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O positivismo sociológico de Liszt e os interesses juridicamente protegidos

Em oposição à concepção positivista legalista, procurou-se estabelecer um conceito material de crime a partir de uma perspectiva sociológica. Por essa via, propõe-se “divisar, atrás da multiplicidade das manifestações legais de crime, aquilo que em termos de

objetividade e universalidade pudesse, à luz da realidade social, ser como tal considerado”82.

não assume o caráter de direito subjetivo, já que o crime atinge um bem objetivamente tutelado (BATTAGLINI, Giulio. Direito penal..., Trad. Paulo José da Costa Júnior. São Paulo: USP, 1973. v. 1. p. 158). 79 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2003. p. 44.

80 DALBORA, José Luis Guzmán. Estudio preliminar. In: BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Sobre la

necesidad de una lesión de derechos para el concepto de delito. Buenos Aires: B de F – Julio César Faira,

2010. p. 26.

81 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 68.

82 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 56.

A primeira tentativa de determinação dos elementos essenciais daquilo que existiria como crime em qualquer sociedade humana, invariável no tempo e espaço, está presente em Garofalo. Sabe-se que Garofalo rejeitou o conceito jurídico de crime, inclinando-se pela busca de um conceito “natural” de delito, por ele definido como “a ofensa feita ao senso moral

medio [sic] da humanidade civilizada”83. Assim, o crime corresponderia à violação de

sentimentos altruístas fundamentais, como a piedade, nos crimes contra a pessoa, e a

probidade, nos crimes contra o patrimônio84.

O positivismo sociológico ou naturalista, derivado da Escola Histórica, diferencia-se do positivismo legalista por compreender que o Direito tem como fonte não apenas a lei, mas

também, e principalmente, o costume como expressão da vontade geral85. Essa concepção está

presente em Liszt, responsável por uma das mais significativas tentativas de resgatar o

potencial crítico e transistemático do conceito de bem jurídico86.

Discípulo de Jhering, Liszt parte da constatação de que o direito penal possui uma finalidade, qual seja, a proteção de interesses humanos. Em suas palavras, “Todo direito existe por amor dos homens e tem por fim proteger interesses da vida humana. A proteção de interesses é a essência do direito” 87.

A despeito de suas especificidades, o direito penal – como todo o Direito – destina-se à proteção de interesses. Por isso, o direito penal tem, como missão especial, “a reforçada

proteção de interesses, que principalmente a merecem e dela precisam, por meio da cominação e da execução da pena como mal infligido ao criminoso” (grifos no original)88.

Para Liszt, todos os interesses, sem exceção, podem gozar da proteção dispensada pela pena,

83 GAROFALO, Raffaele. Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal. 4. ed. Trad. Julio de Mattos. Lisboa: Livraria Clássica, 1925. p. 87-88.

84 Segundo Dias, a ideia de “delito natural” em Garofalo mantém relevância no tocante à divisão – que, apesar de remontar ao direito romano, ainda hoje é realizada – entre delicta in se, nos quais o juízo de desvalor social, moral ou cultural preexiste à proibição legal, e delicta mere prohibitae, cujo desvalor decorre da proibição legal, pois diz respeito a condutas tidas como axiologicamente neutras. Tal divisão constitui a ideia básica por trás de duas discussões centrais: sobre se ambas as categorias, ou apenas a primeira, podem constituir crimes e sobre a existência de um critério essencial apto a diferenciar a matéria de proibição própria do Direito Penal em relação ao Direito Administrativo sancionar ou direito de mera ordenação social. (DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do Direito Penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 57-58).

85 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 187.

86 SALES, Sheila Jorge Selim de. Princípio da efetividade no Direito Penal e a importância de um conceito garantista do bem jurídico-penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 95, v. 848, p. 416-435, jun. 2006. p. 425.

87 LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal allemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Brasília: Senado Federal, 2006. v. 1. p. 93.

inclusive os pertencentes aos mais diversos ramos jurídicos, pois a essência do direito penal

não está na qualidade dos interesses protegidos, mas na qualidade da proteção.89

Observa-se que, ainda por influência de Jhering, Liszt racionaliza o conceito de bem jurídico a partir da noção de interesse. Em Jhering, o interesse correspondia à relação de valor entre um sujeito, individual ou coletivo, e um bem, definido como “uma coisa capaz de

satisfazer uma necessidade ou de servir à realização de um fim”90. Já Liszt denomina bens

jurídicos os interesses que o Direito protege. Para ele, portanto, bem jurídico é o “interesse

juridicamente protegido”91.

