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Diagrama 4 – Percurso de P3

2 REFLEXÃO E AÇÃO DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UMA PRÁTICA

4.3 AS NARRATIVAS COMO FONTE DE COLETA DE DADOS

Considerando o exposto anteriormente, na presente pesquisa foram utilizados os materiais escritos realizados durante o curso de formação, nos quais são expressos a trajetória de aprendizagem, a versão que o professor imprime ao seu trabalho, o estilo pessoal de enfrentamento das questões. São documentos de expressão pessoal do professor e se tornam, utilizando-me da expressão de Zabalza (2004), um “espaço narrativo” dos pensamentos dos professores.

Assim, no presente trabalho, houve uma opção pela narrativa como ferramenta de pesquisa para compreender processos de formação de professores. Desse modo, a tomada de

decisão a respeito do tipo de delineamento metodológico de uma pesquisa envolve também as transformações paradigmáticas no campo científico. A constatação de que a relação homem- natureza faz parte de um universo de diversidades, instabilidade, incertezas e crises desencadeia rupturas com as formas tradicionais de investigação, o que possibilita questionar, cada vez mais, os critérios baseados na ciência clássica (racional e objetiva). Nas Ciências Humanas e Sociais, que sofreram significativas alterações quanto aos métodos de investigação, tal transformação tem sido construída há algum tempo, tendo em vista a insuficiência de alguns modelos de análise sobre fenômenos bastante complexos, dentre estes, a educação.

Nesse âmbito, opera-se uma guinada no campo investigativo, colocando-se a

subjetividade no contexto da produção de conhecimento, permitindo-se considerar os

indivíduos como produtores de sentido no seio da história social e coletiva. Ocorre então um contínuo avanço no que se refere ao uso de métodos diferenciados para o conhecimento dos sujeitos e das realidades sociais, considerando-se também a diversidade de finalidades que envolvem as pesquisas.

Ao buscar trabalhos, cuja metodologia se configura como “pesquisa narrativa”, algumas questões oportunizaram-me discutir possibilidades de encaminhamento para o meu trajeto de pesquisa, esclarecendo-me e confirmando a necessidade de aproximação das vozes dos professores para entender seus processos reflexivos, sem perder de vista os objetivos da investigação.

Tomando como referência o conceito de Conhecimento Pedagógico de Conteúdo, desenvolvido por Lee Shulman, Maués (2006) – um dos autores que aponta questões importantes sobre o uso de narrativas em pesquisa com professores – realizou uma investigação com professoras de Séries Iniciais, na qual procurou identificar estratégias que elas utilizam quando ensinam um conteúdo de Ciências Naturais que lhes é pouco familiar. Para isso, solicitou narrativas de práticas bem sucedidas no ensino de ciências a nove professoras. Dessa maneira, o pesquisador pediu para que as professoras falassem sobre situações de ensino, conteúdos, práticas que elas consideravam importantes e gostavam de contar para outros, com o intuito de analisar como transformavam um conhecimento precário que tinham de área em um conhecimento pedagógico de conteúdo relativamente rico. O autor conduz seu estudo por meio de “análise de narrativas” e explica que a narrativa é um instrumental metodológico que reside no campo das explicações causais do que se passa com os narradores.

De acordo com o autor, no caso do seu estudo, que tem a narrativa como coleta de dados, o ponto de partida analítico é um conceito específico definido a priori: o conhecimento pedagógico do conteúdo (PCK) e o seu problema está definido desde o início, como uma pergunta delimitada e referenciada numa literatura selecionada. O objetivo do pesquisador foi o de penetrar no discurso das professoras para compreendê-las e analisar como ensinam um conteúdo que, muitas vezes, “não” sabem.

Para Lima (2006), quando a narrativa é utilizada nessa perspectiva de coleta de dados é o narrador quem brinda o pesquisador com sua história e a submete à apreciação e ao julgamento do outro. No caso do estudo de Maués, seu papel foi de fazer o outro narrar, recortar o que foi narrado e analisar a partir de uma categoria selecionada. Segundo Lima, nesse caso, o dizer do narrador pode ou não compor o corpus de uma pesquisa, dependendo daquilo que interessa ao pesquisador. Assim, pesquisa-se o outro e o trabalho do outro. Quer dizer, no tipo de investigação narrativa realizada na referida pesquisa, o trabalho de análise se orienta “para fora”, como explicação do outro. Há, nesse trabalho, esforço e empenho para compreender o universo sobre qual o pesquisador atua como formador de professores de Ciências, encontrando algo de comum entre as histórias, algo que se considera, desde o início, comparável: o conhecimento pedagógico do conteúdo.

O que a pesquisa de Maués e a análise de Lima oportunizaram-me refletir? Que, ao propor a análise de documentos de professoras, cuja forma se constitui basicamente em narrativas de suas aprendizagens, estava, desde o início, interessada em compreender e explicar o percurso formativo dessas docentes. Ainda, buscava investigar tal trajetória à luz da “reflexão” como categoria de análise, pois a reflexão foi um eixo norteador do processo formativo. Pretendia assim analisar a contribuição dos processos formativos realizados, bem como ampliar minha compreensão sobre as necessidades de formação dos professores, os seus modos de pensar, como aprendem e como atribuem sentido àquilo que aprendem.

