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O papel protetivo do Direito Penal em xeque: a teoria “negativa”

3.1 Sociedade de risco, criminalidade moderna e modernização do Direito Penal

3.1.3 O papel protetivo do Direito Penal em xeque: a teoria “negativa”

O debate sobre a construção de um novo modelo de Direito Penal adaptado ao

paradigma da sociedade de risco tem, ao longo dos anos, dividido opiniões352. O próprio

diagnóstico de Beck, cujas previsões Prittwitz reputava “catastróficas” e embasadas mais em

considerações políticas do que sociológicas353, é contestado pelos críticos do Direito Penal do

risco.

Nessa linha, González afirma que, em sua análise, Beck despreza o fato de que, em compensação à criação de novos riscos, a tecnologia moderna reduziu objetivamente os riscos antigos. Afinal, os indicadores sociais de qualidade de vida e desenvolvimento humano (longevidade, mortalidade infantil, controle de enfermidades, etc.) demonstram que houve um

aumento de segurança proporcionado pelos avanços técnico-científicos.354

Ademais, ainda segundo o autor, nem todos os velhos riscos eram “naturais”, muitos eram tão “artificiais” quanto os novos riscos, pois também criados pelo homem a partir de sua intervenção criativa na natureza. As primeiras técnicas de agricultura e irrigação, a descoberta da pólvora e as grandes navegações, por exemplo, foram todos fenômenos humanos geradores de riscos imprevisíveis e incontroláveis. A diferença é que, hoje, apesar de a ciência oferecer melhores chances de previsão e controle dos riscos, em razão do fluxo de informação, que leva ao conhecimento do público descobertas científicas ainda em fase experimental, cria-se um estado de alarmismo injustificado que impede que as revoluções tecnológicas sejam

percebidas como uma oportunidade.355

O debate sobre o Direito Penal do risco perpassa, portanto, a questão dos limites da influência das teorias sociológicas nas ciências penais, ou seja, sobre se a concepção das sociedades atuais como sociedades do risco tem o condão de determinar a reformulação do Direito Penal. A perspectiva do risco constitui, sem dúvida, uma referência fundamental na

352 Embora popular em todo o mundo, o tema “Direito Penal do risco” é desenvolvido, principalmente, na literatura jurídico-penal alemã. Não poderia ser diferente, uma vez que a Alemanha é também a terra natal de Beck e, portanto, onde a noção de “sociedade do risco” primeiro surgiu e mais repercutiu. O tema alçou destaque pelos trabalhados da denominada Escola de Frankfurt. Compõem a referida escola: Hassemer, Prittwitz, Herzog, Albrecht, entre outros. Ressalta-se que a Escola Jurídico-Penal de Frankfurt não deve ser confundida com a Escola homônima originária do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, composta por estudiosos da teoria social neomarxista, tais como Benjamin, Horkheimer e Habermas.

353 PRITTWITZ, Cornelius. Sociedad de riesgo y Derecho Penal. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; NEUMANN, Ulfried; MARTÍN, Adán Nietop. Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del siglo: el análisis crítico de la escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2003. p. 261.

354 GONZÁLEZ, Carlos J. Suárez. Derecho Penal y riesgos tecnológicos. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; NEUMANN, Ulfried; MARTÍN, Adán Nieto (Org.). Crítica y justificación del derecho penal en el cambio del

siglo: el análisis crítico de la escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2003. p. 293.

compreensão da sociedade moderna, mas há que se ter em mente que a descrição realizada por Beck é apenas uma das teorias possíveis.

Para De Giorgi, por exemplo, o risco não é condição existencial humana nem categoria ontológica da sociedade moderna, mas modalidade secularizada de relação do homem com o futuro. O acaso e a probabilidade e, portanto, a noção de risco são invenções modernas que vêm substituir a adivinhação, o tabu e o pecado, possuindo a função de

racionalizar o medo.356 Segundo o autor, as teorias sociológicas do risco apenas descrevem

como aqueles que agem observam os riscos, não podendo fornecer indicações de como se comportar nas situações de risco. Disso decorre que a noção de sociedade do risco apenas descreve, de determinado ponto de vista, o “ser” da sociedade atual, nada dizendo sobre o

“dever ser” do Direito357.

Transpondo-se essa discussão ao contexto da América Latina, a conclusão de que o diagnóstico de Beck não é exato para o subcontinente se impõe, uma vez que o desenvolvimento industrial e tecnológico nos países latino-americanos não alcançou um nível tal que permita falar em superação da sociedade de classes e da lógica de distribuição de riquezas.

