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Consequências da modernização para a teoria do bem jurídico

3.1 Sociedade de risco, criminalidade moderna e modernização do Direito Penal

3.1.2 Consequências da modernização para a teoria do bem jurídico

Uma das categorias teóricas mais afetadas pelo processo modernizante foi, sem dúvida, o bem jurídico-penal. A reorientação do Direito Penal da resposta ao passado para a prevenção do futuro conduziu à ampliação do catálogo de bens jurídicos, atualizado a partir da formulação em escala de novos objetos de tutela cada vez mais inapreensíveis. O resultado é que o conceito se torna demasiado elástico, sendo progressivamente alargado para abarcar bens vagos, indefinidos e intangíveis, desprovidos de um substrato material e desvinculados

da realidade social concreta.333

De fato, a complexidade dos riscos pós-modernos dificulta a identificação de bens jurídicos nos moldes tradicionais, favorecendo a gradativa diluição dos contornos do conceito, que perde densidade ao se aproximar mais de objetivos de caráter político, social e

econômico334. A par disso, a indeterminação do conteúdo de boa parte dos novos bens

jurídicos de titularidade supraindividual faz deles suscetíveis a uma carga ideológica latente335.

A criação de bens despersonalizados e abstratos, cujos contornos têm por base menos o real e mais o normativo, produz três notáveis reflexos na teoria do bem jurídico: 1) a tendência a confundir os conceitos de bem jurídico e função estatal; 2) o resgate das teorias metodológicas que equiparam bem jurídico a ratio legis e 3) o risco de a própria norma, ou a sua vigência, substituir a noção de bem jurídico, na linha do pensamento funcionalista-

332 Para D’Avila, o não atendimento à exigência de ofensa a um bem jurídico-penal delimita um espaço normativo vedado ao Direito Penal e restrito à regulamentação administrativa (D’AVILA, Fabio Roberto. Direito Penal e direito sancionador. Sobre a identidade do Direito Penal em tempos de indiferença. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 60, p. 9-35, 2006. p. 34). Sobre o tema, Cf. BAPTISTA,

Tatiana Maria Badaró. As fronteiras do Direito Penal e do Direito Administrativo sancionador: um ensaio sobre os critérios de distinção entre crime e infração administrativa. In: BRODT, Luís Augusto Sanzo; SIQUEIRA, Flávia (Orgs.). Limites ao poder punitivo: diálogos na ciência penal contemporânea. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 73-101.

333 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito Penal. Uma avaliação das novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 105.

334 Idem, ibidem, p. 107.

335 NESTLER, Cornelius. El principio de protección de bienes jurídicos y la punibilidad de la posesión de armas de fuego y de sustancias estupefacientes. In: CASABONA, Carlos María Romeo (Dir.). La insostenible

sistêmico de Jakobs. Com isso, impede-se que o bem jurídico seja erigido em critério delimitador da intervenção do poder punitivo.

Sabe-se que, além de funções dogmático-interpretativa e sistemática, a noção de bem jurídico exerce também funções político-criminais e críticas. Assim, a nível ideológico- político, uma teoria do bem jurídico-penal pode desempenhar um papel de legitimação e/ou limitação às normas penais incriminadoras, conduzindo, na tensão entre o legitimar e limitar,

tanto a diretivas de criminalização quanto de descriminalização336. Todavia, nos últimos

tempos, acentuou-se o uso promocional do Direito Penal, de forma que o bem jurídico-penal tem servido mais a justificar do que a limitar o recurso ao poder punitivo.

A literatura estrangeira aborda a presente questão por meio da análise de variados fenômenos, tais como a “desmaterialização”, a “espiritualização” e a “dinamização” do bem jurídico. De uma forma geral, os bens jurídicos “desmaterializados, espiritualizados ou dinamizados” são supraindividuais e, diferentemente do preceituado pela teoria pessoal de Hassemer, não tomam como referência o indivíduo.

