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Houve grande debate a respeito do estabelecimento de um paradigma único ou dual para os bens jurídicos individuais e supraindividuais. A polêmica estava centrada na questão sobre se a identificação do bem jurídico-penal deveria ter por referência as necessidades do indivíduo, da coletividade ou de ambos. Os posicionamentos dos diversos autores nessa discussão são, comumente, divididos em três correntes: dualismo, monismo-pessoal e monismo-estatal.

Para uma teoria dualista – defendida, por exemplo, por Tiedemann – há duas classes distintas e complementares de bens jurídico-penais, os individuais e os coletivos, inexistindo um critério superior que autorize a redução de uma classe a outra. Assim, o dualismo propugna o legítimo merecimento de tutela penal autônoma de bens jurídicos supraindividuais

desvinculados de quaisquer referenciais individuais.544

Atualmente, a maior parte da doutrina afirma se orientar pela perspectiva dualista, identificando os bens jurídico-penais a partir de sua relevância para o desenvolvimento pessoal dos seres humanos ou para a subsistência do sistema social. Diante disso, os autores se inclinam por investigar critérios para a postulação de autênticos bens jurídico-penais coletivos, critérios esses não aplicáveis aos individuais.

Com efeito, a opção dualista é pragmática, porquanto se exime de buscar um conceito único de bem jurídico-penal apto a submeter os bens jurídicos individuais e

544 TIEDEMANN, Klaus. El concepto de derecho económico, de derecho penal económico y de delito económico. Revista Chilena de Derecho, Santiago, v. 10, n. 1, p. 59-68, 1983. p. 61 et seq.

supraindividuais aos mesmos pressupostos de legitimidade. Entretanto, tal perspectiva se baseia numa distinção artificial e arbitrária entre bens individuais e coletivos, ignorando a base personalista de ambos e reforçando a oposição falaciosa entre indivíduo e sociedade. Além disso, a presente postura, na medida em que dispensa o referencial pessoal, promove o ingresso facilitado de novos bens jurídicos supraindividuais na seara penal, admitindo que

quaisquer funções e finalidades político-estatais assumam essa roupagem.545

A perspectiva monista-pessoal, encabeçada por Hassemer, estabelece como condição para o reconhecimento de bens jurídico-penais supraindividuais que sejam eles

funcionalizados a partir dos individuais546. No entanto, o monismo-pessoal apresenta

variações menos radicais que reconhecem a tutela penal autônoma dos bens jurídicos coletivos, isto é, não subordinada à tutela de bens jurídicos individuais, sem, contudo, divorciar as duas categorias. Assim, a proteção dos bens coletivos se justifica na medida em que garante o desenvolvimento livre e digno do indivíduo, inclusive no tocante a suas

possibilidades de participação na sociedade.547

Ocorre que, conforme aduz Baratta, o monismo-pessoal tem o inconveniente de legitimar “por princípio” a intervenção penal para a tutela dos bens jurídicos individuais, não problematizando a proteção exagerada concedida pelo Direito Penal à propriedade privada, bem individual desigualmente distribuído nas sociedades capitalistas. Logo, o mérito da teoria fica restrito à dimensão quantitativa da expansão do sistema punitivo – deslegitimação das normas penais que tutelam interesses difusos e funções – sem interferir em sua dimensão qualitativa.548

Segundo o monismo-estatal, adotado por Jakobs, todos os bens jurídicos são, na realidade, titularizados pelo Estado, uma vez que os próprios bens jurídicos individuais são

tidos como “atribuições jurídicas derivadas das funções do Estado”549. Isso significa que o

indivíduo não seria digno de proteção por si mesmo, mas só nas situações concretas em que os seus interesses reflitam os interesses do Estado, ou seja, a proteção do indivíduo depende

545 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 108; TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 215; FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 66.

546 HASSEMER, Winfried. Lineamentos de una teoría personal del bien jurídico. Doctrina Penal - Teoría y

Práctica en las Ciencias Penales, Buenos Aires, Depalma, ano 12, n. 45-48, p. 275-285, 1989.

547 CORIA, Dino Carlos Caro. “Sociedades de riesgo”, bienes jurídicos colectivos y reglas concursales para la determinación de la pena en los delitos de peligro con verificación de resultado lesivo. Caro&Associados, Diciembre 2006, p. 7-8. Disponível em: <http://www.ccfirma.com/publicaciones/pdf/caro/Bjc-concurso.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2015, às 10:20.

548 BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 2, n. 5, p. 5-24, jan.-mar. 1994. p. 8-9. 549 HASSEMER; MUÑOZ CONDE, op. cit., p. 108.

do interesse concreto do Estado em protegê-lo. De fato, essa postura é incompatível com o princípio fundamental da dignidade humana que norteia as constituições democráticas.

