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A relação entre Motivos, Intenções, Consciência e Prática

Diagrama 4 – Percurso de P3

2 REFLEXÃO E AÇÃO DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UMA PRÁTICA

2.2 PRÁTICA REFLEXIVA: UM PERCURSO CONSTRUÍDO NAS RELAÇÕES ENTRE

2.2.2 A relação entre Motivos, Intenções, Consciência e Prática

Ao situar algumas dimensões pessoais que incidem sobre a possibilidade de efetivar- se uma prática reflexiva, posso ampliar meu raciocínio no sentido de afirmar que, entre o conhecimento (processo e produto – considerado no contexto de uma atividade reflexiva) e a ação, há a mediação do sujeito que age. Gimeno Sacristán (1997, p. 33), baseado em Aristóteles, adverte que “a especificidade da natureza humana reside no ponto de que os seres humanos têm propósitos e fins”, como também somente “o comportamento voluntário com intenções merece propriamente o nome de ação”. Tendo em vista esse conceito, o autor argumenta que a ação é movida pela razão de cumprir desejos, finalidades, interesses, motivações, relacionados à vontade humana. Assim, a ação é respaldada pela intenção, na direção de se introduzir mudanças qualitativas na esfera do real. Buscar atingir um fim é o que

dá sentido para o agente, sendo a intencionalidade condição necessária para a ação consciente. E, nesse sentido, torna-se essencial interpretar a intenção ou o propósito do agente.

No caso da prática docente, é imprescindível considerar o seu agente – o professor – o qual se move a partir de interesses, finalidades, desejos, motivações, vontade deliberada que levam-no a agir. Para explicar externamente a ação, há que se considerar que ela tem um significado para quem a realiza. Por outro lado, as ações individuais empreendidas na educação fazem parte de ações coletivas, que têm um sentido na esfera de uma prática humana e social mais abrangente. São igualmente guiadas por intenções, inseridas em determinados contextos, conduzidas por objetivos e dirigidas para alguém.

Dialogando com os estudos de Gimeno Sacristán (1997), concordo que há necessidade da interação entre as finalidades dos projetos globais de educação e as vontades, intenções, motivos individuais. Dessa forma, o grau de consciência daqueles que fazem parte dos planos formais é condição para se atingir as metas propostas. Porém, é uma relação que pode ser conflitiva quando intenções, desejos, finalidades são incongruentes, pois existem motivos que satisfazem necessidades pessoais, são construtos de uma história pessoal; e outros constituem-se no conjunto da cultura, das normas sociais, das instituições, que nem sempre são conscientes para todos, para cada um e em todos os momentos. Daí a necessidade de se vivenciar essas tensões e compreender o componente dinâmico que envolve a ação.

Para o autor em foco, o componente dinâmico ou energético de uma ação é composto também por esquemas afetivos que orientam, sustentam, dão confiança e promovem a continuidade de determinadas ações, o que permite aos indivíduos criar um estilo de agir, desenvolver uma forma de realizar as mesmas ações em situações semelhantes, relacionando o “querer agir” com as suas estruturas mentais já estabilizadas. Outro ponto considerado é a possibilidade de antecipar uma ação, com uma intenção prática, visualizando o que pode ocorrer em decorrência da mesma, tendo em vista o significado que esta tem para o agente. O significado dá sentido à ação e explica seu motivo racionalmente, ainda que não seja uma explicação causal.

A referida análise sobre a importância do componente dinâmico da ação tem um impacto no que se refere à ampliação do meu entendimento sobre processos formativos e reflexivos. Um aspecto a ressaltar incide no fato de que a ação dos sujeitos é resultado das restrições físicas, sociais, legais, econômicas e psicológicas que os afetam, como também é derivada das razões desses sujeitos, dos seus mecanismos internos de escolha e decisão, nos quais se misturam crenças e motivos (GIMENO SACRISTÁN, 1997). Nesse âmbito, uma conseqüência no mundo da prática docente é o entendimento de que saber e querer são

entrelaçados. É importante refletir que aquilo que é sentido como valor e funciona de acordo com os desejos, direciona formas de pensar e conhecer. Esta questão relaciona-se com a “vontade”, entendida como função que lança a pessoa para o futuro, para iniciar algo novo, para desencadear a ação no terreno do possível e do presente, atitude já vislumbrada por Dewey (1979) como dinamizadora da reflexão.

Considerando as reflexões já expostas, é possível depreender que há necessidade de contemplar na prática docente aquilo que a ciência da modernidade, ao exacerbar a racionalidade humana na sua dimensão objetiva, deixou de lado: os sentimentos, motivos, desejos, intenções do autor da ação. No entanto, não se trata de proporcionar demasiada autoridade aos sentimentos, mas permitir a interação destes com o pensamento. Desse modo, a razão possibilita a consciência dos motivos e a reflexão sobre os valores que orientam as ações, para que se elejam prioridades na relação com a problematização das experiências. Assim, os mecanismos cognitivos, operacionalizados racionalmente, permitem realizar avaliações e juízos, o que muitas vezes fará com que alguns desejos individuais fiquem limitados em função de outros coletivamente e objetivamente desejáveis. Outras vezes, as intenções coletivas não são devidamente traduzidas pela pessoa, ou não são suficientemente vistas como necessárias e significativas, prevalecendo os desejos e motivações individuais. Sem dúvida é uma relação complexa, dinâmica e situada, que envolve a experiência, a consciência, os motivos e intenções.

