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O Lugar e o Papel da Teoria na Maneira de Descrever e Analisar a Prática

Diagrama 4 – Percurso de P3

2 REFLEXÃO E AÇÃO DOCENTE: A CONSTITUIÇÃO DE UMA PRÁTICA

5.2 ENTRE NARRATIVAS E OLHARES: POSSIBILIDADES DE MANIFESTAÇÃO DOS

5.2.4 O Lugar e o Papel da Teoria na Maneira de Descrever e Analisar a Prática

Ao buscar analisar a contribuição dos processos formativos desenvolvidos no CNSMI para o processo reflexivo dos professores, a questão referente ao papel da teoria tornou-se um dos elementos-chave a ser melhor compreendido. Quando as professoras investigadas, já no seu memorial, colocavam a expectativa de que o referido curso pudesse auxiliá-las na prática, uma vez que a formação no curso de Magistério havia sido muito “teórica”, sinalizavam para a conhecida “dicotomia teoria-prática”. A referida questão, tão discutida nos trabalhos de formação, centra-se na problemática de que existem diferenças e contradições entre teoria e prática, daí a necessidade de aproximar esses pólos, para que os cursos tenham sentido para o trabalho cotidiano de ensinar.

No entanto, as investigações e a literatura da área têm nos apontado que existem diferentes âmbitos de conhecimentos que fazem parte do repertório dos professores, os quais se constituem em teorias pessoais e práticas, em conhecimentos estratégicos, teorias usadas em contexto de ensino, esquemas de ação, teorias compartilhadas, dentre outros12. Ainda, os saberes do professor adquirem sentido quando contextualizados num conjunto concreto de práticas escolares e abrangem uma diversidade de problemas, questões, objetos, diretamente relacionados com o próprio trabalho. Dessa forma, são saberes plurais, compósitos, heterogêneos que englobam atitudes, competências, habilidades e não se limitam a conteúdos bem circunscritos, totalmente dependentes de conhecimento especializado (TARDIF, 2002).

Nessa direção, a análise de Gimeno Sacristán (1997) despertou-me para o significado cultural da produção, uso e manutenção do conhecimento, bem como sobre as relações que se

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constroem entre teorias e práticas. Nessa visão, a relação teoria-prática se constitui num movimento entre componentes cognitivos de uma determinada cultura e os comportamentos práticos na mesma. Essa concepção é interessante porque contribui para analisar em que contextos são produzidas as relações entre teoria e prática e quais os agentes que nelas estão envolvidos. Dito de outro modo, os conhecimentos são produzidos, assimilados e transmitidos em dados contextos, em função de intenções e necessidades dos seus agentes, gerando determinadas experiências. Assim, são compartilhados e podem constituir-se em acúmulo para experiências futuras.

Nesse âmbito, o conhecimento do professor envolve a cultura inter-subjetiva, composta por um conjunto de conhecimentos produzidos a partir da experiência individual, pessoal e compartilhada, a qual gera formas de saber e fazer, padrões sociais como rotinas e regras, valores, desejos e expectativas e outros, que se estabilizam e até se cristalizam no funcionamento da prática educativa. Porém, esse conhecimento também se relaciona com a cultura objetiva que diz respeito a conhecimentos acumulados, a esquemas de explicação mais elaborados e discussões sobre formas de compreender os objetos de conhecimento. Para Gimeno Sacristán (1997), a cultura objetiva compõe-se de formas codificadas de conhecimento, que podem ser assimiladas intelectualmente. Nesse caso, a informação cultural inclui a ciência, composta de história, dados e teorias, entendidas como artifícios para compreender as codificações das informações e simulações para entender a realidade.

A partir dessa análise é que pude refletir sobre a necessidade de compreender como a teoria científica, concebida como parte da cultura objetiva, como informação codificada e, de certo modo, externa ao professor, foi relacionada com a experiência e interferiu nos processos de análise e descrição da prática, constituindo-se num novo conhecimento, durante o curso realizado.