Com efeito, os principais fatores que tornam o futuro latino-americano incerto são, praticamente, os mesmos desde o início do capitalismo industrial: o desemprego, o déficit

educacional e habitacional, o aumento das despesas com a saúde, etc.358 Já o diagnóstico

sobre a expansão, a funcionalização e a desformalização do Direito Penal representa bem a realidade da América Latina, onde, em muitos aspectos, as consequências de tais fenômenos são ainda mais perversas, tendo em vista as deficiências do Estado Social e a carência de reformas descriminalizantes mais amplas na generalidade desses países.

A necessidade de que o Direito Penal mude para acompanhar a evolução social é inegável e inevitável. Porém, o que preocupa no processo modernizante é a insistência em mudanças no sentido único de expandir os horizontes de intervenção do poder punitivo-penal,

sintoma do denominado “narcisismo penal” 359. Segundo Carvalho, o Direito Penal, assim

como Narciso na mitologia grega, está tão apaixonado pela visão que tem de si mesmo que não admite suas falhas e limitações, as quais fazem com que ele, mesmo no que diz respeito à

356 DE GIORGI, Raffaele. O risco na sociedade contemporânea. Revista Sequência: Estudos Jurídicos e

Políticos, Florianópolis, v. 15, n. 28, p. 45-54, jun. 1994. p. 53.

357 Ibid., p. 54.

358 HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. Trad. Carlos Eduardo Vasconcelos. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, n. 5, p. 55-69, jan.-mar. 1994. p. 63.

359 CARVALHO, Salo de. A ferida narcísica do Direito Penal: crítica criminológica à dogmática jurídico-penal. In: CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 188.

criminalidade clássica, apresente baixa capacidade de evitar a prática de novos crimes e alto potencial multiplicador da violência.

O prognóstico não é menos pessimista em relação à criminalidade moderna, afinal, tendo em vista a sofisticação desse tipo de crime e os déficits de atuação do sistema penal, a intervenção penal se volta a punições exemplares com objetivo, assumidamente, estigmatizante. A alta seletividade do instrumento penal não decorre apenas da falta de vontade política em reprimir práticas comuns, mas não exclusivas, dos detentores do poder político-econômico e das classes privilegiadas, esbarrando também em outros obstáculos concretos. Alguns desses obstáculos, como a hipertrofia do programa de criminalização e a estrutura deficiente das agências punitivas, especialmente as policiais, são descritos por Zaffaroni, Alagia e Slokar:

A criminalização primária é um programa tão imenso, que nunca e em nenhum país

se pretendeu levá-lo a cabo em toda sua extensão, e nem sequer em parte considerável, porque é inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos

criminalizados que realmente acontecem em uma sociedade e os que chegam ao conhecimento das agências do sistema é tão enorme e inevitável que não consegue se esconder o tecnicismo de chamá-la cifra negra ou obscura. As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento descontrolado desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção criminalizante secundária, apenas

como realização de uma parte ínfima do programa primário.360 (tradução nossa,

itálico no original).

A criminologia crítica tem procurado desvelar a incapacidade empírica do sistema penal em cumprir suas promessas oficiais, tanto em relação aos fins instrumentais da pena (ressocialização, intimidação e coesão social), quanto em relação à missão de proteção de bens jurídicos atribuída ao Direito Penal. Apesar disso, os criminólogos observam que a retórica baseada na atribuição de fins e funções socialmente valiosos à intervenção penal vem sendo instrumentalizada pela “dogmática do risco” para legitimar e potencializar a criminalização, frustrando o projeto de minimização da violência estatal:

360 No original: “La criminalización primaria es un programa tan inmenso, que nunca y en ningún país se

pretendió llevarlo a cabo en toda su extensión, y ni siquiera en parte considerable, porque es inimaginable. La

disparidad entre la cantidad de conflictos criminalizados que realmente acontecen en una sociedad y los que llegan a conocimiento de las agencias del sistema es tan enorme e inevitable que no llega a ocultarse con el tecnicismo de llamarla cifra negra u oscura. Las agencias de criminalización secundaria tienen limitada capacidad operativa y su crecimiento sin control desemboca en una utopía negativa. Por ende, se considera natural que el sistema penal lleve a cabo la selección criminalizante secundaria, sólo como realización de una

parte ínfima del programa primario.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,

A aporia que emerge é decorrência direta da atribuição de virtudes ao direito penal, pois, por mais contraditório que possa parecer, os discursos que potencializam a expansão do direito penal vêm agregados ao princípio da mínima intervenção. Segundo a concepção ilustrada, o direito penal deve atuar residualmente, ou seja, apenas quando bens absolutamente importantes sofrerem lesão ou perigo concreto de dano. Desde esta perspectiva, surge indagação que dá condições de possibilidade ao nascimento do direito penal do risco em aparente harmonia com a política de intervenção subsidiária: se cabe ao direito penal proteger os principais bens

jurídicos da humanidade, como poderia eximir-se de enfrentamento de (possíveis) ações que colocam em risco sua própria existência, que geram perigo ao seu futuro? Como deixar de atuar em situações-limite que ameaçam as gerações vindouras?