Em oposição à Binding, Liszt reconhece a existência tanto de bens individuais quanto coletivos, pois individuais ou coletivos podem ser os interesses que os fundamentam, os quais não são criações do Direito, mas da vida social:

Todos os bens juridicos são interesses humanos, ou do individuo ou da collectividade. E’ a vida, e não o direito, que produz o interesse; mas só a protecção jurídica converte o interesse em bem juridico. A liberdade individual, a inviolabilidade do domicilio, o segredo epistolar eram interesses muito antes que as cartas constitucionaes os garantissem contra a intervenção arbitraria do poder publico. A necessidade origina a protecção, e, variando os interesses, variam tambem os bens juridicos quanto ao numero e quanto ao genero. [...].92

Logo, nessa teoria, o interesse na ação ou omissão alheia surge das relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos com o Estado ou a sociedade. As normas, ao ordenarem ou proibirem condutas, servem de anteparo aos bens jurídicos, de forma que a proteção dispensada pela ordem jurídica aos interesses é proteção segundo as normas. Nesse sentido, deixando transparecer sua matriz positivista, Liszt afirma que o bem jurídico e a norma são as

duas ideias fundamentais do direito.93

Nota-se que Liszt se aproxima de Binding, em primeiro lugar, pela supervalorização dos fatos, sejam eles sociológico-naturalísticos ou lógico-normativos. Em segundo lugar, ambos recusam as especulações metafísicas, conforme se depreende da declaração de Liszt de

que “a ciência termina onde a metafísica começa”.94

Contudo, o positivismo de Liszt se diferencia do positivismo de Binding no tocante à relação entre bem jurídico e norma. Para esse último, a relação é de absoluta congruência,

89 LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal allemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Brasília: Senado Federal, 2006. v. 1. p. 102-103.

90 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 63-64.

91 LISZT, op. cit., p. 93. 92 Ibid., p. 93-94. 93 Ibid., p. 95-96.

uma vez que a norma é “a única e definitiva fonte de revelação do bem jurídico”95. Já Liszt entende que a relação entre norma e bem jurídico não é de necessária congruência, uma vez que os interesses passíveis de proteção penal existem antes e independentemente da lei. Disso decorre a diferenciação feita por Liszt entre ilicitude formal e material, a qual não tem razão

de ser na teoria de Binding96.

Cumpre salientar que a noção de bem jurídico, em Liszt, é mais ampla do que a de direito subjetivo, visto que a ordem jurídica, muitas vezes, protege interesses sem conferir direitos a indivíduos ou à coletividade. Lado outro, Liszt se afasta de Feuerbach por negar a possibilidade de conduzir ao Estado ou a indivíduos determinados os inúmeros interesses

protegidos pela lei penal.97 Apesar disso, Liszt e Feuerbach têm em comum a influência do

direito privado em suas teorizações, tendo em vista que, em ambos, o Direito Penal encontra

delimitação no momento subjetivo, isto é, nas pretensões individuais98.

Tavares identifica um viés utilitarista na posição de Liszt, já que o interesse não é algo imaginário, mas um dado perceptível da realidade, como a manutenção da vida, da

integridade corporal, do patrimônio e sua possibilidade de transmissão etc.99 Entretanto, a

noção lisztiana de interesse juridicamente protegido não é o conceito realista que aparenta ser, pois, ao diferenciá-lo do objeto de ação, o autor afirma que só esse último é suscetível de lesão100.

Ademais, Liszt não apresentou critérios precisos que permitissem identificar os interesses vitais do homem, deixando, dessa forma, de esclarecer quais interesses merecem a

qualificação de bens jurídico-penais e quais não101. Pelarin acrescenta que Liszt se limita a

afirmar que os interesses emergem naturalmente da “realidade social”, termo vago e impreciso, que nada mais é do que uma figura metafísica de fácil manipulação político-

ideológica, a exemplo da expressão “espírito do povo” de Savigny102. Destarte, o potencial

crítico da presente teoria fica prejudicado pela carência de concretização.

95 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 67.

96 Ibid., p. 67.

97 PEREIRA, José Hygino Duarte. N. do trad. In: LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal alemão. Trad. José Hygino Duarte Pereira. Brasília: Senado Federal, 2006. v. 1. p. 94-95.

98 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 187-188. 99 Ibid., p. 187-188.

100 GRECO, Luís. ‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, p. 89-147, abr.-jun. 2004. p. 106.

101 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime. Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p. 63.

102 PELARIN, Evandro. Bem jurídico-penal. Um debate sobre a descriminalização. São Paulo: IBCCRIM, 2002. p. 71.

A teorização de Liszt também é criticada por não lograr grandes progressos em relação ao problema da estrita separação entre Direito Penal e moral. Para Bacigalupo, a determinação de quais interesses merecem proteção depende de noções de vida social vinculadas, inegavelmente, à ética ou à moral. O autor espanhol afirma que o próprio Von Liszt chega a admitir que, em última instância, as normas jurídicas estão enraizadas em

concepções religiosas, éticas e estéticas do povo de um Estado103.

No mais, Liszt e, antes dele, Jhering, não obstante reconheçam diferenças entre os conceitos de bem e interesse, ao tratarem as duas noções como comunicáveis entre si e fungíveis do ponto de vista funcional, implicando-se reciprocamente, deixam demasiado

permeáveis as fronteiras entre elas104. Nessa linha, Fragoso rechaça a concepção de que bem é

interesse juridicamente protegido, ponderando que o objeto de tutela é o bem e não o interesse, pois esse último corresponde a um aspecto subjetivo ou juízo de valor a respeito do

bem105. Certo é, ainda, que os bens podem se referir a interesses distintos e, até mesmo,

conflitantes.

A par disso, há que se assinalar a preocupação de Liszt em resgatar o conceito material de crime ao postular o interesse como um dado pré-jurídico, ainda que só se convertesse em bem jurídico mediante a proteção legal. Ademais, deve-se a Liszt o propósito de fazer da dogmática penal um limite à política-criminal adotada pelo Estado.

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