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Definindo perigo abstrato e perigo concreto: os juízos ex post e ex ante

A compreensão dos crimes de perigo abstrato em termos meramente formais, como crimes de perigo presumido ou de desobediência à norma, há de ser abandonada em favor da recuperação hermenêutica do conteúdo de ofensividade material dessa modalidade típica.

Segundo Bottini, a tipicidade material de todo injusto penal se caracteriza pelo fator objetivo da periculosidade. Para o autor, a periculosidade ou risco é o “substrato mínimo sobre o qual se constroem” todas as espécies típicas, sejam de dano, perigo concreto ou perigo abstrato. Por isso, o risco é elemento implícito da tipicidade objetiva, “mesmo nos casos em

743 A respeito dos atos preparatórios como formas de perigo abstrato, Cf. tópico 6.4.2.

744 Nota-se, por exemplo, que a tipificação de crimes de perigo em lugar de crimes de dano não tem o poder de reduzir o número de mortes e lesões no trânsito.

745 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 94.

que o texto legal não a mencione expressamente, como ocorre nos tipos penais de perigo abstrato”.746

Em relação aos crimes de perigo, a periculosidade – leia-se idoneidade da conduta para produzir o resultado danoso – deve ser auferida pelo intérprete, na condição de observador externo imparcial, postumamente à prática do fato. A tipicidade do crime de perigo será afirmada sempre que o resultado danoso não se apresentar como certo nem como impossível, mas como provável. Esse juízo objetivo de probabilidade de dano, conforme

indica a doutrina, pode ser de duas espécies: ex post ou ex ante.747

Na apuração ex post do perigo, o julgador se coloca na posição de um observador situado depois da prática da conduta e da não verificação do evento lesivo. Nesse juízo, são consideradas todas as circunstâncias concretas existentes no momento do fato, tanto as conhecidas ou cognoscíveis pelo agente, quanto as extraordinárias, que só aparecem

posteriormente.748

Cita-se, como exemplo, o caso em que um motorista embriagado ultrapassa uma motocicleta pela direita, invadindo a faixa em que essa última transitava. Suponha que o motociclista participe de competições de motocross e, por esse motivo, não tem a menor dificuldade em recuar a motocicleta e evitar a colisão. Pela perspectiva ex post, a ocorrência de perigo restará excluída em razão das habilidades especiais do motociclista, circunstância

imprevisível que só vem a ser conhecida posteriormente à prática da conduta em questão.749

O juízo ex post, acolhido pela doutrina alemã, é criticado pela doutrina italiana. Para Mantovani, é inconcebível um juízo de perigo por essa perspectiva, uma vez que, pelo ponto de vista ex post facto, o evento danoso ocorreu ou não ocorreu, não sendo mais apenas provável ou improvável. Assim, o juízo ex post está fadado a deduzir da ocorrência do dano a

existência de perigo e da não ocorrência do dano, a inexistência de perigo.750

De acordo com o critério ex ante, o julgador retroage ao instante em que a conduta é praticada para, colocando-se na mesma posição espaço-temporal do agente, avaliar a ocorrência ou não do perigo. Para a doutrina alemã, esse prognóstico só inclui as

746 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 61, p. 44-121, jul.-ago. 2006. p. 82-84.

747 MANTOVANI, Ferrando. Parte general. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto Penale). p. 205. 748 Ibid., p. 205.

749 GRECO, Luís. ‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, p. 89-147, abr.-jun. 2004. p. 121. A situação hipotética aqui citada não se confunde com o exemplo, apresentado acima, em que a vítima em potencial consegue realizar manobra milagrosa para impedir o acidente. Nesse caso, diferentemente do competidor de motocross, o condutor não detém capacidades superiores, dando apenas sorte em realizar a manobra correta.

circunstâncias fáticas conhecidas ou cognoscíveis pelo agente no momento da conduta. Desse modo, no exemplo do motociclista que participa de competições de motocross, as habilidades especiais da vítima em potencial, as quais o agente desconhecia e não tinha como conhecer

quando da prática da conduta, são irrelevantes e não afastam o juízo positivo de perigo.751

