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Numa distinção preliminar, os crimes de dano são aqueles cuja consumação depende de relevante e efetiva destruição, diminuição ou perda do bem jurídico em decorrência da conduta típica. Já os crimes de perigo se satisfazem com a criação ou incremento de um perigo proibido e não insignificante de ocorrência do resultado danoso para o bem jurídico. Portanto, o que diferencia os crimes de dano dos crimes de perigo é a intensidade do ataque ao bem jurídico.

Tradicionalmente, os doutrinadores se dividiam conforme adotassem uma noção subjetiva ou objetiva de perigo. Para a teoria subjetiva, o perigo não é uma realidade fática, mas a expectativa subjetiva de um evento indesejado, ou seja, o resultado imaginativo do esforço humano em antecipar os acontecimentos. Contudo, o perigo de natureza psicológico- emotiva pode existir para algumas pessoas e para outras não. Logo, essa teoria confunde perigo e juízo de perigo e, ao entender o perigo como produto da limitada capacidade humana

de previsão, identifica-o ao temor.712

Por outro lado, a teoria objetiva concebe o perigo como elemento objetivo do crime, isto é, como dado material e não hipotético do tipo penal, indicativo de uma capacidade ínsita a determinadas condutas em provocar efeitos danosos. Hoje, os autores encaram o perigo, majoritariamente, pelo prisma objetivo, de forma que a teoria subjetiva detém importância

apenas histórica.713 Nesse sentido, a Exposição de Motivos do Código Penal brasileiro define

o perigo como um “trecho da realidade”, “um estado de fato que contém as condições de

superveniência de um efeito lesivo”714.

Além disso, a doutrina discute se o perigo é probabilidade ou mera possibilidade de dano. Para Luna, enquanto parte do mundo do ser, o perigo é possibilidade de dano. Contudo, ao ser tratado pelo Direito Penal, o perigo se transforma em realidade jurídica e adquire significação especial. Assim, a simples possibilidade de dano não tem relevância penal, exigindo-se do perigo certo grau de possibilidade, de modo que o perigo penalmente relevante

712 LUNA, Everardo da Cunha. O resultado no Direito Penal. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 49; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 92-93.

713 LUNA, op. cit., p. 49; SILVEIRA, op. cit., p. 92-93.

pode ser definido como probabilidade – jurídica e não matemática – de que um resultado

danoso se produza como consequência normal de dada conduta.715

Observa-se que a possibilidade de dano se estrutura numa escala “em que os graus revelam desde os mais remotos aos mais próximos perigos, desde o perigo cuja possibilidade mínima confronta com a impossibilidade até o perigo cujo grau de probabilidade se limita

com a efetividade do dano”716. Então, a questão fundamental passa a ser determinar, na escala

da possibilidade, qual grau corresponde à probabilidade de dano.

Grosso modo, os crimes de perigo são subdivididos em crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. Do ponto de vista da descrição típica, os crimes de perigo concreto são aqueles em que o resultado de perigo foi inserido pelo legislador como elemento expresso do tipo penal, devendo ser demonstrado no caso concreto. Nos crimes de perigo abstrato, por sua vez, o resultado de perigo não integra expressamente a formulação típica, embora tenha

motivado o legislador a incriminar a conduta em questão.717

6.1.1 Crimes de perigo concreto

A primeira questão a ser enfrentada no tocante à definição de perigo concreto diz respeito à perspectiva a partir da qual esse conceito deve ser construído. Duas foram as principais opções apresentadas pela doutrina: a perspectiva naturalista e a perspectiva normativa.

Para a teoria naturalista de Horn, haverá perigo concreto quando a não produção de dano efetivo ao bem jurídico pela conduta perigosa não for explicável por qualquer lei causal conhecida. Em outras palavras, “se as leis naturais de que dispomos levassem-nos a diagnosticar a ocorrência de um resultado o qual, na verdade, não se sucedeu, estão

estaríamos diante de uma verdadeira situação de perigo concreto”718. Esse conceito foi

criticado porque se poderia negar a existência de um perigo concreto, anteriormente reconhecido, pelo simples fato de ter sido descoberta lei natural capaz de fornecer uma

explicação científica para a não superveniência do dano719.

715 LUNA, Everardo da Cunha. O resultado no Direito Penal. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 45. 716 Ibid., p. 45.

717 MANTOVANI, Ferrando. Parte general. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto Penale). p. 207.

718 GRECO, Luís. ‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, p. 89-147, abr.-jun. 2004. p. 121.

A doutrina majoritária tem preferência por um conceito normativo de perigo concreto. A teoria normativa – desenvolvida, principalmente, por Schünemann – afirma a existência de perigo concreto nas situações em que o agente não poderia confiar na não ocorrência do dano. Cita-se, como exemplo, uma conduta perigosa no trânsito que só não dá causa a lesão a bem jurídico alheio por mero acaso, em razão da destreza da vítima em

potencial, que realiza manobra milagrosa para impedir o desastre.720

Em sentido semelhante, Demuth entende o perigo concreto como “crise aguda” do bem jurídico, a qual tem lugar depois de ultrapassado o momento em que o agente poderia lançar mão das medidas de segurança regulares para evitar o dano. Na mesma linha, Ostendorf afirma que há perigo concreto quando o curso da colocação em perigo não for mais

dominável pelo agente.721 Tais concepções evidenciam que a tentativa idônea de crime danoso

nada mais é do que a criação de uma situação de perigo concreto para o bem jurídico.