Segundo Sgubbi, o fenômeno da “desmaterialização ou espiritualização do bem jurídico” tem origens no Estado Social e se identifica com dois processos. O primeiro é a criação artificial de bens jurídicos supraindividuais sem substrato na vida social ou cultural, a partir, por exemplo, da edição de normas penais que sancionam a inobservância dos preceitos que regulamentam a atividade econômica. O segundo é a nacionalização de bens jurídicos ou expropriação direta de bens pelo Estado, que se apropria de determinados bens como sendo de seu interesse e não mais dos indivíduos, os titulares originários. Como consequência desses dois processos, o bem jurídico passa a se identificar com um fim social ou estatal, desprovido

de qualquer materialidade pré-positiva.337

Já Baratta, citando Denninger, fala em “dinamização” dos bens jurídicos, processo relacionado com a transformação da estrutura política das sociedades industriais avançadas a partir do advento do “Estado de prevenção” ou “Estado de segurança”. Na visão do autor, o mencionado paradigma, em confronto com o modelo liberal, prioriza a função declarada de garantir a “segurança dos bens jurídicos”, em detrimento da segurança ou certeza do Direito. Essa característica faz do “Estado de prevenção” a forma política que assume a “sociedade de risco” e explica o fenômeno da “dinamização” dos bens jurídicos, assim definido:

336 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 104.

337 SGUBBI, Filippo. El delito como riesgo social: Investigación sobre las opciones en la asignación de la ilegalidad penal. Buenos Aires: Ábaco, 1998. p. 63-68.

Dinamização dos bens jurídicos possui pelo menos dois significados. O primeiro se refere a um deslocamento na relação Estado-sociedade com relação à produção e à proteção de bens jurídicos. Basta lembrar que no modelo do Estado liberal clássico, o “Estado de certeza do direito” e os substratos reais dos bens jurídicos são produzidos na sociedade civil e estão pré-constituídos nas relações das funções públicas. No “Estado da Prevenção” os bens jurídicos a serem protegidos são, cada vez mais, “bens” produzidos pelo Estado, no que se refere às infraestruturas, complexos organizativos e funções relacionadas à atividade do Estado e das instituições públicas. [...].

Em segundo lugar, a transformação dos sistemas penais, indicado pelo termo “dinamização dos bens jurídicos” se relaciona com o desenvolvimento de técnicas de imputação de responsabilidade penal que antecipam a esfera da punibilidade a fases anteriores da conduta e nas quais ainda não se realizou uma lesão efetiva do bem tutelado.338

No mesmo sentido, Fernandes exemplifica que, em sede de Direito Penal econômico, o bem jurídico possui natureza artificial, uma vez que não conta com “o substrato onto- antropológico definido e sedimentado” próprio dos bens jurídicos ditos clássicos, como a vida e a integridade física. Diferenciam-se dos clássicos, ainda, pela origem histórica ligada ao Estado intervencionista e por, muitas vezes, serem eleitos posteriormente à incriminação da conduta.339

Por outro lado, os bens jurídicos do Direito Penal econômico são mutáveis e normativamente orientados à persecução de determinados objetivos político-econômicos, cambiantes de acordo com o contexto social. Por isso, adverte o autor português, deve-se ter cuidado para, ao tipificar crimes econômicos, não desvincular o Direito Penal de seu caráter de ultima ratio, “bem como para não se operar a liquefação dos bens jurídicos, ou a eleição de bens que coloquem em xeque a relação de proporcionalidade e igualdade material dos

critérios de eleição dos mesmos” (itálico no original).340

Mantovani, por sua vez, reconhece o risco da “liquidação” do bem jurídico na ênfase em bens jurídicos vagos ou difusos, não devidamente identificados em sua consistência real (fé pública, economia nacional, meio ambiente etc.), em relação aos quais se fala em “volatilização” do bem jurídico. Em segundo lugar, o mesmo risco está presente nos crimes- função, típicos do Direito Penal acessório, nos quais a tutela penal se dirige a funções ou fins

da Administração Pública341.

338 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, n. 5, p. 5-24, jan.-mar. 1994. p. 13- 14.

339 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de risco” e o futuro do Direito Penal. Panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Livraria Almedina, 2001. p. 84.

340 Ibid., p. 85.

Na doutrina alemã, Amelung critica a tendência à “espiritualização do bem jurídico”, definindo-a como a identificação de alguns bens jurídicos com valores espirituais e ideais superiores, que não pertencem ao mundo espaço-temporal das coisas, das pessoas e suas ações. Tal tendência, na Alemanha, é atribuída pelo autor aos seguintes fatores: a influência da filosofia idealista neokantiana na dogmática jurídico-penal alemã; a identificação de bens jurídicos com instituições, que são categorias normativas, ou seja, exigências ideais de dever ser, insuscetíveis de sofrer lesões reais e, por derradeiro, a perspectiva platônica de mundo, que, seguindo a linha do mito da caverna, abstrai um conceito ideal de bem jurídico da realidade concreta, apartando-o, totalmente, do seu substrato material que é o objeto da ação.342

