunidense (e principalmente do founding father Thomas Jefferson106) que ela aparece com toda sua força, o que se depreende da Constituição dos EUA (art. 1.8.8) e dos posicionamentos de sua Suprema Corte107. Em razão disso, esta Teoria acabou também se refletindo intensamente nos tratados internacionais sob forte

102 Há, inclusive, na doutrina aqueles que dizem que essa é a principal finalidade dos sistemas de propriedade

intelectual, e não recompensar autores para incentivar a inovação ou criatividade. Fellmeth, por exemplo, faz isso dando prevalência ao caráter essencialmente negativo dos direitos intelectuais, apontando que no campo do copyright a finalidade é facilitar a produção de obras para que elas existam em número suficiente para beneficiar o público, não existindo requisitos qualitativos para sua proteção. Cf. FELLMETH 2019.

103 W.FISHER 2001, 9. 104 Traduzido de B

REYER 2011, 1635.

105 Mas essa diferença pode não ser, na verdade, tão profunda. Conforme aponta Sam Ricketson, comentando

estudo de Jane Ginsburg, as motivações na origem dessas duas categorias de sistemas se misturam, existindo tanto argumentos de direitos naturais como de utilitarismo nas raízes de ambas, inclusive na Convenção de Berna. As diferenças por baixo da superfície são menores do que parecem, e há uma base sólida para uma reaproximação. RICKETSON 1992, 4–5. As primeiras manifestações do droit d’auteur francês também apresentam vários elementos de caráter social e utilitarista na defesa do equilíbrio de interesses. Cf. TRABUCO

2006, 117. Essa reaproximação, mesmo a nível internacional, de fato ocorreu e é bastante visível, com as diferenças hoje sendo mais quantitativas que qualitativas. Cf. GOLDSTEIN &HUGENHOLTZ 2019, 14.

106 B

OYLE 2008, 17–41.

107 Destacando-se o julgamento Mazer v. Stein (347 US 201, 219, 1954), que claramente adota o ideário

influência desses dois países, em especial o ADPIC 108.

Uma ampla gama de autores contribuiu para que essa perspectiva se tornasse dominante109. Três, contudo, parecem se destacar como marcos teóricos históricos. Os primeiros são William Landes e Richard Posner, que escreveram juntos um dos mais influentes artigos do campo dos direitos intelectuais em 1989110, consolidada em livro de 2003 (“The Economic Structure of Intellectual Property Law”), formulando o que aparenta ser a mais detalhada explicação de uma análise econômica da PI da época111. No campo dos direitos de autor, o artigo “The uneasy case for Copyright Law”112, escrito por Stephen

Breyer em 1970, chama atenção não só pela clareza e detalhamento, mas também por mostrar o potencial crítico da análise econômica113.

A Teoria Utilitarista apresenta caminhos mais palpáveis para justificar a PI, merecendo menção expressa: (i) a teoria do incentivo, que tenta calibrar o quanto os monopólios temporários de fato estimulam os autores a criar e inventar; (ii) uma otimização dos padrões de produtividade, facilitando que potenciais criadores identifiquem com maior facilidade os bens que os consumidores desejam; e (iii) a inovação competitiva, facilitando a coordenação da atividade inventiva mesmo entre competidores e minimizando os investimentos desperdiçados114.

Todos os três caminhos apresentam falhas, e não há uma teoria que os unifique satisfatoriamente, como a dificuldade de se definir padrões de produtividade ou de realmente diminuir, e não só realocar, os desperdícios da cadeia inventiva. De forma geral, os defensores do utilitarismo o apresentam como uma forma de construir políticas públicas com base em parâmetros objetivos e passíveis de serem averiguados. Embora isso seja muito convincente na teoria, diversos obstáculos aparecem na prática. O campo da propriedade

108 ADOLFO 2009, 39–40.

109 Na doutrina portuguesa, essa perspectiva, é marcada na argumentação de REMÉDIO MARQUES 2005., embora

com alguma complementação da Teoria do Trabalho.

110 L

ANDES &POSNER 1989.

111 Sintetizando as principais ideias do livro, ver POSNER 2002. 112 BREYER 1970.

113 Há importantes autores antes destes, como Arthur Pigou, John Clark e Arnold Plant, que na década de 1920

e 30 já introduziam essa perspectiva, inclusive de forma crítica. Cf. MENELL 2003, 132. Porém, sua antiguidade faz com que guardem menos proximidade com as formulações contemporâneas.

intelectual é marcado pela dificuldade de se identificar e obter os dados dos fatores relevantes para alcançar comprovações empíricas de que os direitos atualmente existentes são de fato a melhor forma de estimular inovação, criatividade e coordenação social115.

Conforme aponta Mark Lemley, em alguns setores, como as patentes da indústria biomédica, existem indícios mais favoráveis ao sistema vigente de monopólios fortes. Mas na maioria deles os indícios são no máximos inconclusivos, e as regras adotadas de PI podem na verdade prejudicar os seus fins declarados116. Isso levou a um reconhecimento generalizado (que o teórico critica severamente) que a teoria utilitarista não é suficiente para justificar os direitos intelectuais117.

Embora reconheçamos que esse recurso ao jusnaturalismo possa ser utilizado para defender direito de exclusiva que não deveriam razoavelmente existir, concordamos com a doutrina que indica que Direito de Autor não pode ser reduzida ao funcionalismo das análises econômicas, e que há outras ferramentas próprias do método jurídico para resolver problemas complexos que apareçam, abarcando inclusive a ponderação de valores e direitos fundamentais como a saúde e a liberdade de expressão118.