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Neokantismo e a concepção metodológico-teleológica de bem jurídico

A filosofia neokantiana, elaborada no início do século XX, buscou superar a crise do positivismo jurídico a partir do retorno à metafísica. Para essa corrente de pensamento, as ciências naturais e as ciências do espírito adotam métodos diferentes, reservando-se a essas últimas o método axiológico, baseado na valoração dos fatos. Assim, o Direito, como realidade cultural, não pode ser revelado pela simples observação da realidade, devendo ser compreendido como a relação entre o ser (mundo dos fatos) e o dever ser (mundo dos valores)106.

103 BACIGALUPO, Enrique. Manual de Derecho Penal. Parte general. Bogotá: Temis, 1994. p. 10.

104 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 87.

105 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte geral. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 330-331.

106 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio da proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011. p. 86.

O conceito de bem jurídico desenvolvido no bojo do pensamento neokantiano decorre, ao mesmo tempo, da radicalização e da reação ao positivismo jurídico. Assim, por um lado, a concepção metodológico-teleológica deu continuidade ao processo de normatização do bem jurídico iniciado com Binding. Por outro, procedeu à espiritualização do conceito, apartando-o dos referenciais empírico-naturalista e real-sociológico. Na expressão de Tavares, com o neokantismo, assiste-se à “definitiva substituição da noção material de bem pela noção de valor, não de um valor individual, mas de um hipotético valor cultural, que

nasce e vive nos imperativos e proibições da norma”107.

A presente teoria encontrou as condições políticas, econômicas e sociais para o seu desenvolvimento no contexto do Entre Guerras. O crescimento econômico na França e na Inglaterra gerou o desinteresse pelo estudo das causas sociais do delito, uma vez que, a despeito da melhora nas condições de vida, a criminalidade não foi erradicada. Já em países como a Itália e a Alemanha, atrasados na acumulação capitalista e profundamente afetados pela guerra, o clima era propício ao estabelecimento de estruturas totalitárias de Estado, as quais, na corrida pelo crescimento econômico e pela militarização, exigiam uma ordem

hermeticamente fechada ao debate jurídico-democrático.108

Na Alemanha, nos anos que seguiram à instauração da República de Weimar, o pensamento neokantiano foi representado, principalmente, pela Escola Subocidental Alemã ou de Baden. Para essa Escola, os valores criam e ordenam os entes valorados, sendo a chave de acesso a eles.109

A metodologia adotada pelo idealismo neokantista da Escola de Baden impulsionou a elaboração dogmática do Direito Penal, passando os conceitos jurídico-penais a serem entendidos como conceitos essencialmente valorativos. Diante disso, a ação, a omissão, a tipicidade, a antijuridicidade, a culpabilidade e, adiciona-se, o bem jurídico deixaram de ser concebidos em termos formalistas e naturalistas para serem reinterpretados em seu sentido normativo.110

Assim, o êxito do neokantismo na teorização do conceito jurídico de crime foi resultado da meticulosa separação entre os universos jurídico e real, que permitiu ignorar os dados da realidade e submeter a criminologia a uma posição subordinada. Afinal, se, para

107 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 189.

108 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 72-73.

109 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 342-343.

110 PUIG, Santiago Mir. Límites del normativo en Derecho Penal. Cuadernos de Derecho Judicial. Derecho Penal del siglo XXI, Madrid, Consejo General del Poder Judicial, n. VIII, p. 41-81, 2007. p. 48.

Kant, as coisas em si eram inacessíveis ao conhecimento humano, o qual está delimitado no tempo e espaço, elas simplesmente não existiam para os neokantistas. Na visão destes, inexistem obstáculos à criação de novos conceitos jurídicos, sem respaldo em qualquer dado da realidade, com os quais se podia mudar o mundo para legitimar a lei, conforme a necessidade111

Quem primeiro defendeu a concepção metodológica ou teleológica de bem jurídico

foi Honig, com a edição, em 1919, da obra Die Einwilligung des Verletzten112. Na visão de

mencionado autor, bem jurídico é o fim reconhecido pelo legislador em cada um dos preceitos penais, expresso na sua forma mais sucinta, ou, ainda, a síntese por meio da qual o

pensamento jurídico capta de forma concisa o sentido e fim das proibições penais113.