Em síntese, “para termos um concreto pôr-em-perigo, é necessário que a probabilidade de dano ao bem jurídico seja de tal forma intensa, que se torne possível falar em uma situação [...] em que a continuidade existencial do objeto jurídico de proteção da norma esteja seriamente ameaçada”. Destarte, “o reconhecimento do perigo concreto passa a exigir

que o bem jurídico tenha entrado efetivamente no raio de ação da conduta perigosa”.722

Quanto aos crimes de perigo abstrato, conforme se verá na sequência, as controvérsias vão além da conceituação dessa modalidade de tipificação do perigo, alcançando também a questão sobre sua admissibilidade em um sistema penal orientado pelos princípios da ofensividade, culpabilidade e intervenção mínima.

6.1.2 Crimes de perigo abstrato

Como se viu, os crimes de perigo abstrato se caracterizam pela ausência da referência ao perigo no tipo penal. Assim, tradicionalmente, os crimes de perigo abstrato são definidos de maneira negativa, incluindo-se nessa categoria residual todos os delitos que não

sejam de lesão ou de perigo concreto.723

720 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. t. I. p. 406. 721 Ibid., p. 406.

722 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: D’AVILA, Fabio Roberto.

Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2009. p. 109-110.

723 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 97.

Conforme a concepção clássica, o crime de perigo abstrato é um crime de perigo presumido, isto é, o legislador penal presume juris et de jure a periculosidade dos comportamentos tipificados. A consequência é que o aplicador da lei se vê impedido de

considerar o caso fático, estando vinculado à presunção legislativa de perigo.724

Contudo, a doutrina mais moderna apresenta propostas no sentido de admitir prova em contrário da periculosidade, convertendo a presunção absoluta de perigo em presunção relativa, ou seja, juris tantum. Nessa linha, para Zaffaroni e Pierangeli, a técnica legislativa do perigo abstrato procede à inversão do ônus probatório, de forma que passa a caber à defesa comprovar a ausência de perigo. Nessa perspectiva, os crimes de perigo abstrato se afastam dos crimes de perigo concreto pelo fato de esses últimos exigirem a apresentação pelo órgão de acusação de prova efetiva do perigo para o bem jurídico. Portanto, a diferença entre crimes

de perigo concreto e crimes de perigo abstrato seria meramente processual.725

Ocorre que a compreensão dos crimes de perigo abstrato como crimes de presunção de perigo, seja absoluta ou relativa, conflita com os princípios da não culpabilidade e do in

dubio pro reo, que atribuem à parte acusadora todo o ônus probatório no processo penal. Com

efeito, a única presunção admitida em âmbito penal é a presunção de inocência.

Com o fim de afastar a ideia de presunção de perigo, Schröder propõe uma categoria intermediária entre o perigo abstrato e o perigo concreto – o perigo abstrato-concreto –, na qual “a concordância formal entre ação e descrição legislativa conduz à afirmação de que a sua tipicidade há de ser verificada judicialmente, a fim de que se comprove a idoneidade desta

ação para a produção de um perigo ao bem jurídico protegido”.726

Já Cramer busca precisar o perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto. Porém, tal definição acaba por reduzir o perigo abstrato a um perigo concreto de menor intensidade e dificilmente determinável. Frisch, por outro lado, sugere a substituição dos crimes de perigo abstrato por “delitos de aptidão”, que acentuam a aptidão concreta ex ante da

conduta para provocar os resultados que se pretende evitar.727

Para Roxin, os delitos de perigo abstrato-concreto, introduzidos por Schröder, e os delitos de aptidão abstrata, propostos por Frisch, não deixam de ser crimes de perigo abstrato, uma vez que dispensam a produção de um resultado de perigo concreto. Em geral, nesses

724 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 97.

725 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. V. 1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 482.

726 SILVEIRA, op. cit., p. 99.

casos, mostra-se suficiente que o julgador identifique os elementos indicativos de aptidão da

conduta para produzir a lesão ao bem jurídico.728

Em outra direção, Horn e Brehm encaram os crimes de perigo abstrato como crimes de imprudência sem resultado. Para eles, da mesma forma que nos delitos imprudentes, a punibilidade das condutas abstratamente perigosas depende da infração ao cuidado devido. A diferença em relação aos delitos imprudentes sem resultado seria que os crimes de perigo

abstrato não exigem sequer o resultado de perigo, bastando o perigo de resultado.729

Na mesma linha, Olivares afirma que os crimes de perigo apresentam características estruturais semelhantes aos crimes culposos, na medida em que ambas as estruturas tipificam a criação de um risco antinormativo. Segundo o autor, o denominado dolo de perigo não passa de uma ficção acadêmica que visa omitir o caráter culposo dos crimes de perigo. Essa realidade é reconhecida pela própria lei ao prever a punição por delito culposo para a hipótese

em que o perigo criado se materializa em resultado de lesão.730

Ante ao exposto, observa-se que a doutrina atual apresenta uma série de propostas de releitura dos crimes de perigo abstrato que visam superar as tradicionais compreensões formal-positivistas. Tais releituras vão desde a presunção relativa de perigo, passando pelo perigo abstrato como perigosidade e como probabilidade de perigo concreto, chegando até a

noção de delito imprudente sem resultado.731

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