Desde a lógica que impera na dogmática penal, a intervenção postulada é inerente às suas funções, merecendo o interrogante resposta positiva. Todavia, imprescindível frisar vez mais, a retórica de legitimação do direito penal encobre as disfunções reveladas pela criminologia, quais sejam, a absoluta incapacidade de o arsenal punitivo prevenir condutas futuras, seja no plano da prevenção especial ou da prevenção geral, seja em suas dimensões positivas negativas.361 (itálico no original).

Assim, torna-se impossível resistir às tendências expansivas do Direito Penal do risco, respaldadas pelo discurso de modernização, sem rejeitar o entendimento tradicional de que a função da norma penal incriminadora é tutelar bens jurídicos. Para essa visão, a incapacidade do Direito Penal em prevenir condutas – conclusão que a experiência empírica ainda não encontrou evidências em sentido contrário capazes de elidi-la –, bem como as restrições impostas pelo método de atuação próprio do instrumento penal, que se exime de enfrentar os conflitos sociais para tão somente reprimi-los, sinalizam a necessidade de desenvolver uma teoria “negativa” do bem jurídico-penal, tendo como premissa que o Direito Penal não está vocacionado à proteção de bens jurídicos:

Na realidade, não se pode instituir como pressuposto do tipo a proteção do bem jurídico, porque essa proteção não possui conteúdo real. Em primeiro lugar, não se demonstrou que, efetivamente, a formulação típica de uma conduta proibida proteja um bem jurídico; em segundo lugar, essa proteção do bem jurídico funciona apenas como mera referência formal, sem fundamento material. Finalmente, incluir a proteção do bem jurídico como pressuposto do tipo, significa uma opção por uma política criminal puramente sistêmica, ao tomar o tipo não como um instrumento de garantia, mas como um instrumento de manutenção e reprodução do sistema. Este último aspecto é ignorado pela dogmática que, simplesmente, aceita a finalidade de proteção atribuída ao tipo como dado absolutamente irrefutável. 362 (tradução nossa).

361 CARVALHO, Salo de. A ferida narcísica do direito penal: crítica criminológica à dogmática jurídico-penal. In: CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 191.

362 No original: “En realidad, no se puede instituir como presupuesto del tipo la protección del bien jurídico, porque esa protección no posee contenido real. En primer lugar, no se ha demostrado que, efectivamente, la formulación típica de una conducta prohibida proteja un bien jurídico; en segundo lugar, esa protección del bien jurídico funciona apenas como mera referencia formal, sin fundamento material. Finalmente, incluir la protección del bien jurídico como presupuesto del tipo, significa una opción por una política criminal puramente sistémica, al tomar el tipo no como un instrumento de manutención y reproducción del sistema. Este último aspecto es ignorado por la dogmática que, simplemente, acepta la finalidad de protección atribuida al

Nessa linha, Zaffaroni, Alagia e Slokar esclarecem que bem jurídico afetado e bem jurídico tutelado são conceitos substancialmente distintos. O primeiro é um dado concreto e, por essa razão, possui capacidade limitadora, enquanto o segundo é uma pretensão discursiva, ou seja, uma ideia abstrata, que não necessariamente se realiza na vida social. A pretensão protetiva, como regra, não vai além do plano do discurso, não sendo verificada em bases reais e concretas, pois, como visto, nada prova que a lei penal cumpre funções de tutela, sabendo-se apenas que ela, efetivamente, confisca um conflito que lesiona ou põe em perigo um bem jurídico. Por isso, os autores afirmam que a noção de bem jurídico tutelado deprecia o potencial crítico da teoria do bem jurídico, gerando a falsa impressão de que, primeiro, todo bem afetado pelo delito está protegido e, segundo, de que todo bem jurídico demanda

proteção, o que instiga a expansão criminalizante.363

Diante disso, para a teoria “negativa”, a noção de bem jurídico como objeto de tutela deve ser rechaçada em favor de um conceito crítico-limitativo de bem jurídico-penal, passando a ofensa a bens jurídicos a constituir condição necessária, mas por si insuficiente, para a criminalização de uma conduta e não sua motivação. Dessa maneira, os problemas apresentados à dogmática-penal pelos bens jurídicos supraindividuais hão de ser enfrentados tendo como pressuposto que a teoria do bem jurídico, como todo e qualquer instituto dogmático-penal, deve servir aos fins limitativos de uma teoria do delito autenticamente

democrática e não a propósitos punitivos364.

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