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Hassemer e a teoria pessoal do bem jurídico-penal

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o reestabelecimento dos governos democráticos, as doutrinas alemã e italiana empreenderam esforços para resgatar a concepção liberal de bem jurídico-penal. As atrocidades perpetradas sob a égide dos regimes nazista e fascista desvelaram os riscos do normativismo excessivo e apontaram para a necessidade de restaurar o humanismo iluminista. O resultado foi um retorno ao direito natural, como forma

de delinear limites pré-jurídicos ao poder do legislador de criminalizar condutas179.

O exemplo mais paradigmático desse resgate do conceito crítico de bem jurídico- penal é o Projeto Alternativo de Código Penal alemão, apresentado em resposta ao conservadorismo do Projeto Governamental de Código Penal de 1962. Esse último manteve a criminalização da prática de atos sexuais homossexuais, da sodomia, da pornografia, dentre outros. Diante disso, em 1966, quatorze professores de Direito Penal redigiram o Projeto Alternativo, o qual, com base em uma noção metapositiva de bem jurídico, procurou separar os domínios do Direito e da moral. No entanto, a questão não demorou a transbordar “dos limites do direito penal sexual para se transformar na questão central da essência do conteúdo

material do conceito de crime e da função primária do direito penal no sistema social”180.

176 GOLDSCHMIDT, James. Derecho. Derecho penal e processo I. Problemas fundamentales del derecho. Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 301.

177 Ibid., p. 301.

178 Welzel representava o injusto como uma linha contínua que se inicia no crime e vai perdendo intensidade em direção às infrações administrativas (WELZEL apud SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito

Penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.

115). A respeito do tema, Cf. BAPTISTA, Tatiana Maria Badaró. As fronteiras do Direito Penal e do Direito Administrativo sancionador: um ensaio sobre os critérios de distinção entre crime e infração administrativa. In: BRODT, Luís Augusto Sanzo; SIQUEIRA, Flávia (Orgs.). Limites ao poder punitivo: diálogos na ciência

penal contemporânea. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 73-101.

179 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 96.

180 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 61. Nos termos do §2º do Projeto Alternativo, “As penas e as medidas de segurança servem a protecção de bens jurídicos e à reinserção social do agente na comunidade jurídica” (ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro). In: VÁRIOS.

Problemas Gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 390. (Direito Penal económico e europeu: textos

É nesse contexto que estão inseridas as concepções de bem jurídico-penal que o tomam como precedente à atividade legislativa, emanado de fontes extrajurídicas ou pré-

positivas181. Nessa linha, a teoria pessoal ou personalista de Hassemer desempenhou um papel

essencial na reforma do Direito Penal sexual de 1973, traduzido no esforço de limitar a criminalização às condutas que afetassem a autodeterminação sexual e o desenvolvimento

sexual saudável do menor182.

Com efeito, a teoria de Hassemer confere ao bem jurídico uma função rigorosamente crítico-limitativa, pois visa possibilitar um parâmetro corretivo da política criminal adotada, impondo a exigência de que o bem jurídico seja retirado da relação social concreta e descrito de maneira precisa pela lei penal. Afinal, segundo o autor, “a vagueza do conceito de bem

jurídico está intimamente vinculada com a falta de efetividade da teoria do bem jurídico”183

(tradução nossa), como bem demonstrou, mais recentemente, o julgamento no Tribunal Constitucional alemão a respeito da constitucionalidade do crime de incesto.

Para Hassemer, a teoria e a prática penal não podem prescindir do conhecimento empírico fornecido pelas ciências sociais, de forma que cumpre ao legislador penal levar em conta as necessidades e interesses do sistema social. Isso significa que o Direito Penal deve estar orientado às consequências fáticas da sua intervenção. Caso contrário, autor e vítima do delito são deixados em segundo plano, “não aparecendo como pessoas senão como simples

esquemas ou estereótipos de referência de uma conduta desviada da norma”184.

Em Hassemer, a criminalização formal tem por base “fenômenos de interação”, que são processos comunicativos de constituição social de bens jurídicos, anteriores à positivação da norma jurídica. Logo, a identificação de bens jurídicos coincide com a gênese social da

norma, ambos resultantes de um processo de seleção comunicativo-social.185

Conforme esclarece Neumann, seguidor da presente teorização, os bens jurídico- penais não são dados ônticos preexistentes, disponíveis para serem apenas copiados como um

181 SALES, Sheila Jorge Selim de. Princípio da efetividade no Direito Penal e a importância de um conceito garantista do bem jurídico-penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 95, v. 848, p. 416-435, jun. 2006. p. 427.

182 STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal. Parte general I. El hecho punible. Trad. Manuel Cancio Meliá e Marcelo A. Sancinetti. Navarra: Civitas, 2005. (Tratados y Manuales de Derecho). p. 56-57.