Por outro lado, Hefendehl pondera que a crítica deve se dirigir à idealização e não à espiritualização do bem jurídico, pois a realidade não se compõe apenas de objetos físicos, mas também de fenômenos psíquico-intelectuais. Para o autor, as realidades espirituais, diferentemente das construções ideais, não se subtraem à influência causal, podendo, por conseguinte, ser lesionadas. Logo, a alternativa a uma noção ideal de bem jurídico não é uma noção material, mas real, sendo que postular a “materialização” do conceito de bem jurídico

significa retroceder a um estágio arcaico da questão.343

No mais, os aludidos problemas na identificação e concreção de bens jurídicos reduzem a visibilidade do injusto e sobrepõem ao modelo de crime como ofensa a bens jurídicos o modelo de crime como infração ao dever, por meio, sobretudo, da tipificação excessiva de crimes de perigo abstrato. Conforme destacado por Cervini, “quanto mais abstrato, ambíguo ou nebuloso se conceba o bem jurídico, tanto mais será possível que qualquer ação que se envolva com ele, por mais remota que seja, possa ser considerada como

em si mesma geradora de perigo”344 (tradução nossa).

Antes, os crimes de perigo abstrato eram considerados exceção a um direito penal fundado, ainda que no plano do discurso político-criminal, no modelo de lesão a bens jurídicos. No entanto, os tipos de perigo abstrato se tornaram o modelo-chave de incriminação

342 AMELUNG, Knut. El concepto ‘bien jurídico’ en la teoría de la protección penal de bienes jurídicos. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 251-253.

343 HEFENDEHL, Roland. Las jornadas desde la perspectiva de un partidario del bien jurídico. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 411.

344 No original: “[...] cuanto más abstracto, ambiguo o nebuloso se conciba el bien jurídico, tanto más será posible que cualquier acción que se involucre con él, por más remota que sea, pueda ser considerada como en sí misma generadora de peligro”. (CERVINI, Raúl. Derecho Penal económico – Concepto y bien jurídico.

Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, p. 81-108, abr.-jun. 2003.

das fontes de riscos da sociedade pós-industrial, em razão das dificuldades de identificação e

individualização do dano e, principalmente, da ameaça345.

Assim, a estrutura delitiva do perigo abstrato passou “a integrar o centro da estratégia jurídico-penal voltada à proteção de bens jurídicos de caráter difuso em face dos novos riscos

tecnológicos”346. Por isso, na atualidade, a tipificação de crimes de perigo abstrato é vista

como a técnica de proteção própria dos novos bens jurídicos supraindividuais.

Contudo, em relação a muitos dos tipos de perigo abstrato, o bem jurídico-penal não desempenha qualquer papel crítico-garantista, uma vez que a lesividade da conduta proibida,

nestes casos, é nominal e não real347. Afinal, desde que se aceite como suficiente a presença

de nexos de imputação indiretos, praticamente todo tipo penal pode ser relacionado a um bem jurídico legítimo348.

Com efeito, a tipificação de condutas de potencial lesivo remoto faz com que se perca no horizonte da incriminação a referência concreta ao bem atingido. Nessa linha, Dias afirma que a tendência do Direito Penal moderno à antecipação da intervenção penal para estádios prévios à “eventual lesão de um interesse socialmente significativo” apaga, “ao menos para a generalidade dos destinatários das normas, toda a ligação entre a conduta

individual e o bem jurídico que em definitivo se intenta proteger”349.

Por certo, os bens jurídicos supraindividuais típicos do Direito Penal moderno se apresentam, por sua própria natureza, além de desprovidos de um referencial antropocêntrico e carentes de definição precisa, de duvidosa corporização ou mesmo de impossível

tangibilidade350. Diante disso, a preocupação em assegurar o futuro da humanidade mediante

o Direito Penal vem dando azo tanto a teorias que defendem certa relativização do conceito de bem jurídico, a fim de torná-lo mais amplo e maleável, quanto a teorias que apregoam seu

abandono definitivo.351

345 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e Direito Penal. Sociedade do risco e Direito

Penal. Uma avaliação das novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p. 132.

346 Ibid., p. 130.

347 CERVINI, Raúl. Derecho Penal económico – Concepto y bien jurídico. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, p. 81-108, abr.-jun. 2003. p. 100.

348 HIRSCH, Andrew Von; WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico y estructura del delito. Sobre los criterios de una imputación justa. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoria del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007. p. 285. 349 DIAS, Jorge de Figueiredo. O Direito Penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 9, n. 33, p. 39-65, jan.-mar. 2001. p. 51.

350 Ibid., p. 57.

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