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A Pessoa no Professor: a Dimensão de Vida e sua Aprendizagem

Diagrama 4 – Percurso de P3

2 REFLEXÃO E AÇÃO DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UMA PRÁTICA

2.2 PRÁTICA REFLEXIVA: UM PERCURSO CONSTRUÍDO NAS RELAÇÕES ENTRE

2.2.1 A Pessoa no Professor: a Dimensão de Vida e sua Aprendizagem

A compreensão de que a formação do professor é um percurso complexo e singular, construído ao longo de uma vida, tem impulsionado também uma diferente maneira de analisar a prática pedagógica e as problemáticas que lhe são inerentes. Nesse sentido, Goodson (1992) chama-me a atenção para a idéia de que precisamos saber mais sobre a vida dos professores, se queremos transformar a escola e o currículo. Esse autor reflete que, ao invés de centrar as pesquisas somente nas práticas dos professores, torna-se mais valioso observar o trabalho deles no contexto da vida pessoal-profissional. Em função disso, assinala:

O que afirmo, aqui e agora, é que, particularmente no mundo do desenvolvimento dos professores, o ingrediente principal que vem faltando é a voz do professor. Em primeiro lugar tem se dado ênfase à prática docente do professor, quase se podendo dizer ao professor enquanto ‘prático’. Necessita-se agora de escutar acima de tudo a pessoa a quem se destina o ‘desenvolvimento’. Isto significa que as estratégias a estabelecer devem facilitar, maximizar e, em sentido real, surpreender a voz do professor. (GOODSON in NÓVOA, 1992, p. 69).

Na linha de análise do autor sobre a vida de professores e sua relação com os processos de formação, encontram-se alguns argumentos que auxiliam no entendimento da importância de tal tipo de investigação em educação. De acordo com Goodson (1992), ao ouvir a voz desses profissionais, pode-se reconhecer que:

― os dados de suas vidas são relevantes à medida que os processos pessoais estão articulados a processos coletivos;

― o meio sócio-cultural é influente na constituição da pessoa e do profissional; ― o estilo de vida de cada um incide sobre sua prática;

― as fases de sua vida e suas decisões a respeito da profissão e da carreira são importantes no sentido de se pensar a maneira pela qual pode se realizar seu desenvolvimento profissional.

Considerando tais apontamentos, vou reforçando minha argumentação de que a reflexão materializa-se e se expressa no âmbito dos percursos singulares e idiossincráticos, mediados pelas interações, daí a necessidade de se conhecer e ouvir os próprios autores para os quais se dirigem os processos formativos.

Nessa perspectiva, Moita (1992, p. 115) elucida que “formar-se supõe troca, experiência, interações sociais, aprendizagens, um sem fim de relações. Ter acesso ao modo como cada pessoa se forma é ter em conta a singularidade de sua história e sobretudo, o modo particular como age, reage e interage com seus contextos”. Em decorrência disso, o processo de formação profissional inclui uma dinâmica que se relaciona com a construção da identidade da pessoa, movimento em que ela própria se reconhece como única ao longo de uma trajetória, porém, em contínua transformação nas interações que realiza.

É importante considerar que o referido processo de formação/transformação é complexo, pois envolve a própria consciência que a pessoa tem de si e a forma como atribui sentidos às relações sociais que estabelece, o que demanda também a compreensão de que os traços pessoais e seu sentimento de pertença a um grupo interferem na maneira como constrói sua identidade. Nesse contexto situa-se a questão da identidade profissional e, de acordo com Moita, a construção de tal identidade é espacial e temporal, atravessa a vida profissional, passando pela formação inicial e pelos diversos espaços institucionais em que a profissão se faz. Para ela a identidade profissional “é uma construção que tem a marca das experiências feitas, das opções tomadas, das práticas desenvolvidas, das continuidades e descontinuidades, quer ao nível das representações, quer ao nível do trabalho concreto” (MOITA, 1992, p. 116) Fundamental também é o entrelaçamento dessa identidade com a própria cultura profissional e o papel da profissão na vida da pessoa, bem como suas interações com outros universos sócio-culturais.