Com Honig, o conceito de bem jurídico é situado na estrutura do crime e a ele são conduzidos todos os elementos da descrição típica, sejam eles objetivos, subjetivos ou normativos, até o ponto em que o bem jurídico se iguala ao próprio conteúdo da norma incriminadora. Dessa forma, o objeto da tutela penal é reduzido a produto da reflexão jurídica,

à síntese do próprio tipo penal, não existindo como algo em si.114

Aproximando-se de Binding, Honig vê como relevante para a afirmação da carência de tutela jurídica tão somente a vontade da comunidade expressa em lei, ainda quando a proteção penal aproveite, prima facie, ao indivíduo. Para ele, “o Estado só eleva à categoria de objecto da respectiva tutela as condições indispensáveis à preservação e funcionamento da vida comunitária. Ou, noutros termos, que contribuam para a manutenção e desenvolvimento

da comunidade”115.

Honig critica Birnbaum por, ao conceber o bem jurídico como dado da realidade empírica, não distinguir objeto da tutela e objeto da ação. Para o defensor da corrente metodológica, Binding e Liszt também não escaparam a essa confusão, uma vez que o primeiro estabeleceu limites lógico-objetivos ao conceito de bem jurídico e o segundo

identificou bem jurídico e interesses da vida humana.116

111 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 342-343.

112 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime. Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p. 64.

113 HONIG, Richard. Die Einwilligung des Verletzten apud MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Trad. Jose Arturo Rodriguez Munoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955. t. I. p. 402.

114 ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro). In: VÁRIOS. Problemas Gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 392-393. (Direito Penal económico e europeu: textos doutrinários; 1).

115 HONIG, Richard. Die Einwilligung des Verletzten apud ANDRADE, op. cit., p. 42.

116 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 79.

Ocorre que, na tentativa de separar objeto jurídico e objeto material do crime, Honig e seus seguidores incorrem em outra confusão: entre bem jurídico e escopo da norma. Conforme esclarece Fragoso, “Fim e objeto são categorias logicamente distintas, embora não

haja escopo sem objeto”117. Com efeito, toda e qualquer norma jurídica ou social possui um

escopo, legítimo ou ilegítimo, de forma que a criminalização de condutas sempre atende a alguma finalidade, ainda que a conduta proibida não cause prejuízo grave a ninguém.

Outro representante da presente teoria, Mezger define bem jurídico como o “valor objetivo” que a lei reputa necessitado de proteção. Segundo o autor, o bem jurídico assim obtido constitui o instrumento mais importante de interpretação dos tipos penais. Por outro lado, a lei penal é, em si, diretriz obrigatória na determinação do bem protegido, o qual, por sua vez, corresponde ao escopo da norma, isto é, à ratio legis. 118 Nesse ponto, é notória a circularidade do raciocínio de Mezger.

Todavia, como a lei não esgota a totalidade do Direito, Mezger sustenta que a identificação do bem jurídico também deve ser feita com apoio no Direito supralegal, composto pelas normas de cultura das quais todo o Direito emana. Tais normas são extralegais, mas não extrajurídicas, porquanto imanentes e não transcendentes aos fins e

metas do ordenamento jurídico.119 Logo, o recurso a elementos supralegais não significa,

nessa teoria, a introdução de um referencial pré-jurídico na construção do conceito de bem jurídico.

O autor alerta que a diretriz última e fundamental do Direito e da interpretação da lei é a criação de um equilíbrio justo entre os interesses da coletividade e os interesses do indivíduo, o que ele denomina “ideia racional de Direito”. Para Mezger, “Direito é aquela regulação social que torna possível o mais alto grau da atividade pessoal na vida da comunidade reciprocamente ordenada (portanto, que cria o máximo possível de satisfação de

interesses que se pode lograr na vida em comum)”120 (tradução nossa).

A teoria metodológica ou teleológica do bem jurídico, engajada no âmbito da filosofia neokantista, também teve seguidores na doutrina italiana. Bettiol, por exemplo, definiu bem jurídico como o valor que a norma pretende tutelar, valor esse que é uma noção

117 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte geral. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 331.