Considerando os percursos investigados, é possível analisar qual foi o “papel da teoria” nos três contextos. No caso de P1 a teoria é mediadora e tem papel propositivo, auxiliando-a na identificação de problemas e na constatação de quadros conceituais que lhe permitem construir um processo de ressignificação da sua prática. Ao realizar as vivências e o estágio (docências reflexivas, pesquisa-ação, inserção-investigação na comunidade), a professora considera como pontos de partida, a cada vivência, problemas observados e interpretados na atividade anterior. As problemáticas abordadas desde a 1ª Vivência impulsionam a análise sobre sua própria prática e conduzem a uma ação diferenciada da experiência que já vivia e considerava, muitas vezes, mal sucedida ou rotinizada. Ilustrativo disso é a sua determinação em melhor compreender e realizar algumas ações, como: trabalhar

com projetos interdisciplinares, trabalhar com os diferentes níveis de aprendizagem e efetivar trabalho em grupo, entender o conceito de afetividade nas relações de ensino, dentre outros. Além disso, demonstra preocupação constante com o significado que o conteúdo escolar possa ter para os alunos, como estes podem ter uma aprendizagem efetiva e como ela pode colocar-se como mediadora entre conhecimento científico e a realidade dos mesmos.

Assim, a professora acrescenta novos elementos teóricos ao que já sabia, transformando seu quadro conceitual e orientando seu planejamento para o ensino. Na condução da prática proposta, mantém atitude de escuta e observação constante, o que promove avanços, como também a constatação de novas necessidades. Para tanto, é possível verificar que esse processo se amplia e sistematiza-se quando a professora se distancia da ação para descrevê-la e analisá-la (reflexão sobre a ação), momento retrospectivo realizado nos relatos, na discussão/socialização com tutor, colegas do curso, docentes (durante as videoconferências), no trabalho on-line com professores-assistentes e na escrita da narrativa, realizada após cada vivência e estágio.

O citado momento retrospectivo impulsiona sua analise teórica. Ao mesmo tempo em que dialoga e compartilha conhecimentos com diferentes sujeitos e diversas fontes, P1 confronta informações, articulando o conhecimento científico abordado nos módulos impressos, nas videoconferências, nas leituras realizadas em seções de tutoria a um interesse vivo, proveniente das experiências anteriores. O referido movimento estimula o trabalho de reflexão.

No caso de P2, a teoria também é provocadora, orientadora e esclarecedora quanto aos aspectos inerentes à prática de ensinar e aprender. O que se pode observar é que P2 explicita como preocupação “a aprendizagem de novas maneiras de ensinar”, centrando seu raciocínio nas “dificuldades dos alunos em aprender”. Esse é o objetivo que norteia o desenvolvimento de suas vivências e do estágio. A teoria parece servir para justificar aquilo que constata em relação aos alunos e, nesse sentido, também parece ter um peso maior na condução de sua análise sobre seu trabalho, especialmente nas primeiras vivências que realizou. Porém, como já visto, a partir da primeira etapa do estágio um aspecto se diferencia: é o fato dela estar mais atenta e perceptiva à sua prática de ensino e à reação dos alunos, o que lhe permite apontar novas necessidades que vão embasar as demais vivências.

Interpreto que, ao desenvolver o exercício de pesquisa-ação, na 3ª Vivência, P2 faz um uso ampliado do referencial teórico, pois nesse momento, precisou cruzar dados observados, ouvidos e lidos para resolver uma situação problemática e apresentar resultados. Nessa dimensão, a teoria parece ter ficado ainda mais próxima da experiência que enfrentava,

estabelecendo-se uma relação da teoria na prática e a partir da mesma. Essa articulação teórico-prática reflete-se nos seus próximos passos, porque se torna mais evidente o impacto dos conhecimentos abordados no curso na inserção na comunidade – 4ª Vivência e no estágio final. Demonstrativo disso é o fato da professora expor, com clareza, o motivo de suas propostas, fundamentando-as no referencial, como a reflexão que realiza sobre metodologia de projetos, bem como a relação que estabelece entre cultura e festa junina na 2ª etapa do estágio, apresentando uma nova significação teórica e prática em relação ao seu trabalho.