Concebo assim que a formação profissional se dá num contexto de formação global da pessoa, constituído pelas relações entre as diversas dimensões presentes no percurso de

uma história de vida. Entendo que qualquer intervenção que se refira à mudança das práticas docentes, deve levar em conta a dimensão pessoal dessa mudança.

Para Marcelo Garcia (1999), a dimensão pessoal da mudança deve ser, necessariamente, alvo de atenção se quisermos que algo realmente mude nas práticas educativas. Ao considerar, cada vez mais, que o professor possui crenças, processa informações, toma decisões, gera conhecimento prático, etc., torna-se necessário reconhecer que existe um componente pessoal e psicológico inerente aos processos de mudança. O autor relaciona tal componente às teorias implícitas ou subjetivas, considerando que um de seus pressupostos é o reconhecimento de que essas são uma agregação de aspectos cognitivos (conhecimento, metas, pensamentos, planos, expectativas, crenças) que determinam e dirigem os processos e ações da tomada de decisões. De acordo com o autor, os processos de mudança devem afetar a teoria implícita ou subjetiva dos professores, para que ocorram mudanças mais visíveis através de condutas.

Referindo-me ao meu objeto de estudo, creio que ao “ouvirmos a voz dos professores”, estando atentos aos seus percursos de aprendizagem, podemos implementar processos formativos que os auxiliem a identificar as aproximações ou não de suas teorias com as teorias científicas. Mas, para tanto, tais propostas devem também ajudá-los a confrontar, explicitar e representar seus saberes, desencadeando aprendizagem na relação com suas experiências. Inclui-se, nessas propostas, o questionamento sobre como são compreendidos os processos de aprendizagem da pessoa adulta, questão que vejo como um dos aspectos importantes que podem mobilizar processos reflexivos.

No que se refere à aprendizagem do adulto, retorno primeiramente aos estudos de Dewey (1979), quando este alerta que há diferenças entre o adulto e a criança quanto ao caráter organizador das suas atividades, que podem ou não favorecer as operações reflexivas. Segundo ele, o resultado exterior das ações é mais urgentemente necessário para o adulto e, por isso, constitui meio mais eficaz de disciplinar seu pensamento. Além disso, os fins das atividades do adulto são mais especializados do que os da atividade infantil. Na maioria dos casos, é a profissão que vai influenciar a formação do que Dewey denomina hábitos de pensamento.

Reconhecendo as especificidades da aprendizagem do adulto e sua relação com a formação de professores, Marcelo Garcia (1999) afirma que os professores têm um tipo de atividade profissional que lhes permite implicarem-se em situações formais e não formais de aprendizagem, daí a importância de explorar os modos pelos quais aprendem formas de

pensar o ensino e a aprendizagem dos conteúdos, como também pensar nas condições que facilitam sua aprendizagem.

Do levantamento bibliográfico realizado por esse mesmo pesquisador (1999) destaco alguns aspectos que, na minha concepção, incidem fortemente sobre os processos formativos e reflexivos: a aprendizagem autônoma, a andragogia e a questão referente à experiência adulta, enfatizados na seqüência:

― Aprendizagem autônoma: este tipo de aprendizagem é um dos conceitos básicos da educação de adultos, caracterizada como uma aprendizagem centrada no aluno, aprendizagem independente, auto-ensino e outros. A defesa da aprendizagem autônoma recai na necessidade de desenvolver as capacidades de inteligência crítica, de pensamento independente e de análise reflexiva. De acordo com Marcelo Garcia (1999), essa aprendizagem inclui as atividades de formação na qual a pessoa, individualmente ou em grupo, toma a iniciativa de planejar, desenvolver e avaliar suas próprias atividades de aprendizagem. Essa característica relaciona-se também com os estilos de aprendizagem pessoais, considerando que a aprendizagem autônoma é mais freqüente em pessoas com estilo de aprender mais independente, as quais tomam decisões, articulam normas e limites da atividade de aprendizagem, assim como também demonstram a capacidade de auto-gestão e de aprender com a própria experiência. Somam-se a isso, as capacidades de perceber e enfrentar obstáculos pessoais e situacionais da aprendizagem, bem como a capacidade de renovar a sua motivação. É importante dizer que a aprendizagem autônoma não é solitária e isolada; ao contrário, demanda colaboração e apoio entre todos que aprendem.