A doutrina italiana, por outro lado, diferencia o juízo ex ante de base parziale e o de

base totale. O critério ex ante de base parziale leva em conta as circunstâncias fáticas que, no

momento da conduta, eram efetivamente conhecidas pelo agente ou, pelo menos, previsíveis, porquanto verossímeis e não excepcionais. Já o critério ex ante de base totale tem como base todas as circunstâncias existentes no instante da atuação, conhecidas ou não pelo agente, ainda

que inverossímeis e extraordinárias.752

Com efeito, o prognóstico conduzirá a diferentes conclusões conforme seja aplicado o critério ex ante de base parziale ou o de base totale. Imagine as seguintes situações: 1) o agente incendeia coisa própria em local geralmente lotado de pessoas, mas casualmente deserto; e 2) o agente incendeia coisa própria em local geralmente deserto, mas casualmente lotado de pessoas. A casual ausência ou presença de pessoas no local não era conhecida nem previsível pelo agente. Para a perspectiva ex ante de base parziale, houve perigo apenas na primeira situação. Em sentido contrário, a perspectiva ex ante de base totale constata perigo

apenas na segunda.753

Nesse quadro, uma questão relevante diz respeito aos parâmetros que serão utilizados para auferir o grau de cognoscibilidade das circunstâncias desconhecidas. Considerando que, para o Direito Penal, o perigo existe na realidade e não apenas na cabeça do agente ou do juiz, fato é que a cognoscibilidade ou não das circunstâncias não deve ser investigada a partir da experiência individual de um ou outro. Contudo, há discussão sobre se essa análise deve ser feita tendo como referência a experiência do homem médio ou de toda humanidade.

A noção de homem médio é, por certo, problemática. Isso porque é uma abstração que inexiste na vida real, sendo que o padrão humano mediano é algo inalcançável e

inapreensível, servindo mais à arbitrariedade e à insegurança jurídica.754 Por isso, a melhor

opção é orientar o juízo de perigo pela mais alta ciência disponível no momento histórico,

751 GRECO, Luís. ‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, p. 89-147, abr.-jun. 2004. p. 120.

752 MANTOVANI, Ferrando. Parte general. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. (Diritto Penale).p. 206 e 445. 753 Ibid., p. 206.

754 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 116-117.

composta pelos saberes naturais, estatísticos e sociais não refutados e pelas máximas da experiência755.

Em resumo, o denominado juízo ex ante é realizado “por meio de um observador externo, que incorpore os conhecimentos especiais do autor sobre o contexto do risco” e “agrega a experiência e o conhecimento geral da época sobre cursos causais e projeções futuras do risco criado”. Logo, “exige-se que o intérprete se transporte ao passado e avalie o ato praticado e sua periculosidade diante das regras de experiência geral e o normal acontecer

dos fatos”, isto é, os conhecimentos disponíveis a respeito dos riscos da conduta.756

A doutrina debate a perspectiva a partir da qual o perigo concreto deve ser definido. Segundo Greco, a doutrina alemã formula a noção de perigo concreto com base no critério ex

post, enquanto que a doutrina italiana utiliza o critério ex ante. Por essa razão, o autor entende

que “os autores italianos acabam tendo um conceito de perigo concreto que é muito mais amplo do que o dos alemães, um conceito que compreende grande parte daquilo que os

alemães chamam de perigo abstrato”757.

Contudo, não passa despercebido o fato de que o juízo ex post da doutrina alemã só se diferencia do critério ex ante de base totale da doutrina italiana em razão da posição em que o observador externo é situado, antes ou depois do fato. Assim, as duas análises se aproximam por considerar todas as circunstâncias existentes no momento da conduta, tanto as conhecidas ou cognoscíveis pelo agente quanto as que não poderiam ser por ele conhecidas. A diferença que faz com que apresentem soluções distintas está no fato de que somente o juízo

ex post leva em conta a intervenção das circunstâncias que só se manifestam depois da prática

do fato.