183 No original: “[…] la vaguedad del concepto de bien jurídico está íntimamente vinculada con la falta de efectividad de la teoría del bien jurídico” (HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal - Teoría y Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, Depalma, año 12, n. 45- 48, p. 275-285, 1989. p. 280).

184 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e Luiz Aarroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 36.

185 MÜSSIG, Bernd. Desmaterialización del bien jurídico y de la política criminal. Sobre las perspectivas y los fundamentos de una teoría crítica del bien jurídico hacia el sistema. Revista de Derecho Penal y Criminología, Madrid, n. 9, p. 169-208, jan. 2002. p. 169 et seq.

modelo pelo legislador. Eles também não têm existência ideal e sim social, porquanto postulados no âmbito do diálogo intersubjetivo. No entanto, ainda quando possuam um

substrato material, a esse elemento fático há que ser agregado o componente valorativo.186

Nessa visão, a legislação penal é ato de concreção dos acordos sociais normativos a respeito da relevância de determinado bem jurídico. Os bens jurídicos, por sua vez, refletem- se na consciência cultural de uma dada sociedade, delimitada no tempo e espaço, não sendo,

portanto, realidades absolutas, naturais ou a-históricas, mas baseadas na experiência.187 Nas

palavras do autor:

O Código Penal protege os bens jurídicos sem cujo reconhecimento seria impossível a convivência na atualidade segundo nossa concepção normativa social e nossa configuração democrática: as garantias fundamentais dos pressupostos da dignidade humana, sobretudo a vida, a liberdade, a saúde, a honra, o patrimônio e as condições necessárias a uma socialização ao mesmo tempo livre e exitosa188. (tradução nossa)

Segundo Hassemer, a teoria do bem jurídico, no marco do movimento iluminista, foi responsável pelo resgate da vítima no discurso jurídico-penal. A partir daí, não poderia mais bastar para a criminalização a mera referência à violação da norma (jurídica, ética ou divina), exigindo-se a demonstração da ocorrência de ofensa a bem jurídico. Essa meta impõe indicar uma vítima cujos bens ou interesses, indispensáveis para a convivência humana em sociedade,

foram lesionados.189 Portanto, demanda-se do comportamento penalmente proibido uma

qualidade visível, qual seja, o dano ou colocação em perigo de um bem jurídico, estando o legislador penal vinculado a esse substrato empírico:

[...] a determinação da missão do Direito penal com ajuda do conceito de bem jurídico – um ensaio que tem suas raízes na Ilustração –, oferece ao legislador um critério plausível e prático na hora de tomar suas decisões e, ao mesmo tempo, um critério externo de comprovação da justiça de suas decisões. Este critério, ao mesmo tempo que utilizável, deve ser facilmente apreensível a fim de evitar que o legislador possa ameaçar com uma pena tudo ‘o que, em sua opinião, deva ser mantido intacto e sem alteração alguma’. A ideia do bem jurídico conduz, portanto, a uma Política

186 NEUMANN, Ulfrid. Bem jurídico, Constituição e os limites do Direito Penal. In: GRECO, Luis; MARTINS, Antonio (Org.). Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70.º Aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 521.

187 SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana. Contribuição para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 76-77.

188 No original: “El Código Penal protege los bienes jurídicos sin cuyo reconocimiento sería imposible la convivencia en la actualidad según nuestra concepción normativa social y nuestra configuración democrática: las garantías fundamentales de los presupuestos de la dignidad humana, sobre todo la vida, la libertad, la salud, el honor, el patrimonio y las condiciones necesarias de una socialización al mismo tiempo libre y exitosa.” (HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita. Bogotá: Temis, 1999. p. 111). 189 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e Luiz Arroyo

criminal racional: o legislador penal deve medir suas decisões com critérios justos e claros, utilizando-os, ao mesmo tempo, para sua justificação e crítica. Tudo aquilo que nada tenha que ver com a proteção dos bens jurídicos deve ser excluído do âmbito do Direito penal.190 (tradução nossa).

A questão fundamental, por conseguinte, passa a ser a seguinte: como delinear esse critério “externo”, “plausível”, “prático” e “facilmente apreensível”? Em outras palavras: em que constitui, conceitual e materialmente, o bem jurídico-penal?

A teoria de Hassemer parte do pressuposto de que, se pessoal é a responsabilidade penal do réu, pessoal também deve ser a violação produzida pela conduta penalmente

proibida, sendo esse o critério a que está condicionada a admissão de bens jurídicos191. Dessa

forma, o bem jurídico-penal, para a concepção pessoal, consiste em uma necessidade humana cuja satisfação é imprescindível ao desenvolvimento e estruturação da personalidade individual192.