― Andragogia: denominação de uma das teorias de aprendizagem do adulto, relacionada, com freqüência, à aprendizagem dos professores. Knowles (apud MARCELO GARCIA, 1999, p. 55) a define como “a arte e a ciência de ajudar os adultos a aprender”. O autor a considera como uma ciência da educação dos adultos, constituída por alguns princípios que podem ajudar a estudar, compreender e propor processos de formação de professores: o auto-conceito do adulto evolui da dependência para a autonomia; o adulto acumula uma variedade de experiências que podem ser recursos para a aprendizagem; o adulto está mais interessado na aprendizagem a partir dos problemas do que na aprendizagem de conteúdos; os adultos são motivados para aprender por fatores internos em vez de fatores externos.

― Experiência adulta: Marcelo Garcia explicita que nem todas as experiências resultam em aprendizagem. Há experiências que podem levar a pessoa a uma “não aprendizagem”, por pensar que “já sabe”, por não ver possibilidade de resposta, por recusar-se a aprender. Em outras, o adulto pode aprender pela memorização quando interioriza algo inconscientemente, quando apenas pratica uma nova capacidade, quando adquire e armazena uma informação. Já as possibilidades que geram aprendizagem integrada e significativa levariam a pensar no que se está aprendendo (sem a exigência de um resultado visível de conduta), a aprender pela prática reflexiva (o que tem a ver com a resolução de problemas), a realizar experiências no ambiente (pela aprendizagem experimental).

No conjunto das questões que envolvem a dimensão pessoal do profissional professor, outro ponto que me provocou a pensar sobre quem é o sujeito, o qual desejamos que seja o autor de uma prática reflexiva, foi o fato de se considerar as preocupações sentidas pelos professores. Para Marcelo Garcia (1999, p. 61) “o conceito preocupação tem um papel importante na medida em que se defende que é preciso ter em conta as necessidades e exigências dos professores que se implicam em processos de mudança.” Nesse contexto inserem-se os sentimentos, inquietações, pensamentos, considerações por tarefas específicas e questões particulares. Professores principiantes, por exemplo, podem ter preocupações bastante diversas daquelas vivenciadas por professores experientes ou em final de carreira. Um dado decorrente desta análise incide na constatação de que existem etapas de preocupações pelas quais passam os professores, considerando preocupações sobre si mesmos, sobre tarefas e sobre os alunos. Pode-se inferir, por exemplo, que um professor, ao participar de um processo de formação, poderia estar mais preocupado com si mesmo, sua carreira, seu papel na organização a que pertence. Nesse caso, seria menos importante para ele imprimir seus esforços na efetivação daquilo que poderia gerar mais impactos na aprendizagem e na avaliação dos seus alunos. Em que essa hipótese pode auxiliar na análise dos processos de formação e de reflexão? Pensando sobre meu objeto de investigação, reflito sobre a possibilidade de um curso problematizar as próprias preocupações dos professores, auxiliando-os, nas diversas e complementares etapas do percurso, a conhecerem-se e perceberem como estão orientando suas atividades de ensino e o efeito que isso pode ter na aprendizagem dos alunos.

Complementando essa questão, tem-se apresentado na literatura sobre desenvolvimento profissional os estudos sobre a relação entre idade, ciclo de vida dos professores e suas características pessoais e profissionais. Destaca-se a pesquisa de Huberman (1992), o qual centrou seus estudos sobre ciclos de vida profissional dos professores na perspectiva da carreira, entendendo o desenvolvimento da mesma como um processo e não uma série de acontecimentos. Isso quer dizer que a carreira, que pode parecer linear para alguns, é composta por regressões, continuidades e descontinuidades, becos sem saída, momentos de arranque, etc. Segundo o autor, o conceito de carreira comporta uma abordagem psicológica e sociológica: “trata-se, com efeito, de estudar o percurso de uma pessoa numa organização (ou numa série de organizações) e de compreender como as características dessa pessoa exercem influência sobre a organização e são, ao mesmo tempo, influenciadas por ela” (HUBERMAN, 1992, p. 38). Esse pesquisador fixou sua atenção na docência e estudou carreiras pedagógicas de professores, buscando entender fases ou estágios de vida em

situações de sala de aula, bem como questionou qual a relação entre esse conhecimento e a literatura sobre o desenvolvimento do indivíduo na idade adulta.

