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A polêmica envolvendo os crimes de perigo abstrato

Como dito anteriormente, o processo de modernização do Direito Penal se caracteriza, dentre outros aspectos, pela ênfase na tipificação de crimes de perigo abstrato, em detrimento dos tradicionais crimes de dano ou de perigo concreto, de tal forma que essa tipologia é vista como a estrutura delitiva própria dos crimes contra bens jurídicos supraindividuais.

728 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. t. I. p. 411. Contudo, o autor registra que há casos em que a aptidão da conduta para produzir o resultado indesejado só estará demonstrada com a efetiva colocação em perigo do bem jurídico.

729 Ibid., p. 408.

730 OLIVARES, Gonzalo Quintero. Los delitos de riesgo en la política criminal de nuestro tiempo. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; NEUMANN, Ulfried; MARTÍN, Adán Nieto (Org.). Crítica y justificación del

derecho penal en el cambio del siglo: el análisis crítico de la escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de

Castilla-La Mancha, 2003. p. 244 e 246.

731 D’AVILA, Fabio Roberto. Teoria do crime e ofensividade. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. In: D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 78.

Frente à atual preferência do legislador penal pelos crimes de perigo abstrato,

permanece atual a antiga polêmica sobre a legitimidade dessa modalidade típica732. Do ponto

de vista crítico, salienta-se a possibilidade de que os crimes de perigo abstrato, sob o pretexto de prevenir resultados lesivos, acabem por reprimir a mera desobediência do agente a um preceito normativo, não raramente de cunho administrativo, funcionando o Direito Penal

como reforço às atividades estatais de gestão733.

O discurso de resistência aos crimes de perigo abstrato é uma das principais contribuições dos membros da Escola de Frankfurt. Para Hassemer, a opção do legislador pelos crimes de perigo abstrato visa permitir que o órgão julgador penalize com maior facilidade, uma vez que basta a comprovação da prática da conduta proibida para que se imponha a condenação, dispensando-se a prova do prejuízo e, por consequência, do nexo de causalidade. Assim, os crimes de perigo abstrato ampliam o âmbito de aplicação do Direito Penal ao reduzirem os requisitos para a incidência da norma penal, bem como as

possibilidades de defesa.734

Noutro sentido, Schünemann pondera que as leis penais preveem crimes de perigo abstrato desde a época da Ilustração, “de modo que só do ponto de vista quantitativo é

acertado qualificá-los de ‘forma delitiva da era moderna’”735. Ademais, para o autor, os

crimes de perigo abstrato são menos problemáticos do que os crimes culposos, já que, nesses últimos, a norma incriminadora não descreve a conduta proibida, mas tão somente o resultado, cabendo ao julgador complementar o tipo penal. Nos tipos de perigo abstrato, por sua vez, o legislador pode e deve delimitar melhor a conduta proibida, descrevendo-a com clareza.736

Por outro lado, ainda segundo Schünemann, a sociedade industrial atual se caracteriza pelo extraordinário incremento das interconexões causais, que não podem ser

732 Por influência da doutrina italiana (Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luis Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000), a tese da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato por violação aos princípios da ofensividade, culpabilidade e intervenção mínima foi acolhida por parte da doutrina brasileira (Cf. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002).

733 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto penale – Parte generale. 3. ed. Bologna: Zanichelli, 1995. 176.

734 HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidade. Bases para una teoría de la imputación en derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Bogotá: Temis, 1999. p. 24.

735 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid, tomo 49, fasc. 1, p. 187-217, 1996. p. 199. 736 Ibid., p. 201. No mesmo sentido, Salvador Netto afirma que, antes de se chegar aos problemas práticos e

acadêmicos dos tipos de perigo, o Direito Penal enfrentou a entrada no sistema de uma grande quantidade de delitos culposos, “sendo necessária toda uma construção acadêmica para integrar essa então nova modalidade”. Agora, os tipos de perigo seguem o mesmo caminho anteriormente percorrido pelos crimes culposos. (SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 101).

esclarecidas em detalhes pelos métodos e instrumentos científicos à disposição. As inovações tecnológicas impõem ao legislador o desafio de lidar com situações em que o dano projetado, além de grave, conecta-se a uma multiplicidade infinita de causas. Assim, a causalidade múltipla cria dificuldades consideráveis à imputação penal, tornando necessário retroceder na

antecipação da punibilidade a estágios anteriores ao perigo concreto.737

Diante disso, pontua Schünemann, se o Direito Penal tem por missão proteger bens jurídicos, “o trânsito do delito de resultado clássico até o moderno delito de perigo abstrato” deriva da própria natureza das coisas. Nesse cenário, rejeitar, por princípio, os crimes de perigo abstrato resulta reacionário, porquanto obstrui a necessária investigação pela ciência penal de critérios para uma legitimação tanto construtiva quanto crítica dos tipos de perigo abstrato.738

De fato, o recurso aos crimes de perigo abstrato traz ínsito o risco de se penalizar a mera violação ao dever, atrelando o conteúdo do injusto penal somente ao desvalor da ação, desprezando-se o desvalor do resultado. Uma noção material de crime assentada apenas no

desvalor da ação constitui retrocesso a um Direito Penal policialesco e subjetivista739,

incompatível com a visão de bem jurídico como objeto ofendido pelo crime e não objeto tutelado pela norma penal. Afinal, o desvalor do resultado, inseparável de um determinado desvalor da ação, constitui a essência da noção de crime como fato ofensivo a bens jurídicos.