Além dessas três correntes, mais recentemente, Hefendehl passou a defender o que se pode denominar como perspectiva monista-coletiva. Para o autor, a teoria dualista impulsiona a expansão do Direito Penal e a monista-pessoal é reacionária, porquanto reserva o Direito Penal à proteção dos bens da classe dominante. Por isso, a teoria pessoal deve ceder lugar a uma teoria social do bem jurídico, que enfatiza nos bens jurídico-penais a capacidade de

garantir chances iguais de participação a todos os membros da sociedade.550

Hefendehl afirma que todos os bens jurídicos coletivos dependem de legitimação especial, uma vez que “inexiste qualquer bem jurídico coletivo inato; todo bem coletivo decorre de uma decisão positiva e muitas vezes instável da sociedade ou do Estado”, o que

“torna difícil a determinação do espectro de bens coletivos penalmente legítimos”551. Quanto

aos bens jurídicos individuais, a intervenção penal só se justifica desde que a perturbação transcenda os limites do conflito privado, apresentando-se socialmente danosa.

Da mesma forma que o monismo-estatal, o monismo-coletivo de Hefendehl transaciona com o autoritarismo. Uma demonstração disso é que o autor alega que, nos delitos de proteção do Estado e dos recursos estatais, o titular dos bens jurídicos não é a sociedade, mas o Estado, na condição de titular de bens jurídicos próprios e não de mero gestor de bens

jurídicos alheios552. Além disso, as críticas realizadas ao monismo-pessoal não se sustentam

perante uma teoria personalista que tome por base o indivíduo inserido no contexto social concreto – e não o indivíduo isolado, em abstrato –, tendo em vista que apenas em sociedade o ser humano pode desenvolver plenamente sua personalidade.

Observa-se que adotar o monismo-pessoal não significa, necessariamente, recusar a existência de bens jurídico-penais coletivos, assim como adotar o monismo-coletivo de Hefendehl não impõe negar a dignidade penal de bens jurídicos individuais. Em ambos os casos, cuida-se apenas de manter um referencial único para a identificação de todos os bens

jurídico-penais. Diante disso, é necessário separar duas discussões que, apesar de diferentes,

são comumente confundidas: uma coisa é questionar se deve a doutrina estabelecer filtros

550 HEFENDEHL, Roland. Uma teoria social do bem jurídico. Trad. Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, n. 87, p. 103-120, 2010. p. 112-115.

551 Ibid., p. 112. Hefendehl distingue três ordens de bens jurídicos supraindividuais: 1) os bens jurídicos indispensáveis à defesa do Estado (atingidos em crimes como a alta traição, os delitos contra as Forças Armadas e o vilipêndio ao Presidente da República) e ao seu funcionamento (denominados recursos estatais, tais como o pagamento de tributos); 2) os recursos ambientais (água, solo, ar, etc.) e 3) os bens jurídicos coletivos clássicos, caracterizados pela não exclusividade do gozo, não rivalidade do consumo e não distributividade (fé pública, administração da justiça, etc.).

distintos para a seleção de bens jurídico-penais individuais e supraindividuais; saber se deve o direito penal tratar apenas das ofensas aos primeiros e não das ofensas aos segundos é outra.

Em análise semelhante, Greco pondera que a diferença entre o monismo-pessoal e o dualismo é apenas terminológica, já que, diante da existência de bens jurídicos clássicos autenticamente coletivos, como aqueles tutelados pelos crimes de corrupção e falsidade de moeda, a primeira corrente acaba por trabalhar com uma referência apenas indireta ao

indivíduo.553 Por isso, a verdadeira polêmica se concentraria entre o monismo-pessoal e o

monismo-estatal, pois tais posições partem de paradigmas opostos – o liberal e o autoritário, respectivamente – enquanto a diferença entre teorias monistas e dualistas seria apenas de

método.554

Dito isso, assume-se aqui a opção pela perspectiva monista-pessoal. Todos os bens jurídicos, sejam eles individuais ou coletivos, são, na realidade, bens jurídicos das pessoas,

“encaradas ora na sua individualidade ora na sua sociabilidade”555. Nesse sentido, Dias

esclarece que:

O referente pessoal significa que só merece o qualitativo de bem aquele objeto tido consensualmente [leia-se, intersubjetivamente] como valioso pela comunidade e só são suscetíveis de lograr esse consenso os objetos que possuem um valor de utilidade para a realização dos sujeitos participantes.556

Portanto, o ponto de contato entre os bens jurídico-penais individuais e supraindividuais é a imprescindibilidade concreta ao desenvolvimento da pessoa, no contexto da coexistência social.

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