Outro trabalho que me oportunizou pensar sobre o tratamento metodológico a imprimir na pesquisa foi a investigação de Zabalza (2004) sobre “diários de aula”. Ao socializar sua trajetória de pesquisa com diários de professores, o autor aborda alguns aspectos sobre o uso de documentos pessoais (em que a narrativa é a forma de expressão), que auxiliam a reconhecer as potencialidades desse tipo de investigação.

Zabalza destaca, no caso de seu trabalho, os “diários de aula” como um significativo instrumento para se chegar ao pensamento do professor, pelo fato de que se trata de um recurso que requer escrever e implica refletir. Para ele, ao narrar sua experiência, o professor a reconstrói como discurso prático e como atividade profissional, pois a descrição é

perpassada por proposições reflexivas, aparecem os porquês e as estruturas de racionalidade e de justificação sobre os fatos narrados. Assim, a narração desencadeia a reflexão. Ainda, as unidades de experiência são descritas de uma outra perspectiva, possibilitando o distanciamento do sujeito que escreve sobre a ação que realizou.

Outro aspecto que me chamou a atenção, no sentido de confirmar a validade da análise de recursos que se utilizam de narrativas de professores, é o caráter longitudinal e histórico de alguns documentos pessoais. Com relação aos diários, Zabalza evidencia que estes permitem perceber não apenas o transcorrer da ação, como a evolução do pensamento dos professores ao longo do transcurso do período que cobre o que se registra diariamente. E, nesse sentido, o diário conserva a seqüência, a evolução e a atualidade dos dados recolhidos.

Ao dialogar com esse autor, vou percebendo que os documentos a serem analisados na minha pesquisa – memorial, relatos das vivências educadoras, relatos dos estágios e a síntese elaborada – poderiam permitir aproximar-me da maneira como os professores pensaram a sua prática docente no transcurso de um momento formativo, analisando os enfoques que deram ao seu trabalho, o tipo de raciocínio que construíram ao longo da experiência formativa, as mudanças de atitudes, as diferenças no padrão de atuação, etc. E, ainda, como seus processos de reflexão foram se estruturando no decorrer das narrativas.

A análise de Zabalza (2004) também se torna significativa ao apontar que sua pesquisa com os diários foi estritamente esclarecedora em contraposição à avaliativa, pois, segundo ele, não pretendeu julgar a validade nem a congruência, nem a racionalidade dos discursos dos professores, mas “explicar”, no seu sentido mais estrito de “desenrolar, desenvolver, desdobrar”, o que os diários continham. Essa afirmativa auxiliou a confirmar meu objetivo de compreender, interpretar, explicar como determinados tipos de processos formativos podem contribuir para a prática reflexiva de professores.

Em decorrência do exposto, cabe aqui a observação de Costa e Paixão (2004), ao lembrarem que, embora a narrativa seja uma construção do real que é organizada de maneira seletiva, é possível recorrer àquilo que ficou registrado e realizar novas leituras, podendo produzir novos significados, oportunizando a problematização do que já fazemos e do modo como fazemos, no sentido de construir outras maneiras de fazer e ser. Para as autoras, a escrita de diários durante percursos de formação é um meio pelo qual o aluno-professor serve- se para pensar de modo refletido e tranqüilo sobre a ação, tanto introspectivamente como de forma retrospectiva, desencadeando-se os processos de reflexão sobre a ação e de reflexão

Oportuno ainda é reafirmar que o trabalho com narrativas na pesquisa ou no ensino tem um caráter profundamente formativo. Para Cunha (2005), ao mesmo tempo em que um sujeito organiza suas idéias para o relato oral ou escrito, ocorre um processo de reconstrução de suas experiências de forma reflexiva. Dessa maneira, acaba fazendo uma auto-análise que cria novas bases para compreensão de sua prática. A partir disso, a autora enfatiza:

A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros. Tomando-se distância do momento de sua produção, é possível, ao ‘ouvir’ a si mesmo e ao ‘ler’ seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de ir teorizando a própria experiência. Este pode ser um processo profundamente emancipatório em que o sujeito aprende a produzir sua própria formação, autodeterminando a sua trajetória. (CUNHA, 2005, p. 40).

Nesse âmbito, os sujeitos atribuem sentidos às suas experiências, relacionando-as a outras e a novas idéias, compreendendo-as e ampliando-as por meio da reflexão, o que cria condições para continuidade da aprendizagem. Tendo em vista que, no Curso Normal Superior com Mídias Interativas, as narrativas configuraram-se como importantes ferramentas formativas, as quais se tornaram instrumento de coleta de dados, procurei também compreender mais suas características e significado, com o objetivo de apoiar minha análise.

4.4 O SIGNIFICADO E AS CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA COMO