Nesse universo, o autor caracterizou algumas etapas, considerando os anos de carreira que atravessam determinadas fases, as quais denomina de tendências centrais:

― Entrada na carreira (2-3 primeiros anos de ensino): esta fase é constituída pelos estágios de sobrevivência e descoberta. O profissional depara-se com a complexidade da profissão, como também é tomado pelo entusiasmo, pela experimentação, pela busca de ideais, pelo fato de fazer parte de um corpo profissional.

― Estabilização (4 aos 6 anos): no caso do ensino, esta fase significa momento de libertação e emancipação. Por já ter um conjunto de experiências, o profissional pode se afirmar perante os colegas e autoridades; a estabilização precede ou acompanha um sentimento de competência pedagógica crescente. ― Diversificação (7-25 anos): as pessoas lançam-se em experiências pessoais,

diversificando materiais didáticos, modos de avaliar, formas de agrupar os alunos, seqüência de programas, etc., ou buscam outras posições, fora da docência, como por exemplo funções administrativas. Tal fase pode também ser acompanhada por um ativismo, no sentido de tomada de consciência de fatores externos que contrariam as possibilidades de mudança, ou ainda por uma atitude de questionamento sobre si mesmo e seu trabalho (sensação de rotina ou crise existencial), gerando seu reposicionamento frente à carreira. ― Serenidade e distanciamento afetivo/Conservadorismo e lamentações (25-35

anos): representa a procura de uma situação profissional estável. No primeiro grupo (serenidade e distanciamento afetivo) encontram-se os professores entre 45 e 50 anos de idade que, após a fase de questionamento encontram-se menos vulneráveis à avaliação dos outros. Baixa-se o nível de ambição e investimento, porém, aumenta a confiança e a serenidade do professor em relação a si mesmo e à sua competência. Ocorre ainda o distanciamento dos alunos, considerando a diferença de gerações e subculturas de alunos e professores. O outro grupo (conservadorismo) é representado por professores na faixa de 50-60 anos, composta por alguns professores que se queixam sistematicamente de tudo, além de terem uma resistência mais firme às inovações, preferindo ancorarem-se no dogmatismo e na nostalgia do passado. ― Desinvestimento: a literatura sobre ciclos de vida aponta que ocorre a

libertação progressiva do investimento no trabalho, buscando-se mais tempo para a vida pessoal e para assuntos exteriores à profissão. No caso dos professores, esta etapa pode identificar três tipos de reações: pode-se ter uma perspectiva positiva frente à jubilação, caracterizada pelo interesse de se especializar, de preocupar-se com a aprendizagem dos alunos e de trabalhar em conjunto; pode-se ter uma atitude defensiva, demonstrando menos otimismo em função das experiências passadas; ou cair no desencanto com relação ao já vivido, demonstrando cansaço e podendo ser um modelo de frustração para os professores mais jovens.

Dos estudos sobre ciclos de vida e carreira, posso depreender a necessidade de melhor compreender como os professores vivem e interpretam seus momentos pessoais e profissionais, bem como as conseqüências que esses momentos podem ter na forma como desenvolvem seus próprios processos de aprendizagem e conhecimento no contexto da profissão, questão a ser considerada ao se propor estratégias formativas. Penso, por exemplo, quando um professor insere-se num processo de formação (inicial ou continuada), numa dada etapa de sua carreira, que tipo de disposição teria para refletir e qual a intensidade com que responderia às propostas formativas.

Os apontamentos anteriores oportunizam refletir que, ao se implementar processos de formação de professores, muitos aspectos estão relacionados e podem variar de pessoa para pessoa. O tratamento adequado de tais aspectos é fator decisivo para a repercussão que uma proposta de formação e de mudança possa gerar nas práticas profissionais. Ainda, as questões levantadas confirmam que não é possível compreender as atividades de formação sem que se considerem as experiências cotidianas e os problemas enfrentados pelos professores. Mostram, também, como é importante reconhecer que as experiências geram um conhecimento prático que pode ser confrontado e ampliado, porém, levando-se em conta a história, as motivações, as preocupações e os procedimentos de aprendizagem da pessoa adulta.