Diante disso, o presente trabalho adota o entendimento de que a existência de perigo abstrato deve ser afirmada a partir de uma perspectiva ex ante de base total, ou seja, “um juízo em que são consideradas todas as circunstâncias objetivas in casu relevantes, independente do

seu conhecimento por parte do autor”758. Isso significa que o juízo de perigo abstrato será

positivo se um observador, situado na mesma posição espaço-temporal que o agente no

755 MANTOVANI, Ferrando. Parte general. 3. ed. Padova: CEDAM, 2011. p. 206 e 445. (Diritto Penale). p. 206-207.

756 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 61, p. 44-121, jul.-ago. 2006. p. 84-85.

757 GRECO, Luís. ‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, p. 89-147, abr.-jun. 2004. p. 120.

758 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: D’AVILA, Fabio Roberto.

Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre:

instante da prática da conduta, investido em seus saberes especiais e detendo conhecimento de todas as circunstâncias fáticas atuantes nesse momento, concluir, com base nos danos empíricos e nos conhecimentos científicos já consagrados, pela potencialidade de que a conduta produza dano ao bem jurídico.

Segundo D’Avila, na perspectiva ex ante, o bem jurídico ainda não entrou no raio de ação da conduta submetida ao juízo de perigo. Como consequência, os crimes de perigo abstrato não se referem a uma verdadeira crise do bem jurídico, sendo que “o ilícito-tipo de perigo abstrato se satisfaz com uma interferência na esfera de manifestação do bem jurídico, a

qual retira deste a segurança da sua continuidade existencial”759.

O juízo de perigo concreto, por sua vez, deve ser realizado pela perspectiva ex post, tendo em vista todas as particularidades presentes no ato concreto. Nesse caso, o observador externo é situado depois do desenrolar fático, em condições de averiguar se a expectativa de perigo chegou ou não a se concretizar em face de uma vítima determinada. Por isso, essa análise considera todas as circunstâncias existentes no momento da prática da conduta, sejam elas conhecidas pelo agente, cognoscíveis ou não passíveis de serem conhecidas, inclusive

aquelas que só se apresentam durante ou depois da prática da conduta.760

Assim, os crimes de perigo concreto se diferenciam pela existência de um bem dentro do raio da ação perigosa, exigindo-se que haja uma vítima em concreto e não apenas em potencial, como ocorre nos crimes de perigo abstrato. Daí que o perigo concreto pode ser definido como uma crise aguda do bem jurídico, na qual, a despeito da exposição do bem de titular determinado a risco real, a lesão só não se consuma por mero acaso, verdadeiro

“milagre”, em cuja ocorrência o agente não poderia confiar.761

A diferença entre perigo concreto e perigo abstrato é ilustrada por D’Avila a partir das seguintes situações hipotéticas: 1) o condutor A decide ultrapassar outro veículo na curva, apesar da falta de visibilidade, e encontra com um carro transitando no sentido contrário, com o qual só não colide em razão de manobra defensiva realizada pelo condutor B; 2) o condutor A realiza a ultrapassagem na curva, sem visibilidade, não encontrando nenhum carro

759 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: D’AVILA, Fabio Roberto.

Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2009. p. 115.

760 Zaffaroni, Alagia e Slokar criticam a tentativa de entender o perigo abstrato como o perigo existente pela perspectiva ex ante e o perigo concreto como o perigo reconhecido do ponto de vista ex post. Para os autores, todo perigo é abstrato ex ante e concreto ex post, devendo, portanto, ser sempre valorado ex ante, com a condição de não ser reduzido à pura imaginação sem substrato real no mundo dos fatos. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 492).