O Código Penal brasileiro parte do princípio de que não há crime sem resultado: os institutos da tentativa (art. 14, inc. II, do CP) e do crime impossível (art. 17 do CP) demonstram que não existe crime sem, no mínimo, perigo para o bem jurídico; o art. 13 do CP, primeira parte, afirma textualmente que a existência do crime depende do resultado. A exposição de motivos também reafirma a inexistência de crime sem que ocorra, pelo menos, perigo de lesão ao bem jurídico, sendo que o perigo “não pode deixar de ser considerado,

737 SCHÜNEMANN, Bernd. El principio de protección de bienes jurídicos como punto de fuga de los límites constitucionales de los tipos penales y de su interpretación. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien

jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial

Pons, 2007. p. 225.

738 Id., Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana. Anuario de

Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid, tomo 49, fasc. 1, p. 187-217, 1996. p. 199-200.

739 Segundo Baratta, o recurso ao perigo abstrato se relaciona com a emergência da legislação contra o crime organizado na Itália, que, ao atribuir maior relevância aos elementos subjetivos e normativos do tipo, promoveu uma subjetivação da antijuridicidade, voltando-se “a controlar não só a conduta do sujeito, mas também a sua fidelidade ao ordenamento e ao Estado” (BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências

objetivamente, como resultado, pouco importando que, em tal caso, o resultado coincida ou se

confunda, cronologicamente, com a ação ou omissão”740.

Ressalta-se que o resultado em questão não é o resultado material, mas o resultado jurídico. Como visto, o resultado material é a modificação no mundo naturalístico, materialmente distinta da ação ou omissão em si, presente nos crimes materiais ou de resultado, mas ausente nos crimes de atividade ou formais. Por outro lado, o resultado jurídico, consistente na lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico, deve existir, obrigatoriamente, em todo e qualquer crime.

O resultado jurídico como elemento indispensável ao conteúdo material do crime constitui imposição da vertente principiológica do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos: o princípio da ofensividade. Afinal, a pretensão de ofensividade não se realiza com a simples indicação de um bem jurídico na condição de objeto tutelado pela norma incriminadora, sendo imperioso que o bem jurídico ocupe a posição de objeto afetado.

Com efeito, o princípio da ofensividade é “uma projeção principal de base político- ideológica que reflete uma forma de pensar o direito penal e o fenômeno criminoso não só

adequada, mas até mesmo intrínseca ao modelo de Estado democrático e social de Direito”741.

Por isso, o princípio da ofensividade é deduzido, na Constituição brasileira, da inviolabilidade do direito à liberdade (art. 5º, caput e incs. IV, VI e IX, da CR) e do princípio da dignidade humana (art. 1º da CR), bem como da não exclusão da apreciação do Poder Judiciário de

lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inc. XXXV, da CR) e da previsão de infrações penais de

menor potencial ofensivo (art. 98, inc. I, da CR), indício de que todas as infrações penais, inclusive as contravenções, possuem potencial ofensivo.

Dito isso, pode-se concluir que os crimes de perigo abstrato são, necessariamente,

inconstitucionais por violação ao princípio da ofensividade? A resposta deve ser negativa742.

Afinal, a ofensividade comporta variados níveis de atualidade e intensidade de perigo de

740 Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal brasileiro (1984).

741 D’AVILA, Fabio Roberto. Teoria do crime e ofensividade. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. In: D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 68.

742 O Supremo Tribunal Federal tem afastado a tese da inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: “LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 102087, Relator. Ministro Celso de Mello, Relator p/ Acórdão: Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 28/02/2012, publicado em 14/08/2012).

dano, sendo que é possível interpretar as condutas tipificadas nas estruturas delitivas de perigo abstrato como detentoras de resultado desvalioso de perigo e não como ilícitos de mera desobediência à norma ou violação ao dever. Nesse contexto, os crimes de perigo abstrato se apresentam como categoria limite na escala do perigo penalmente relevante.

Logo, o recurso excessivo aos crimes de perigo abstrato é criticável, pois importam, realmente, na ampliação do horizonte de criminalização. Por essa razão, o princípio da intervenção mínima recomenda que a presente estrutura delitiva seja usada com parcimônia, permanecendo como modalidade criminosa excepcional em nosso sistema. Uma consequência dessa excepcionalidade é a não punibilidade da tentativa de crime de perigo, que configuraria forma de perigo abstrato. Por certo, a tentativa de crime de perigo não passa de ato preparatório, cuja punição penal, em nosso sistema, é restrita às hipóteses em que há previsão legal expressa, exatamente por não chegar a produzir perigo real para o bem jurídico, mas

apenas perigo abstrato.743

Apesar disso, há que se admitir a tipificação de crimes de perigo abstrato, não porque

a estratégia se justifique pela necessidade de proteger bens jurídicos744, mas por ser possível

adequá-los aos princípios da ofensividade e da culpabilidade. No mesmo sentido, a Associação Internacional de Direito Penal, em seu XIII Congresso Internacional, julgou válida a tipificação de crimes de perigo abstrato, desde que a conduta proibida seja

especificada e os bens jurídicos sejam claramente determinados745.

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