Logo, a todo bem jurídico violado pelo crime deve ser ligado um referencial pessoal. Contudo, tendo em vista a inegável sociabilidade do ser humano, que só pode preservar e realizar seus interesses dentro da sociedade, um conceito pessoal de bem jurídico não impede o reconhecimento de bens coletivos, mas exige que eles sejam “funcionalizados” a partir da pessoa. Isso significa que somente será legítima a postulação de bens jurídicos supraindividuais na medida em que também sirvam ao desenvolvimento pessoal dos indivíduos:

Para esta teoria, os bens jurídicos da comunidade só podem ser reconhecidos na medida em que – mediatamente – sejam também interesses da pessoa. Assim, por ex., reconhece as falsidades documentais não como delitos contra a segurança do tráfico jurídico, senão como delitos contra a totalidade dos participantes nesse tráfico e, portanto, dos interessados nos meios probatórios; o falso testemunho ou a acusação e denúncia falsas como delitos contra uma Administração da Justiça concebida como uma função para investigar ordenadamente os assuntos que incumbem às pessoas relacionadas com ela; o meio ambiente no delito ecológico

190 No original: “[...] la determinación de la misión del Derecho penal con ayuda del concepto de bien jurídico – un ensayo que tiene sus raíces en la Ilustración –, ofrece al legislador un criterio plausible y práctico a la hora de tomar sus decisiones y, al mismo tiempo, un criterio externo de comprobación de la justicia de esas decisiones. Este criterio, al mismo tiempo que utilizable, debe ser fácilmente aprehensible a fin de evitar que el legislador pueda amenazar con una pena todo ‘lo que, en su opinión, deba ser mantenido intacto y sin alteración alguna’. La idea del bien jurídico conduce, por tanto, a una Política criminal racional: el legislador penal debe medir sus decisiones con criterios justos y claros, utilizándolos, al mismo tiempo, para su justificación y crítica. Todo aquello que nada tenga que ver con la protección de los bienes jurídicos debe ser excluído del ámbito del Derecho penal.” (HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción

a la criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 105).

191 PALAZZO, Francesco. I confini della tutela penale: selezione del beni e criteri di criminalizzazione. Rivista

Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, Giuffrè, p. 453-482, 1992. p. 463.

192 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal - Teoría y

como o conjunto das condições vitais das pessoas e não como a pureza da água ou do ar como tais.193

Observa-se, pelo exposto, que, na teoria pessoal, os bens jurídicos individuais exercem uma função orientadora da tutela penal, pois se demanda que a proteção de bens jurídicos supraindividuais consista em etapa necessária na caminhada para alcançar a meta

final que é a realização dos indivíduos na sociedade.194 Por conseguinte, a tutela de bens

supraindividuais não pode ser perseguida com sacrifício dos indivíduos, ao contrário do que

concepções utilitaristas, totalitárias e majoritárias podem vir a admitir195.

Adepto da concepção pessoal, Sternberg-Lieben define bem jurídico-penal como uma situação real e suscetível de ser lesionada, a qual aparece, em um momento histórico concreto, como condição e requisito do desenvolvimento pessoal. Para ele, a presente teoria espelha a relação entre indivíduo e sociedade estabelecida pela ordem constitucional de valores, uma vez que a Lei Fundamental impõe que todas as instituições coletivas que

rodeiam o indivíduo, inclusive o Estado, estejam ao seu serviço.196

O autor pontua que essa teorização não restringe os bens jurídico-penais aos individuais “clássicos”, abancando também os supraindividuais. Por certo, o sujeito, integrado à comunidade, não é uma unidade insular, mas uma “individualidade social”. Daí que, na realidade social, as interações ocorrem entre uma pluralidade de indivíduos, sendo que “nas relações mútuas desses nos âmbitos ‘sociedade’ e ‘Estado’ se constroem novos elementos de

sua existência em liberdade”197.

Segundo Neumann, “A teoria pessoal do bem jurídico não tem seu lugar no campo da filosofia teórica, mas no da filosofia prática”, porquanto oferece resposta a uma questão normativa. Contudo, o autor ressalta que não se trata de uma resposta completa nem universal, mas de “uma resposta cientificamente convincente e inteligente do ponto do vista político-

193 No original: “Para esta teoría, los bienes jurídicos de la comunidad solo se pueden reconocer en la medida en que – mediatamente – sean también intereses de la persona. Así, por ej., reconoce las falsedades documentales no como delitos contra la seguridad del tráfico jurídico, sino como delitos contra la totalidad de los participantes en ese tráfico y, por tanto, de los interesados en los medios probatorios; el falso testimonio o la acusación y denuncia falsas como delitos contra una Administración de Justicia concebida como una función para investigar ordenadamente los asuntos que incumben a las personas relacionadas con ella; el medio ambiente en delito ecológico como el conjunto de las condiciones vitales de las personas y no como la pureza del agua o del aire como tales.” (HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la

criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 109).