No percurso de P3, a teoria também contribuiu para que ela direcionasse seus objetivos e suas ações, ao mesmo tempo em que possibilitou interpretações que auxiliaram a construir novos significados para um conjunto de saberes, resultante de toda a sua trajetória pessoal-profissional. Analiso que a professora apóia-se no referencial teórico para fazer contrastes entre o ensino que denominou de tradicional e um tipo de ensino mais significativo, voltado para a cidadania e para a vivência do aluno. A cada etapa, P3 amplia o modo de analisar suas vivências, realizando sínteses teórico-práticas, pois retoma o que experimentou na relação com as metas, interpreta teoricamente, discute as possibilidades de rupturas com o ensino tradicional no âmbito da ação e aponta uma nova compreensão para o tema que aborda.

Nessa dimensão, é importante a maneira como P3 incorpora a teoria, de forma que a mesma não se torna uma imposição dogmática, mas adquire sentido na relação com um saber prático. Além disso, relaciona os temas trabalhados no curso de modo articulado, numa seqüência lógica e ordenada, num todo que se concretiza na sua compreensão teórico-prática. Isto é, ao ter consciência das mudanças na sociedade e na escola, argumenta sobre a necessidade de um ensino mais significativo e clarifica que é preciso ter intenções e objetivos para efetivar a mudança. Nessa direção, assume princípios fundamentados na sua prática e analisados teoricamente. Então, aponta propostas teórico-metodológicas, as quais vivencia e, novamente apoiada na teoria, discute-as, não de forma isolada, mas numa articulação entre saberes pedagógicos e saberes das áreas específicas do conhecimento. É interessante a forma como cita os autores, reconhecendo-os na sua prática, concordando com os mesmos ou enxergando-os como se eles estivessem avalizando sua experiência. Também se apóia na literatura para avaliar ou rever sua postura no ensino.

Esse movimento de pensamento de P3 é bastante claro na sua Síntese Elaborada de Curso e, nesse trabalho, é possível verificar que sua idéia de inovação não se restringe no anúncio de qualquer tipo de mudança. Interpreto que ela entende a necessidade do “novo” como parte de uma relação complexa entre questões sociais, políticas, econômicas,

educacionais e outras. É necessário refletir que tal relação se desenvolve historicamente e traz elementos de mudança que, certamente, se movimentam numa perspectiva de futuro pela ação transformadora dos sujeitos. O modo como P3 se posicionou no final do seu percurso manifesta essa concepção de inovação, sem negar que a tradição traz o gérmen da mudança, bem como é fonte de reflexão.

Torna-se importante analisar que o movimento teórico-prático proposto no CNSMI permite, de maneira diferenciada nos três casos, um posicionamento consciente das professoras em relação à prática e ao seu próprio desenvolvimento pessoal-profissional. Há indício de que o referido processo oportuniza a consciência de finalidades que são inerentes ao processo de ensino e da necessidade de prever, propor, observar, decidir, rever, avaliar, encaminhar as ações e assumir responsabilidade sobre as mesmas, entendendo que a prática é conseqüente.

Depreendo assim que os percursos sinalizam a possibilidade de efetivar-se um diálogo teórico-prático em contextos de formação, considerando que nem todas as ações devem submeter-se ao conhecimento científico, mas é importante a idéia de que a ciência deve ser transformada em instrumento de pensamento, tornando-se ferramenta para a reflexão retrospectiva e para a projeção de novas ações. Sendo assim, quando a reflexão é guiada pelo conhecimento científico, ela se amplia e se caracteriza uma reflexividade na sua forma mais elaborada, que acontece pela interação entre ciência, conhecimento pessoal e conhecimento compartilhado, na relação com as ações e práticas sociais (GIMENO SACRISTÁN, 1997).