118 MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Trad. Jose Arturo Rodriguez Munoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955. t. I. p. 403-405.

119 Ibid., p. 405-408.

120 No original: “Derecho es aquella regulación social que hace posible el más alto grado de la actividad personal en la vida de la comunidad recíprocamente ordenada (por tanto, que crea el máximum posible de la satisfacción de intereses que puede lograrse en la vida en común)” (Ibid., p. 405-407).

finalística, teleológica, de essência ética e não material121. Além de Bettiol, Sales assinala que Antolisei defendeu a substituição da noção de objeto da tutela penal pela de escopo da norma,

por oferecer uma orientação mais segura e completa na interpretação da lei122.

Em crítica ao normativismo do conceito metodológico de bem jurídico, Dias assevera que o legislador, ao editar um preceito, nunca deixa de ter em mira alguma finalidade. Daí que atribuir ao bem jurídico uma função meramente hermenêutica representa o esvaziamento do seu conteúdo, já que, uma vez posta a norma, a existência do bem jurídico

haveria de ser admitida por princípio.123 No mesmo sentido, Mantovani afirma que, nessa

concepção, apenas por um equívoco terminológico é possível continuar falando em bem

jurídico, pois a categoria perde toda a capacidade de limitar a atividade do legislador124.

Tavares assinala que, para a teoria metodológica, a existência do bem jurídico depende da norma. Por isso, tal teorização não se afasta tanto do positivismo, que nada mais é do que normativismo desprovido de valor. O positivismo jurídico e o pensamento neokantiano trabalham com os dados existentes na ordem jurídica sem questioná-los. Tal metodologia garante a ausência de polêmicas quanto à legitimidade da norma incriminadora aplicada.125

Nesse contexto, o bem jurídico só serve para classificar os tipos penais na Parte Especial dos códigos penais e fornecer aos comentadores elementos para sua interpretação. Dessa maneira, apesar de ser forçoso reconhecer que a presente teoria contribuiu para o desenvolvimento dos métodos de interpretação da lei penal, não há como negar que, com ela, “Esvazia-se a função político-criminal e de garantia do bem jurídico, reduzido a mera

categoria formal, útil apenas para a interpretação das normas”126.

Por outro lado, Mantovani assevera que o bem jurídico é insuficiente para interpretar a norma penal, considerando que: a) crimes diversos podem afetar o mesmo bem jurídico (ex.: furto e estelionato); b) um único tipo de crime pode afetar mais de um bem jurídico; é o caso dos crimes pluriofensivos (ex.: roubo); c) há o risco de se cair em um “círculo hermenêutico”: interpreta-se a norma para chegar ao bem jurídico e se recorre ao bem jurídico para interpretar

121 BETTIOL, Giuseppe. Diritto Penale. Padova: CEDAM, 1973. p. 171-173.

122 SALES, Sheila Jorge Selim de. Princípio da efetividade no Direito Penal e a importância de um conceito garantista do bem jurídico-penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 95, v. 848, p. 416-435, jun. 2006. p. 426. A respeito da posição de Antolisei, vide Capítulo 4, item 4.1, infra.

123 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 64.

124 MANTOVANI, Ferrando. Parte generale. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto penale.). p. 195. 125 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 189-190. 126 SALES, op. cit., p. 426.

a norma e d) não raramente, há dificuldades em se identificar o bem jurídico, havendo

diversidade de entendimentos em relação ao mesmo tipo penal.127

Por fim, segundo Prado, a perspectiva neokantista busca a legitimação da lei penal no “reconhecimento geral” ou, ainda, na “consciência geral do direito” ou “convicção jurídica comum”, entendidos como o conteúdo espiritual comum da consciência de muitos indivíduos

ou mesmo da totalidade do povo128. A despeito disso, na realidade, o fundamento último da

validade das leis estava na simples vontade do legislador.

Portanto, malgrado tenha possibilitado a estruturação da teoria do fato punível ao reconhecer que o Direito constrói suas próprias realidades, o idealismo neokantiano teve como grande desvantagem a abertura do sistema jurídico para o acolhimento de qualquer

ordem de ideias e valores, ainda que antidemocrática129.

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