761 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de

transitando em sentido contrário. Na análise de D’Avila, as duas situações são idênticas do ponto de vista ex ante, mas se diferenciam pelo fato de, numa perspectiva ex post, o juízo de perigo se confirmar apenas na primeira e não na segunda. Logo, no primeiro caso, há perigo

concreto e, no segundo, perigo abstrato.762

Nota-se que os crimes de perigo concreto também dependem da periculosidade ex

ante da conduta, de modo que a constatação da situação de perigo ex post é um elemento

adicional da completude típica. Os crimes de perigo concreto representam, portanto, a soma entre a periculosidade inicial da conduta e o ambiente de perigo efetivamente criado:

A constatação da conjuntura concreta de perigo se dá através de uma análise ex post, que apreende a periculosidade inicial da conduta e a analisa em um momento posterior, diante do ambiente de perigo criado efetivamente. Essa verificação ex post exige a presença de um atributo autônomo da própria ação, que independe desta, um resultado de perigo alheio às características da conduta. Porém, cabe ressaltar mais uma vez que a base do injusto nestes delitos será similar àquela dos crimes de perigo abstrato: a periculosidade inicial, atrelada ao comportamento, que independe dos resultados concretos exteriores.763

Da mesma forma, a materialidade típica dos crimes de dano também está atrelada à periculosidade inicial da conduta, verificada ex ante, e à criação de um ambiente concreto de perigo, verificado ex post, às quais se acrescenta a lesão efetiva ao bem jurídico exposto ao perigo. Logo, os crimes de resultado lesivo constituem “a fase final de um continuum quantitativo desenhado pelas diferentes técnicas de tipificação, com início nos delitos de

perigo abstrato, e intermediada pelos delitos de perigo concreto”.764

Registra-se que a não punibilidade do crime impossível em nosso sistema sedimenta a periculosidade ex ante como requisito mínimo da tipicidade material, pois, nesses casos, a conduta não possui capacidade sequer em abstrato de causar lesão ao bem jurídico. Conforme salienta Bottini, “mesmo os delitos de perigo abstrato devem ser perpetrados com meios idôneos e contra objetos próprios, ou seja, têm que apresentar periculosidade, do contrário não

serão punidos”765. Por isso, no exemplo citado do condutor que realiza ultrapassagem em

local de curva e sem visibilidade, não haveria sequer perigo abstrato na hipótese da pista em sentido contrário estar bloqueada, porquanto inexistiria possibilidade de dano.

762 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e ilícito penal ambiental. In: D’AVILA, Fabio Roberto.

Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2009. p. 115-116.

763 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da precaução, Direito Penal e sociedade de risco. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 61, p. 44-121, jul.-ago. 2006. p. 91.

764 Ibid., p. 91. 765 Ibid., p. 92.

Como o juízo de possibilidade varia desde a “quase-certeza” até a “quase- impossibilidade”, exige-se certa dose de possibilidade, a qual denominamos de probabilidade, para compor o conteúdo de desvalor suficiente para servir de substrato material da incriminação. Por conseguinte, nos crimes de perigo abstrato, a possibilidade de dano não pode ser insignificante, embora não precise alcançar o grau de alta probabilidade exigido nos

crimes de perigo concreto.766

Para D’Avila, a possibilidade não insignificante de dano ao bem jurídico não deve ser entendida “em termos probabilísticos, mas sim em termos de significação, de comunicação do fato em um determinado contexto”. Assim, por exemplo, “no âmbito de regulamentação da energia nuclear, mesmo uma possibilidade remota de dano ao bem jurídico pode já ser detentora de desvalor suficiente para servir de substrato a um crime de perigo abstrato”. Por outro lado, a recíproca também é verdadeira: quanto menor a gravidade do dano referencial, menores as chances de uma possibilidade remota de dano ao bem jurídico possuir

a relevância necessária para embasar a intervenção penal.767

Destarte, como regra geral, o desvalor do resultado é introjetado nos crimes de perigo abstrato a partir da aferição de dois critérios: 1) a idoneidade da conduta para causar dano ao bem jurídico, apurada com base em um juízo ex ante de base total; e 2) a não insignificância dessa possibilidade de dano ao bem jurídico. Isto posto, vejamos a aplicabilidade desses critérios aos crimes contra bens jurídicos supraindividuais.

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