Outro viés que considero esclarecedor, abordado por Gimeno Sacristán, é que os motivos podem mudar no decurso das ações. Como o autor exemplifica, um candidato a professor pode querer desempenhar uma atividade de ajuda aos colegas por carências pessoais, por desejos de posse e, após um tempo de realização, pode desejá-la por seu valor para melhorar a condição das pessoas e da sociedade. Afirma o autor: “[…] o componente dinâmico e energético da ação pode ser entendido em diferentes momentos da experiência que transcorre enquanto dura a ação. Há uma intenção prévia que desencadeia a ação e existe uma

intenção – na – ação que a mantém enquanto ela transcorre” (SACRISTÁN, 1997, p. 40).

Ocorrem também ações em que a intenção e os motivos desejados mantêm uma coerência durante todo o curso de sua realização; em outras, as ações esclarecem, descobrem ou até mesmo transformam suas intenções. Insere-se, nesse contexto, o caráter imprevisível, aberto e pessoal da ação.

Entretanto, entendendo a prática docente como uma prática social, as ações individuais também se realizam num meio cultural, permeado por diferentes grupos e objetivos diversos, marcado pela interação de ações sociais. Em educação, a intencionalidade

de uma ação leva em conta a existência de outros sujeitos, para e entre os quais se realizam as práticas educativas. Assim, os desejos individuais relacionam-se com necessidades humanas dos demais sujeitos e se orientam na forma de projetos coletivos, culturalmente compartilhados, movidos por valores e necessidades de um dado momento histórico. Dentro dessa visão, o que se espera é que, especialmente na educação democrática, seja possível compatibilizar uma intenção social-compartilhada com a particularidade da ação individual. Ainda, numa sociedade, podem aparecer utopias e projetos coletivos diferenciados, os quais podem ser eticamente conduzidos, a partir dos procedimentos de diálogo, fundamental para a criação dos vínculos sociais.

O componente dinâmico da ação, constituído pela esfera dos desejos, dos motivos e das intenções, articula-se ao plano dos valores e dos significados que orientam uma ação. Nesse sentido, a reflexibilidade é reconhecida como capacidade de utilizar a razão para esclarecer e avaliar fins pessoais e coletivos, em direção a compromissos que terão determinadas conseqüências e demandam responsabilidade no curso das ações.

Implica-se, no processo de querer realizar as ações e na execução destas, a necessidade de se pensar sobre as mesmas. Sendo assim, Gimeno Sacristán (1997, p. 48) explica que “a ação envolve compreensão e pensamento como algo indissociavelmente unido à mesma”. Significa entender o poder da racionalidade pelo fato do sujeito “dar razões” ao que se faz, justificando crenças, explicitando argumentos para si mesmo e para os outros. Se não há essas condições de motivação e de inteligibilidade, as ações tornam-se puramente mecânicas. Importa afirmar aqui que as ações carregam o componente cognitivo teórico, pois o sujeito dispõe de “estoque” de idéias que desencadeiam suas práticas, bem como recorre a componentes cognitivos externos que se ligam às suas ações.

Além disso, é importante compreender que os sujeitos também fazem um tipo de abstração de suas ações, na forma de esquemas, entendidos como uma manifestação do pensamento que permite representar, examinar, reelaborar uma ação e projetar outras parecidas. Assim, na ação docente existe um “saber fazer prático”, que se expressa na efetiva realização de alguma coisa, porém, há também um “saber fazer” como uma predisposição ou capacitação para fazê-la, porque é possível representar as ações por esquemas assimilados e elaborados. Reside, nesse processo, a possibilidade de transmissão de uma teoria pedagógica, resultado da experiência acumulada de outros agentes, a qual pode ser narrada, comunicada, transmitida e reelaborada em novas situações. No entanto, essa reelaboração depende das condições concretas de uma dada prática e dos motivos para agir.

Sendo assim, o mesmo autor assevera que o repertório de esquemas de ação disponível constitui um depósito da experiência teórico-prática, a qual está em constante processo de reelaboração, facilitando o transcurso ordenado da atividade de ensino e aprendizagem. O saber fazer ordena e regula a ação, somando-se vários esquemas práticos ordenados e flexibilizados de acordo com as situações. No entanto, esse saber articula-se a esquemas cognitivos, como também aos motivos e intenções.

Como se viu, a relação entre os componentes dinâmicos, cognitivos e práticos do sujeito propõe que se pense como tal processo se efetiva na prática docente e em momentos de formação. Levando em consideração minha investigação sobre processos formativos e reflexivos, é possível questionar e discutir sobre como a reflexão articula ou não essas dimensões, tendo em vista que podem ter pesos ou ênfases desiguais, dependendo das intenções, do envolvimento do sujeito num percurso formativo, da imposição de determinados objetivos, da experiência prévia de cada um, das interações, do contexto institucional, dentre outros fatores.

2.2.3 O(s) Saber(es) do Professor: Compreendendo a Diversidade e a Totalidade no