194 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 199. 195 MANTOVANI, Ferrando. Parte generale. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. p. 198. (Diritto Penale).

196 STERBERG-LIEBEN, Detlev. Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p.109.

197 No original: “[...] en las relaciones mutuas de éstos en los ámbitos <<sociedad>> y <<Estado>> se construyen nuevos elementos de su existencia en libertad” (Ibid., p. 111).

jurídico, para a qual não existe hoje alternativa evidente”. Apesar disso, a teoria pessoal representa uma tomada de posição sob a perspectiva da Teoria do Estado, opondo-se aos enfoques estadistas ou coletivistas de Direito Penal, e também no conflito tradicional das

teorias da pena, optando pelas denominadas teorias relativas ou preventivas.198

Apesar de não ser, tradicionalmente, incluído dentre os defensores da teoria pessoal, Roxin, definindo bens jurídicos como “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias

para uma vida segura e livre”199, também compreende, em sentido similar, os bens jurídicos

supraindividuais a partir de um referencial pessoal:

Um conceito de bem jurídico semelhante não pode ser limitado, de nenhum modo, a bens jurídicos individuais; ele abrange também bens jurídicos da generalidade. Entretanto, estes somente são legítimos quando servem definitivamente ao cidadão do Estado em particular. Isto é assim quando se trata dos bens jurídicos universais transmitidos e reconhecidos em geral. Pode-se observar facilmente que uma administração da justiça organizada e um sistema monetário estável são necessários para o livre desenvolvimento de cada um na sociedade. O mesmo dever de pagar impostos, detestado com frequência pelos cidadãos, não busca o enriquecimento do Estado, mas o benefício do particular que está sujeito às contribuições do Estado que estão financiadas precisamente através dos gravames. Um conceito de bem jurídico pessoal de tais características é a forma correta de expressão de um Estado de Direito liberal, desde o qual parte a minha argumentação.200

Entretanto, o recente processo de modernização do Direito Penal levou à postulação de bens jurídicos supraindividuais demasiadamente vagos e generalizadores, divorciados de um conceito pessoal de bem jurídico-penal. Opondo-se a esse estado de coisas, Hassemer enuncia três requisitos que todo pretenso bem jurídico-penal deve satisfazer: adequação à realidade, seletividade e inteligibilidade. Assim, ao evitar abstrações nebulosas, Hassemer pretende possibilitar o controle democrático das normas incriminadoras, impondo limites à

intervenção na liberdade de atuação humana.201

Por outro lado, para Hassemer, a ameaça ao bem jurídico-penal é condição

necessária, mas não suficiente para criminalizar uma conduta202. Afinal, nem toda ofensa a

interesses humanos necessita de uma reação pelo Direito Penal, mas tão somente nos casos

198 NEUMANN, Ulfrid. “Alternativas: nenhuma”. Sobre a crítica mais recente à teoria pessoal do bem jurídico. Trad. Raphael Boldt. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 116, p. 97-110, set.-out. 2015. p. 97 et seq.

199 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 18.

200 Ibid., p. 19.

201 HASSEMER, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal? In: HEFENDEHL, Roland (Org.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 104.

202 Id., Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal - Teoría y Práctica en las Ciencias

em que os efeitos nocivos não ficam confinados aos limites do conflito autor-vítima203. Por isso, o autor elenca uma série de outros princípios a serem observados na atividade legislativa, a fim de conter a expansão do poder punitivo, tais como tolerância, humanidade, proteção da

dignidade humana, danosidade social e in dubio pro libertate204.

Na doutrina nacional, a orientação personalista de bem jurídico é defendida por

autores como Franco205 e Tavares. Para esse último:

O bem jurídico na qualidade de valor e, consequentemente, inserido no amplo aspecto da finalidade da ordem jurídica cumpre a função de proteção, não dele próprio, senão da pessoa humana, que é o objeto final de proteção da ordem jurídica. Isto significa que o bem jurídico só vale na medida em que se insira como objeto referencial de proteção da pessoa, pois só nesta condição é que se insere na norma como valor.206 (itálico no original).

De modo geral, as correntes sociológicas do bem jurídico, entre elas a teoria pessoal, são alvo de críticas pela ausência de indicação de critérios precisos para a identificação dos

bens jurídico-penais207. Para Stratenwerth, a decisão sobre a criminalização de determinado

comportamento “só é possível dentro de um marco de referência previamente dado”208

(tradução nossa). A segurança oferecida por esse “marco de referência”, como se verá mais adiante, será buscada no seio da ordem constitucional.

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